Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 22 de outubro de 2016

Deus na Natureza ~

A Força e a Matéria II – A Terra (II)

  Assim como os sons derivam do número de vibrações sonoras, assim as cores derivam das vibrações luminosas. O colorido de uma paisagem vale por uma espécie de música. A verdura dos prados é formada pelo número, qual o tema de uma melodia; a rosa que se desbotou é o centro de uma esfera de vibrações luminosas, constituindo o matiz aparente, e o rouxinol que trina em carícias, projecta no ar as vibrações sonoras características do seu tónus. Todo o movimento é número, e todo o número é harmonia.

  Não há dúvida de que existe, nesse estado de coisas, uma parte reservada às leis fisiológicas da nossa organização. Os sons audíveis começam nas vibrações lentas e acabam nas agudas, que o ouvido pode captar, quais sejam de 16 a 36.850 por segundo (i).

  As cores visíveis começam nas vibrações lentas e extinguem-se com as mais rápidas que a nossa retina possa apreender, ou seja, de 458 triliões por segundo, a 727 triliões por segundo (ii).

  Mas, não haveria como daí concluir que haja nisso apenas uma relação fortuita entre a nossa organização e os movimentos exteriores.

  Sons e cores estendem-se abaixo e acima dos limites da nossa organização, igualmente subordinados a regras numéricas. Há sons que o ouvido humano não pode captar, assim como há cores que nos escapam à retina. E no próprio limite das nossas percepções a relação entre estas e os nossos sentidos procede, ao menos na nossa opinião, do facto de não ter sido a construção do nosso organismo alheio ao número – o elo universal.

  Também a forma, nas suas dissimulações mais ondeantes, pertence ao número, pois toda a figura é determinada pelo algarismo.

  O sentido inato da estética que nos inspira busca as formas mais puras. O círculo nos encanta com a sua curva graciosa.

  A Geometria, nas nossas construções, não desgarra por veredas arbitrárias. A Arquitectura apoia-se, conforme as suas aplicações, sobre a forma estética do nosso pensamento, ainda que por vezes suceda (como na nossa época por exemplo) não ter estilo algum.

  Até nas figuras simbólicas das tradições religiosas desejamos simetria, simulando-a às vezes em aparente desordem. Ao contemplar um emaranhado de coisas, a vista logo se nos fatiga, ao passo que se embevece e repousa ao fixar as danças de movimentos melodiosos. Característica peculiar do reino mineral, a simetria torna-se menos severa ao graduar-se nos reinos orgânicos.

  Os vegetais modelam-se pelo seu tipo ideal, mas deixam uma certa latitude às forças que os modificam, e assim é que crescem em duas direcções opostas; as folhas sucedem-se no seu ciclo, em torno da haste, em número característico; as suas flores não escapam à ordem numérica. Número e forma são a base da classificação vegetal. Os animais, com o manifestarem o tipo de cada espécie, dão à simetria o seu papel e o próprio homem é uma unidade composta por duas metades simetricamente ligadas.

  Acima de todas essas formas particulares, soberana manifesta-se-nos a unidade de plano.

  Nas espécies mais diferentes encontram-se analogias significativas. Nada menos parecido com a mão humana do que a pata do cavalo e, no entanto, se dissecardes a pata, lá encontrareis um rudimento de mão com os dedos inscritos.

  Assim a ordem, a mesma ordem numérica, impera na Terra como nos céus. Não vamos pensar que as harmonias naturais, despercebidas ao homem, hajam de ser ruídos informes e constituam excepção. O vento que suspira entre os cedros e os pinheiros; o lamento das vagas na praia arenosa; o zumbido do insecto no âmbito dos bosques; todos os indefiníveis sons que animam a Natureza são vibrações sonoras, pertinentes ao reinado do número.

  O facto na aparência mais insignificante, tanto quanto o de maior vulto, resulta de leis determinadas. Com que direito, pois, ousam declarar os negadores do espírito a materialidade absoluta do Universo? Que pode a matéria só por si? Que será um átomo de oxigénio ou de carbono considerado à revelia de toda e qualquer lei? Em que caos mergulhará a Natureza se aniquilardes a força que a mantém? Imaginemos por um momento que o número deixa de existir, e esta conjectura, só por si, aniquila, todas as harmonias que acabamos de explanar. Ora, perguntamos: pode a faculdade matemática pertencer à matéria? Se assim, julgá-lo, resta dizer-nos que matéria será essa: oxigénio, azoto, carbono, ferro, alumínio. Evidentemente não, pois a lei supera todos esses corpos e é precisamente ela – a lei – que os combina, casa, dissocia, separa, visto que os governa. Que vos resta, então? Pertencerão à matéria o som, a luz, o magnetismo? Mas a experiência vos demonstra o contrário. Nisso, tendes outras tantas modalidades de movimento. Quem determina um dado movimento ao som e outro à luz? Quem regula essas forças? Aparentemente, serão elas mesmas, ou uma força superior que as abranja a todas. A matéria não é, em todos os seus movimentos, senão o objecto passivo.

  Inegável, portanto, que na Natureza inorgânica a matéria é escrava e a força é soberana.

  Contudo, é precisamente o que põem em dúvida os nossos campeões do materialismo. Já tivemos o ensejo de apreciar o valor dos seus argumentos no que diz à Natureza inorgânica. Edifiquemo-nos agora, sem demora, com a maneira por que explicam a Natureza orgânica.

  Quando queimamos cautelosamente uma planta, não raro obtemos o resíduo de um esqueleto silicoso correspondente à forma primitiva da haste. É a substância que a constituía, proveniente da substância do solo. A planta integral, encerra a mais, certos corpos determinados pela sua natureza: assim, por exemplo, o trigo contém o glúten azotado; a videira, cal; a batata, potássio; o chá, magnésio; o tabaco, salitre, etc. A cada planta convém uns tantos elementos minerais e a própria planta é que os sabe escolher. O agricultor inteligente adapta a sua lavoura à natureza do terreno e escolhe os adubos de acordo com as safras que colima. No conhecimento das necessidades de cada espécie está o segredo das searas e dos alqueires. Diante disto, os teóricos de que nos ocupamos só se explicam pela metade. A raiz absorve – dizem – de acordo com as leis fixas de afinidade, os elementos que lhe jazem em volta. E, como se temessem não ser bem compreendido o papel tão judiciosamente atribuído à tal afinidade electiva, acrescentam (ver Moleschott) que a planta fabrica por si mesma a massa principal do seu volume. Haverá, quem, depois de uma tal declaração, ainda se negue a outorgar à força o ascendente directivo que lhe cabe? Pois há, visto que tudo isso é dito atributivamente à matéria. A evaporação que faculta às raízes a absorção dos elementos da terra vegetal, dizem, e a afinidade dos líquidos através das paredes celulares que os separam, tais as faculdades mestras da matéria, que engendram o crescimento. Eis uma pobre raiz que vegeta no cimo do rochedo: necessita de sombra, de silêncio, de uma certa alimentação de que a separam seixos e calhaus... Examinem-se-lhe os vagos, mas, enérgicos desejos: ela procura, coleia, recua, contorna pedras, desce, sobe, lança-se ávida a qualquer ponto que um quê de instintivo a faz adivinhar, recai por vezes desfalecida, mas logo se reanima de novos ímpetos, derruba todos os obstáculos e chega, enfim, à Canaã prometida. Desde então aí se fixa, implanta-se e afirma os seus direitos de conquista. A árvore mofina que delirava outrora em calafrios de consumpção, retoma prestes o vigor natural, bracejando pelo solo os seus ramos luxuriantes. Ousar-se-á admitir aqui, mais formalmente ainda do que na cristalização mineral, a inexistência de um princípio inteligente, de uma força orgânica peculiar?

  Por nós, confessamo-lo sem reservas: na manifestação dessas tendências instintivas saudamos o ser virtual, a força intrínseca do vegetal, que constrange a matéria a obedecer-lhe.

  Parece-nos que sois consequentes atribuindo à matéria essa afinidade electiva (como se a matéria discernisse!), quando nós a inferimos no ser vegetal, que, aflorado nas condições mais díspares, sabe adivinhar por toda a parte os elementos necessários à existência da sua espécie.

  Ó pretensos sábios, que acreditais fabricar ciência arrastando a inteligência em campo raso de despautérios, deixai que vos acuse e lastime não terdes sabido ver, nem sentir, os cenários da Natureza! O aspecto admirável de uns tantos sítios, nos quais a graça e a beleza se conjugam sob todos os prismas; a movimentação da vida, na viridência constante de prados e florestas; a irisação da luz-clara, marchetada de flocos de ouro; o perfil silencioso das árvores; o espelho translúcido dos lagos que reflectem o Sol; o calor primaveril que aquece a atmosfera; a senda das selvas e o perfume das flores: todas as maravilhas, ternuras, carícias da Natureza ficaram estranhas à vossa inércia. As contemplações desta natureza terrestre oferecem, contudo, grande encanto e acarretam, por vezes, revelações inesperadas.

  Lembro-me e confesso, ainda que possas rir da minha sensibilidade – lembro-me, repito, de haver passado horas deliciosas, admirando solitariamente umas quantas paisagens. Não há que categorizar aqui as impressões de que falo, pois quem tenha olhos de ver encontrá-las-á por toda a parte. O Sol, não posto ainda, mas nublado, iluminava as alturas, colorindo de matizes delicadíssimos e esquisitos as nuvens mais altas, cúmulus louros a vogarem lentos, acima dos círrus argenteos. Um vento suave e insensível à superfície do solo balouçava aqueles grupos polícromos, nos quais os tons de feérica paleta, do áureo ao róseo, se harmonizavam no contraste, quais acordes de um coro celestial. A meus pés fremia a onda translúcida do lago imenso, a sumir-se no horizonte longínquo. Profundo silêncio amortalhava a cena. À beira d'água, não longe, alguns capões de árvores e de arbustos reflectiam-se no espelho móvel, com proporções gigantescas. A massa equórea reflectia simultaneamente a terra e o céu, opondo às luzes de cima as sombras de baixo. Quadro digno dos grandes paisagistas, que costumamos admirar nas telas de um Claude Lorrain e de um Poussin, mas cuja simplicidade inimitável transcende a todo o poder imaginativo! Às vezes, o silêncio ambiente era quebrado pelo cincerro dos rebanhos distantes, tangidos ao pastoreio, quando não pelas copias de alados cantores. Diante desse conjunto de tanta beleza, embora velada, de tanta vivacidade, apesar de aparentemente morto, de tal eloquência no meio do silêncio, havia um esplendor tamanho e tão imperioso, que eu me senti penetrado da vida universal, difusa no mesmo ar que respirava por todos os poros. Ela dizia-me que as árvores vivem, que as plantas respiram e sonham! Dizia-me que no ar e na luz, em que a supomos inanimada, ela se eleva e se engrandece para a fase indecisa das primeiras manifestações do ser. Eu bem via, com os olhos do químico, a sucessibilidade rápida e incessante dos átomos constituintes do corpo, desde a erva tenra até à nuvem. Sabia que um dinamismo grandioso e incoercível lhe põe em circulação o turbilhonar das moléculas simples, alternativamente combinadas na sucessão dos corpos.

  Contudo, no âmago desse movimento, pressentia a força que o acarreta; no fundo dessas aparências admirava a lei directriz das coisas criadas. Dominado pelo mesmo poder dessas leis, que irradiam a beleza no espaço com a mesma facilidade com que o lavrador semeia em campo fértil, profundamente emocionado nessa comunhão passageira do meu eu com a vida inconsciente da Natureza, senti-me como que transportado a uma espécie de êxtase, enquanto as imagens aéreas daquele céu magnífico se me reflectiam na alma, qual se o fizessem na face espelhada de um lago tranquilo.

  É nesses instantes de contemplação, fugazes e indescritíveis, que a ideia estética de Deus me surge mais luminosa e mormente me avassala. São estas revelações, que não posso exprimir e nem a mim próprio definir, quando me ocorrem. Sinto-me subjugado pela necessidade de reconhecer uma causa para essa beleza, uma causa que não posso nomear e que, não obstante, me surge com as características da própria beleza, da bondade, da ternura, do amor e assim também com as do poder, da magnitude e da dominação. Já não é, então, pela inteligência, mas pelo coração que me compenetro da existência de Deus. Deverei confessar que me sinto às vezes surpreso e acabrunhado por uma emoção profunda? Não, por isso que, na opinião dos contraditores, todo o sinal de emoção só tem origem na centralidade variável do coração anatómico, ou na secreção da glândula lacrimal, mais ou menos sensível por temperamento e que, portanto, todas as maravilhas aqui expendidas não passam de cego resultado, baldo de senso, das combinações materiais engendradas pela química e pela física orgânicas!

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(i) Segundo Deprez. As experiências de Savart limitam os sons graves a 8 vibrações duplas por segundo, e a 24000 os agudos.
(ii) Tomamos aqui por limites o número de ondulações do infravermelho ao ultravioleta. Além deste, o nosso globo visual não pode perceber a luz, que sem embargo, ainda existe.


Camille Flammarion, Deus na Natureza – Primeira Parte, A Força e a Matéria II – A Terra 2 de 3, 15º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Diálogos de Kardec ~

§ VII — DA OBSESSÃO E DA POSSESSÃO

56. A obsessão consiste no domínio que os maus Espíritos assumem sobre certas pessoas, com o objectivo de as escravizar e submeter à vontade deles, pelo prazer que experimentam em fazer o mal.

Quando um Espírito, bom ou mau, quer actuar sobre um indivíduo, envolve-o, por assim dizer, no seu perispírito, como se fosse um manto. Interpenetrando-se os fluidos, os pensamentos e as vontades dos dois se confundem e o Espírito, então, se serve do corpo do indivíduo, como se fosse seu, fazendo-o agir à sua vontade, falar, escrever, desenhar, quais os médiuns. Se o Espírito é bom, a sua actuação é suave, benfazeja, não impele o indivíduo senão à prática de actos bons; se é mau, força-o a acções más. Se é perverso e malfazejo, aperta-o como numa teia, paralisa-lhe até a vontade e mesmo o juízo, que ele abafa com o seu fluido, como se abafa o fogo debaixo de uma camada d’água. Fá-lo pensar, falar, agir em seu lugar, impele-o, a seu mau grado, a actos extravagantes ou ridículos; magnetiza-o, em suma, lança-o num estado de catalepsia moral e o indivíduo se torna um instrumento da sua vontade. Tal a origem da obsessão, da fascinação e da subjugação que se produzem em graus muito diversos de integridade. À subjugação, quando no paroxismo, é que vulgarmente dão o nome de possessão. É de notar-se que, nesse estado, o indivíduo tem muitas vezes consciência de que o que faz é ridículo, mas é forçado a fazê-lo, tal como se um homem mais vigoroso do que ele o obrigasse a mover, contra a vontade, os braços, as pernas e a língua.

57. Pois que os Espíritos existiram em todos os tempos, também desde todos os tempos representaram o mesmo papel, porque esse papel é da natureza e a prova está no grande número que sempre houve de pessoas obsidiadas, ou possessas, se o preferirem, antes que se falasse de Espíritos, ou que, nos dias actuais, se ouvisse falar de Espiritismo, nem de médiunsÉ, pois, espontânea a acção dos Espíritos, bons ou maus; a destes produz uma imensidade de perturbações na economia moral e mesmo física, perturbações que, por ignorância da verdadeira causa, atribuíam a causas erróneas. Os Espíritos maus são inimigos invisíveis, tanto mais perigosos, quanto da acção deles não se suspeitava. Desmascarando-os, o Espiritismo revela uma nova causa de certos males da Humanidade. Conhecida a causa, não mais se procurará combater o mal por meios que já se sabem inúteis; procurar-se-ão outros mais eficazes. Ora, o que foi que fez se descobrisse aquela causa? A mediunidade. Foi pela a mediunidade que esses inimigos ocultos traíram a sua presença; ela foi para eles o que o microscópio foi para os infinitamente pequenos: revelou todo um mundo. O Espiritismo não atraiu os maus Espíritos: desvendou-os e forneceu os meios de se lhes paralisar a acção e, por conseguinte, de afastá-los. Não foi ele quem trouxe o mal, visto que o mal existe desde todos os tempos; ele, ao contrário, dá remédio ao mal, apontando-lhe a causa. Uma vez reconhecida a acção do mundo invisível, ter-se-á a explicação de um sem-número de fenómenos incompreendidos e a Ciência, enriquecida com o conhecimento dessa nova lei, verá abrir-se diante de si novos horizontes. Quando chegará ela a isso? Quando deixar de professar o materialismo, porquanto o materialismo lhe detém o voo, opondo-lhe intransponível barreira.

58. Pois que há Espíritos maus que obsidiam e Espíritos bons que protegem, perguntam muitos se os primeiros são mais poderosos do que os segundos. Não é que o bom Espírito seja mais fraco; o médium é que não tem força bastante para alijar de si o manto que lhe atiraram em cima, para se desprender dos braços que o enlaçam e nos quais, cumpre dizê-lo, às vezes se compraz. Neste caso, compreende-se que o bom Espírito não possa levar vantagem, pois que o outro é preferido. Admitamos, porém, que a vítima deseje desembaraçar-se do envoltório fluídico que penetra o seu, como a humidade penetra as roupas. Esse desejo nem sempre bastará. A própria vontade nem sempre é suficiente.

Trata-se de lutar contra um adversário. Ora, quando dois homens lutam corpo a corpo, aquele que dispõe de mais fortes músculos é que abate o outro. Com um Espírito tem-se de lutar, não corpo a corpo, mas Espírito a Espírito e é ainda o mais forte que triunfa. Aqui, a força reside na autoridade que se possa exercer sobre o obsessor e essa autoridade está subordinada à superioridade moral. Esta é como o Sol que dissipa o nevoeiro pela potencialidade dos seus raios. Esforçar-se por ser bom, por se tornar melhor se já é bom, por purificar-se das suas imperfeições, por, numa palavra, elevar-se moralmente o mais possível, tal o meio de o encarnado adquirir o poder de mandar sobre os Espíritos inferiores, para os afastar. De outro modo estes zombarão das suas injunções. (O Livro dos Médiuns, nos 252 e 279.)

Entretanto, objectar-se-á, por que os Espíritos protectores não lhes ordenam que se retirem? Sem dúvida, podem fazê-lo e algumas vezes o fazem. Mas, permitindo a luta, deixam ao atacado o mérito da vitória. Se consentem que se debatam criaturas que, sob certos aspectos, têm os seus merecimentos, é para lhes experimentar a perseverança e para levá-las a adquirir mais força no campo do bem. A luta é uma espécie de ginástica moral.

Muitas pessoas prefeririam certamente outra receita mais fácil para repelirem os maus Espíritos: por exemplo, algumas palavras que se proferissem, ou alguns sinais que se fizessem, o que seria mais simples do que corrigir-se alguém de seus defeitos. Sentimos muito; porém, nenhum meio eficaz conhecemos de vencer-se um inimigo, senão o fazer-se mais forte que ele. Quando estamos doentes, temos que resignar-nos a tomar um medicamento, por muito amargo que seja; mas, também, se tivermos tido a coragem de bebê-lo, como nos sentimos bem e fortes! Temos pois que nos persuadir de que não há, para alcançarmos aquele resultado, nem palavras sacramentais, nem fórmulas, nem talismãs, nem sinais materiais quaisquer. De tudo isso riem-se os maus Espíritos e não raro se comprazem em indicar alguns, tendo sempre o cuidado de afirmá-los infalíveis, para melhor captarem a confiança daqueles a quem querem iludir, porque, então, estes, confiantes nas virtudes do processo aconselhado, se entregam sem receio.

Antes de pretender, quem quer que seja, domar um Espírito mau, precisa cuidar de domar-se a si mesmo. De todos os meios de adquirir-se força para chegar a isso, o mais eficiente é a vontade secundada pela prece, a prece do coração, entenda-se, e não a de palavras, das quais a boca participa mais do que o pensamento. Precisamos pedir ao nosso anjo guardião e aos bons Espíritos que nos assistam na luta; não basta, porém, lhes pedirmos que afastem o Espírito mau; devemos lembrar-nos desta máxima: ajuda-te a ti mesmo e o céu te ajudará e rogar-lhes, sobretudo, a força que nos falta para vencermos os nossos maus pendores, que são, para nós, piores que os maus Espíritos, porquanto são esses pendores que os atraem, como a podridão atrai as aves de rapina. Orando também pelo Espírito obsessor, retribuir-lhe-emos com o bem o mal que nos queira e nos mostraremos melhores do que ele, o que já é uma superioridade. Com perseverança, acaba-se as mais das vezes por induzi-lo à posse de melhores sentimentos e a transformá-lo de perseguidor em amigo grato.

Em resumo: a prece fervorosa e os esforços sérios que a criatura faça por melhorar-se constituem os únicos meios de ela afastar os maus Espíritos, que reconhecem como seus senhores aqueles que praticam o bem, enquanto que as fórmulas lhes provocam o riso, do mesmo modo que a cólera e a impaciência os excitam. Precisa o perseguido cansá-los, demonstrando-se mais paciente do que eles.

Por vezes acontece que a subjugação avulta até ao ponto de paralisar a vontade do obsidiado, do qual nenhum concurso sério se pode esperar. Aí, principalmente, é que a intervenção de terceiros se torna necessária, quer por meio da prece, quer pela acção magnética. Mas, também a força dessa intervenção depende do ascendente moral que os interventores possam ter sobre os Espíritos; se não valerem mais do que estes, improfícua será a acção que desenvolvam. A acção magnética, no caso, tem por efeito introduzir no fluido do obsidiado um fluido melhor e eliminar o do mau Espírito. Ao operar, deve o magnetizador objectivar duplo fim: o de opor a uma força moral outra força moral e produzir sobre o paciente uma espécie de reacção química, para nos servirmos de uma comparação material, expelindo um fluido com o auxílio de outro fluido. Dessa forma, não só opera um desprendimento salutar, como igualmente fortalece os órgãos enfraquecidos por longa e vigorosa constrição. Compreende-se, em suma, que o poder da acção fluídica está na razão directa não somente da energia da vontade, mas, sobretudo, da qualidade do fluido introduzido e, segundo o que deixamos dito, que essa qualidade depende da instrução e das qualidades morais do magnetizador. Daí se segue que um magnetizador ordinário, que actuasse maquinalmente, apenas por magnetizar, fraco ou nenhum efeito produziria. É de toda a necessidade um magnetizador espírita, que actue com conhecimento de causa, com a intenção de obter, não o sonambulismo ou uma cura orgânica, porém, os resultados que vimos de descrever. É, além disso, evidente que uma acção magnética dirigida neste sentido não pode deixar de ser muito proveitosa nos casos de obsessão ordinária, porque, então, se o magnetizador tem a auxiliá-lo a vontade do obsidiado, o Espírito se vê combatido por dois adversários em lugar de um.

Cumpre também dizer que amiúde se atribuem aos Espíritos maldades de que eles são inocentes. Alguns estados doentios e certas aberrações que se lançam à conta de uma causa oculta, derivam do Espírito do próprio indivíduo. As contrariedades que de ordinário cada um concentra em si mesmo, principalmente os desgostos amorosos, dão lugar, com frequência, a actos excêntricos, que fora erróneo considerar-se fruto da obsessão. O homem não raramente é o obsessor de si mesmo.

Acrescentemos, por fim, que algumas obsessões tenazes, sobretudo em pessoas de mérito, fazem às vezes parte das provações a que essas pessoas estão sujeitas. Acontece mesmo que a obsessão, quando simples, é uma tarefa imposta ao obsidiado, qual a de trabalhar pela regeneração do obsessor, como um pai pela de um filho vicioso. (Para maiores particularidades, veja-se O Livro dos Médiuns.)

Em geral, a prece é o poderoso meio auxiliar da libertação dos obsidiados; nunca, porém, a prece só de palavras, dita com indiferença e como uma fórmula banal, será eficaz em semelhante caso. Faz-se mister uma prece ardente, que seja ao mesmo tempo uma como magnetização mental. Pelo pensamento, pode-se encaminhar para o paciente uma corrente fluídica salutar, cuja potência guarda relação com a intenção. A prece, pois, não tem apenas por efeito invocar um auxílio estranho, mas exercer uma acção fluídica. O que uma pessoa, só, não pode fazer podem-no, quase sempre, muitas pessoas unidas pela intenção numa prece colectiva e reiterada, visto que o número aumenta a potencialidade da acção.

59. A experiência comprova a ineficácia do exorcismo, nos casos de possessão, e provado está que quase sempre aumenta o mal, em vez de atenuá-lo. A razão se encontra em que a influência está toda no ascendente moral exercido sobre os maus Espíritos e não num acto exterior, na virtude das palavras e dos gestos. O exorcismo consiste em cerimónias e fórmulas de que zombam os maus Espíritos que, entretanto, cedem à autoridade moral que se lhes impõe. Eles vêem que os querem dominar por meios impotentes, que pensam intimidá-los por um vão aparato e, então, se empenham em mostrar-se os mais fortes e para isso redobram de esforços. São quais cavalos espantadiços que dão em terra com o cavaleiro inábil e que obedecem quando topam com um que os governa. Ora, aqui, quem realmente manda é o homem de coração mais puro, porque é a ele que os bons Espíritos de preferência atendem.

60. O que pode um Espírito fazer com um indivíduo, podem-no muitos Espíritos com muitos indivíduos simultaneamente e dar à obsessão carácter epidémico. Uma nuvem de maus Espíritos invade uma localidade e aí se manifestam de diversas maneiras. Foi uma epidemia desse género que se abateu sobre a Judéia ao tempo do Cristo. Ora, o Cristo, pela sua imensa superioridade moral, tinha sobre os demónios ou maus Espíritos tal autoridade, que bastava lhes ordenasse que se retirassem para que eles o fizessem e, para isso, não empregava fórmulas nem gestos ou sinais.

61. Espiritismo se funda na observação dos factos que resultam das relações entre o mundo visível e o mundo invisível. Estando na ordem dos da natureza, esses factos se produziram em todas as épocas e abundam principalmente nos livros sagrados de todas as religiões, pois que serviram de base à maioria das crenças. Por não os terem os homens compreendido, é que a Bíblia e os Evangelhos apresentam tantas passagens obscuras e que foram interpretadas em sentidos diferentes. O Espiritismo traz a chave que lhes facilitará a inteligência.

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ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte, Manifestações dos Espíritos, VII – DA OBSESSÃO E DA POSSESSÃO, 14º fragmento solto da obra.
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

agonia das religiões ~


Religião | como facto social

O homem contemporâneo, vivendo numa fase de crise universal, determinada por mudanças rápidas em todos os campos de sua actividade, defronta-se com um grave problema subjectivo: ser ou não ser religioso. Os estudos sobre a origem e o desenvolvimento da Religião, a sua natureza, a sua significação para o comportamento humano, os seus efeitos na dinâmica social e nos processos de renovação das estruturas económicas e administrativas da sociedade, bem como no desenvolvimento cultural e mais especificamente das pesquisas científicas, oferecem-lhe opções contraditórias que não levam a nenhuma solução, agravando a crise com o levantamento de novos conflitos aparentemente insanáveis.

Culturalmente marginalizada, a partir do Renascimento, a Religião se transformou numa questão opinativa. Para os materialistas e ateus é apenas um resíduo do passado supersticioso; para os pragmáticos, uma questão de conveniência; para os espiritualistas, um problema vital, do qual depende a própria sobrevivência da Humanidade. As posições opiniáticas, em todas essas áreas, geram a desconfiança e a indiferença no seio das massas populares, desprovidas de elementos para uma avaliação do problema e muito menos para a sua equação.

O que hoje se convencionou chamar de Ciência da Religião, abrangendo vários aspectos da questão religiosa em diversas perspectivas científicas, fora do campo religioso, se apresenta como análise fria do processo religioso, com base nos dados objectivos da História. Mesmo a Psicologia das Religiões se vê obrigada a pairar no plano das estruturas das escolas psicológicas, sem mergulhar na essência do fenómeno religioso, sob pena de perder a sua qualificação científica.

Acontece com a Religião o mesmo que verificamos no tocante ao problema da vida, cuja solução se busca no pressuposto de que o impulso vital se origina no campo dos aminoácidos. A matéria, considerada como a fonte de toda a energia – apesar da comprovação cientifica actual de que é o produto da acumulação energética – mantém-se na posição de geradora da vida. Assim também se busca o segredo da Religião nas suas formas de manifestação, na sua estrutura e no seu funcionamento, como se ela se originasse das entranhas do homem e não das profundezas do seu psiquismo. A vida, a alma, o sentimento e o pensamento não seriam mais do que epifenómenos, eclosões efémeras do fenómeno orgânico, destinadas a desaparecer com este.

Não pretendo promover uma revolução copérnica no assunto, mas apenas mostrar, se possível, a conveniência de uma mudança de posição. Basta encararmos a Religião como um facto social, segundo a tese de Durkheim, sem nos limitarmos aos aspectos puramente estruturais e funcionais do facto em si, para que as perspectivas da análise se tornem mais amplas e flexíveis. Religião e Sociedade se mostram conjugadas indissoluvelmente no plano histórico. Se tomarmos como exemplo o clã judaico de Abraão, do grupo étnico dos Habiru, na Caldéia, veremos que ali se formava ao mesmo tempo uma nova sociedade e uma nova religião que iriam exercer papel fundamental no desenvolvimento da civilização. Ambas, sociedade e religião, nasciam no seio de outra sociedade e outra religião, organizadas, tradicionais, e delas se distinguiam pelas características étnicas e pela destinação histórica tipicamente carismática, determinada pela tendência monoteísta do clã, sob o impulso de crenças que se corporificavam nas manifestações de entidades mitológicas. Abraão, Isaac e Jacob assumiram a direcção do clã e o levariam, através do Egipto, às terras de Canaã, na Palestina, na sangrenta epopeia dos relatos bíblicos.

Temos de distinguir no caso dois elementos conjugados que provocam o nascimento da nova religião: primeiro, o elemento étnico, determinante do agrupamento social; segundo, o elemento mítico, determinante da nova orientação religiosa. Este último não se mostra como subjectivo, mas caracteriza-se pela sua objectividade. É a intervenção activa de influências exógenas na vida do clã, provenientes de manifestações concretas de entidades espirituais. Por mais que isso possa repugnar aos adeptos da interpretação psicológica dos factos, que só aceitam as manifestações espirituais como de ordem subjectiva, os resultados das pesquisas modernas e contemporâneas no campo das Ciências Psíquicas, actualmente confirmadas pelas pesquisas parapsicológicas, com a anterior comprovação das pesquisas metapsíquicasmostram que a intervenção espiritual poderia ter sido objectiva, segundo a descrição dos relatos bíblicos.

Admitindo-se a realidade dessa manifestação concreta, que corresponde a milhares de outras verificadas em todas as latitudes do planeta, podemos chegar à conclusão de que as religiões se originam de uma conjugação de factores humanos e espirituais, nenhum deles podendo ser excluído da análise honesta do facto social, sem que se pratique uma violência contra a realidade mundialmente comprovada. Os fenómenos paranormais aparecem então como o elemento básico do facto social a que chamamos religião. E não é possível, nas condições actuais do desenvolvimento das Ciências, mesmo no plano da Física, opor a essa realidade o simples desmentido dos argumentos, sem provas científicas evidentes da sua impossibilidade.

Assim, a colocação do problema religioso de maneira opiniática, em termos materialistas, pragmáticos ou espiritualistas, nesta altura de nossa evolução cultural, corresponderia a uma verdadeira heresia científica. Não obstante, o desenvolvimento das religiões e a sua institucionalização, em todo o mundo, oferecem motivos de suspeita aos espíritos objectivos, que pretendem analisá-las no seu estado actual. Nesse processo histórico inserem-se naturalmente os elementos do psiquismo comum, nas suas manifestações puramente subjectivas e não raro de ordem patológica. Inserem-se também os elementos psicológicos, hoje bem conhecidos, que determinam a criação do sectarismo religioso e das ordenações institucionais, cujos objectivos são característicos dos interesses sociais. Posições psicológicas individuais ou de grupos, tradições, interesses políticos, preconceitos, superstições, interesses imediatistas, às vezes até mesmo pessoais e outros são elementos que se mesclam no processo de institucionalização das religiões, não raro a partir do próprio momento e da própria fonte em que elas nascem. Mais do que difícil, é quase impossível distingui-los e precisar a importância que tiveram no processo histórico.

As religiões dividem-se em duas categorias fundamentais: as reveladas ou naturais e as inventadas ou artificiais. Independentemente das classificações existentes, podemos dispô-las nessas duas linhas de análise. A religião natural, neste caso, é a que surge espontaneamente, entre os povos primitivos ou civilizados, a partir do ensino de um mestre. As artificiais são criadas no meio civilizado, em momentos de crise religiosa, como no caso do Culto da Razão, de Chaumette, ou da Religião da Humanidade, de Auguste Comte. As reformas religiosas não criam tipos novos, apenas modificam os já existentes em virtude de divergências ou da verificação de distorções havidas no processo de institucionalização. A religião individual, da tese de Bergson, que corresponde à Moralidade da tese anterior de Pestalozzi, não se enquadra nesse panorama por constituir uma superação do plano social e uma libertação total de todo o condicionamento institucional. Não obstante, pela sua conotação inevitável com a realidade social em que se insere, embora individualmente, não escapa à classificação geral de facto social.

Temos assim uma possibilidade maior de esclarecer o que se pode entender por religião como facto social. Não é apenas um facto isolado que ocorre na dinâmica de uma sociedade, mas um facto que brota da realidade social como expressão de sua própria alma, de suas tendências e de suas aspirações, na forma de uma síntese conceptual que engloba, nas suas representações simbólicas e na sua estrutura racional, os elementos básicos do todo social concreto e os vectores ou direcções do psiquismo colectivo. Sem essa compreensão intuitiva, e portanto global, do facto social da religião, todas as formas de encarar e interpretar o fenómeno religioso nos levarão fatalmente a condicionamentos restritivos e esquemáticos, que só poderão aumentar a confusão e agravar as erros cometidos na colocação do problema.

Essa complexidade do fenómeno religioso parece ,explicar de maneira mais profunda a marginalização cultural a que a Religião foi relegada a partir do início do mundo moderno. Confinada nas instituições igrejeiras, abastardada pelo profissionalismo clerical, transformada em ópio do povo e sustentáculo de situações sociais profundamente injustas, catalogada entre os produtos espúrios das fases de ignorância supersticiosa, revertida à condição de promotora de guerras, massacres e asfixia das liberdades humanas, utilizada como arma poderosa nas mais desumanas guerras ideológicas, responsabilizada pelas mais cruéis deformações da criatura humana, a Religião se constituiu em barreira de todo o progresso cultural e foi excluída do mundo da Cultura como indesejável.

Não obstante, graças ao poder subjacente nas estruturas formais das religiões e à conotação vital dos seus princípios com as exigências naturais da consciência humana, a sua posição no processo cultural moderno e contemporâneo caracterizou-se pela ambivalência. A sua exclusão não pode ser total, nem mesmo nas áreas políticas dominadas pelo materialismo ideológico. Encarada ao mesmo tempo com ódio e respeito, numa estranha mistura de desconfiança e temor, encontrou na interpretação pragmática, utilitária, de mal necessário, o salvo-conduto que lhe permite a circulação tolerada nos meios culturais da actualidade.

Por outro lado, a sua presença nos meios culturais é sempre conflitiva. Não há possibilidade de harmonização perfeita entre cultura religiosa e cultura secular, a não ser no plano da religião individual, que rompe o envoltório formal das religiões sociais e é encarada por estas como uma aberração. O resultado mais negativo dessa situação conflitiva foi o aparecimento de outro mal necessário, a implantação mundial da Educação Leiga, que frustrou as possibilidades de reelaboração da experiência religiosa pelas novas gerações e determinou a sedimentação interesseira da sua posição de ambivalência no mundo contemporâneo. Como não podia deixar de acontecer, essa posição ambígua, indefinida e contraditória em si mesma, levou a proporções catastróficas a crise das religiões nos nossos dias.

Felizmente a natureza vital da Religião, as suas profundas raízes ônticas (e não apenas ontológicase a sua inelutável condição de síntese de toda a realidade social, determinaram o aparecimento de uma síntese cultural em que a Religião, reunificada à revelia da fragmentação institucional das religiões, ressurge entranhada na substância do progresso cultural. Não podemos tratar da crise das religiões no nosso tempo sem enquadrá-la nas dimensões desse facto cultural, onde todos os seus problemas se esclarecem de maneira coerente e profunda. As pessoas integradas no formalismo cultural do século, apegadas a princípios exclusivistas e alheias à recomendação cartesiana contra o preconceito e a precipitação, certamente rejeitarão como negativa e parcial a posição que assumo. Mas a coincidência com a verdade histórica (simplesmente incontestável) com a conflitiva realidade cultural dos nossos dias com as perspectivas científicas abertas por essa síntese cultural e já em parte realizadas, asseguram a validade desta interpretação, acima de qualquer facciosismo. Não seria possível desprezar a evidência dos factos e das conotações de princípios filosóficos e científicos com o panorama real, objectivo, das mudanças que se verificam dia-a-dia aos nossos olhos, apenas para satisfazer a determinadas normas convencionais. Acima das convenções transitórias e das conveniências de acomodação ao impreciso espírito da época, deve prevalecer o amor à verdade.

Acelera-se o processo das mudanças. Ampliam-se os conflitos entre o velho e o novo em todas as áreas das actividades humanas. Descontrolam-se os sistemas de segurança em todas as instituições. As religiões até ontem mais sólidas e poderosas agonizam nos seus leitos de riquezas milenarmente acumuladas. As teologias até ontem inabaláveis, como estrelas fixas do pensamento religioso, estremecem como a unidade pitagórica para desencadear a década de novos universos. Rasgam-se as fronteiras do tempo e do espaço. O homem se equilibra, nervoso e inquieto, na fímbria tenuíssima da crosta planetária, entre dois infinitos que se escancaram nos abismos do microcosmo e do macrocosmo.

Não é esta a hora de concessões à ignorância (ilustrada ou não) nem o momento de cachimbadas líricas ao cair do crepúsculo. Estamos na hora da verdade, das proposições claras e precisas, da posição destemida de alerta e vigilância. Precisamos ver, sentir, perceber por todos os nossos sentidos e além dos sentidos, através da intuição e da percepção extra-sensorial, que as peças envelhecidas do xadrez cultural estão sendo mudadas no tabuleiro do mundo. Não há mais lugar para as contemporizações tranquilas do passado, que acobertavam piedosamente os germes dos conflitos actuais. Agora os conflitos explodem e temos de enfrentá-los face a face.

Encarando a crise das religiões como um processo sócio-cultural integrado na realidade imediata, não podemos escamotear a verdade das soluções que já foram propostas para ela com grande antecedência histórica. Trata-se, por sinal, de um processo cíclico bastante conhecido dos estudiosos da História. Só há uma novidade na crise actual: a violenta ampliação das dimensões da crise, que se abre para visões dantescas do passado e do futuro. No passado, deparamos de novo com as regiões infernais percorridas pelo génio de Dante; no futuro, com as revoadas angélicas da criação artística de Gustave DoréNão há o que temer. O passado agoniza e o futuro nos arrebata, pelas mãos de Beatriz, às regiões celestiais. Estamos pisando no limiar da Era Cósmica e as constelações já brilham aos nossos olhos.

/…


José Herculano Pires, Agonia das Religiões / Capítulo 2 – Religião como Facto Social, 3º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel)

terça-feira, 20 de setembro de 2016

O Espiritismo na Arte ~


A Música | parte III
Apresentação das comunicações do Espírito Massenet

(Setembro de 1922)

Após o estudo da música terrestre, passaremos ao estudo das harmonias do espaço e, para isso, resumiremos as instruções que nos foram dadas pelo Espírito Massenet no decorrer de várias sessões. Neste ensinamento, o ilustre compositor age como o fazia sobre a Terra, aplicando o mesmo método dos seus cursos do Conservatório.

Primeiro, ele se ocupará do instrumento e dos meios de percepção. Porém, na vida espiritual não se trata já de instrumentos de cordas nem de sopro, como na Terra. Acontece o mesmo com as percepções, que não são já localizadas, como no corpo humano e, se estendem a todo o corpo espiritual.

A música terrestre não é mais que um eco enfraquecido e ofuscado da música celeste; é a melodia eólica produzida por pesados e grandiosos instrumentos de madeira ou de metal; é o sonho estrelado e divino expresso por formas de uma vida inferior e material. Porém, neste caso, o sonho é uma elevada realidade.

Se os nossos meios de execução, bastante rudimentares, não nos podem dar uma ideia nítida e clara das supremas harmonias, a dificuldade não é menor quando se trata de explicar, através de linguagem vulgar, as regras e as leis da grande sinfonia eterna. Esta dificuldade revelou-se-nos, principalmente no decurso das lições que recebemos do Espírito Massenet e que vamos reproduzir a seguir. Daí resulta que os termos pobres da nossa linguagem humana são impróprios para traduzir todas as belezas da obra divina.

Para exprimir as sublimidades da arte, seria necessária a própria arte, com os seus mais altos e poderosos recursos e os seus mais subtis procedimentos.

Primeira lição do Espírito Massenet
– O papel do perispírito
– Vida espiritual, instrumento e meios de percepção

“Eu me servirei dos termos e das imagens mais simples para vos fazer compreender os fenómenos do espaço. Quando desencarnardes, verificareis que radiações de uma intensidade desigual escapam do perispírito e podem atingir velocidades consideráveis.

Cada espírito, segundo o seu grau de evolução, possui um aparelho vibratório, mais ou menos perfeito, isto é, um instrumento adaptado ao seu ser. Do ser material emanam raios fluídicos pouco subtis, não azulados, cujas vibrações são quase nulas; no ser evoluído, ao contrário, o raio fluídico pode comparar-se a uma corda de um dos vossos instrumentos, muito fina, muito sensível e cujas vibrações são excessivamente agudas. O ser não evoluído possuirá essa mesma corda, como se ela estivesse mergulhada em pez (i).

Eis, agora, o ser desencarnado no espaço. Quando as suas tendências o levarem em direcção à matéria, os seus raios fluídicos transmitirão ao perispírito apenas sensações materiais. Porém, quanto mais a evolução se acentua, mais as sensações materiais se atenuam e se apagam, o feixe de raios fluídicos adquire mais subtileza, potência, delicadeza, suavidade.

Sob a influência da prece, com os conselhos e a assistência dos seus guias, esse espírito irá evoluir em uma atmosfera totalmente fluídica. As suas próprias radiações se encontrarão com as correntes fluídicas do espaço e daí resultarão sensações maravilhosas de sonoridade, percebidas por todo o ser.

ser evoluído vive em esferas fluídicas onde reinam correntes de uma intensidade inegável e de composição diversa. As ondas musicais anulam-se ao contacto imediato com o vosso planeta, cujos fluidos são demasiado materiais. É preciso subir mais alto para perceber os acordes da lira celeste. Existem mesmo seres que, sob o ponto de vista moral, são perfeitos, mas não sentem as vibrações. É necessária uma educação estética; em breve falaremos disso.”

– Comentário

O corpo humano é um instrumento complexo e maravilhoso, que se adapta ao meio terrestre e às nossas múltiplas necessidades. Porém, ele é apenas um revestimento material, relativamente grosseiro, desse corpo subtil, o perispírito, do qual Massenet nos fala e que todos nós possuímos durante a vida, como também depois da morte.

A existência desse perispírito é demonstrada pelos fenómenos de exteriorização dos vivos e pelas aparições fotografadas dos mortos, frequentemente relatadas nesta revista (ii).

Esse corpo subtil, admirável por sua flexibilidade e sensibilidade, é o envelope imperecível da alma e, da mesma forma que ela; susceptível de depuração e progresso. Ele vibra aos menores impulsos do espírito e dele transmite ao corpo físico as vibrações inevitavelmente diminuídas. Eis por que, na vida do espaço, durante o sono, assim como depois da morte, o perispírito sente mais vivamente as influências dos meios em que penetra. (iii) Ele possui recursos mais amplos, meios de percepção desconhecidos dos homens, mas, dos quais certas pessoas conservam a intuição ao despertar, depois do desprendimento e nas viagens espirituais durante a noite.

Neste conjunto que constitui o homem, a alma ou inteligência é a nota dominante. A correlação entre os dois invólucros, físico e perispiritual, relaciona-se a uma única lei: a das vibrações.

O papel e o funcionamento do perispírito permanecem como um dos problemas mais interessantes do Espiritismo; ele contém, em gérmen, todos os segredos da fisiologia e da psicologia, que se esclarecerão à medida que as nossas relações com os desencarnados se forem ampliando e multiplicando. Por este meio, obteremos novos dados sobre as condições da vida no Além e, em geral, sobre o modo de acção do espírito liberto do corpo material.

/…

(i) Pez: designação comum de substâncias betuminosas, sólidas ou semi-sólidas, naturais ou artificiais, resíduo da destilação de líquidos densos, de alcatrões, etc.; piche. (N.T.)
(ii) Trata-se da Revue Spirite, onde estes artigos foram publicados originalmente. (N.T.)
(iii) E, o que pensar da "Cremação" no contexto?!... Nota desta publicação.


Ainda no tema "Cremação" e, no contexto, dois aditamento como Nota desta publicação:

1. Em “O Livro dos Espíritos” questão 164. Kardec pergunta – A perturbação que se segue à separação da alma e do corpo é do mesmo grau e da mesma duração para todos os Espíritos?

A resposta dos Espíritos – Não; depende da elevação de cada um. Aquele que já está purificado reconhece-se quase imediatamente, visto que se libertou da matéria antes que cessasse a vida do corpo; ao passo que o homem carnal, aquele cuja consciência ainda não está pura, guarda durante muito mais tempo a impressão da matéria.

2. Em “Rumo às Estrelas” de Dennis Bradley, Livro 3 – Diálogos com Johannes / Capítulo VI – Destruição da religião do Cristo / 192. Bradley, questiona o Espírito Johannes:

Bradley – E sobre a cremação, que nos diz? Para mim isso não representa nenhum problema, já que pouco me importa o que suceda ao corpo depois que o espírito o abandona. Pergunto-o em atenção aos que pensam de modo diferente.

Johannes – Faço-o saber, meu filho, que você tem o hábito de tirar conclusões muitas vezes bem prematuras. Em certo sentido equivoca-se quanto à cremação dos cadáveres. Aos meus olhos é um crime conservar o envoltório (*) que reveste a alma e o espírito, mas por outro lado você não tem razão em crer que a súbita destruição do corpo pelo fogo não seja prejudicial. Em parte o é. Porque, como sabe, existe um frágil envoltório que rodeia a alma, o qual se dissipa pouco depois da morte. Algo parecido com uma membrana e que adquire grande sensibilidade dentro de uma semana depois da morte. Se se destrói de modo completo o corpo, esta membrana, que de certo modo ainda está ligada ao corpo, sofre grave dano e, o seu sofrimento transmite-se à parte desencarnada. Assim, portanto, não deveis sorrir dos chamados ignorantes que não crêem que o corpo se separe inteiramente do resto depois da morte. Antes que a alma e o espírito deixem as trevas para onde vão logo que deixam o corpo, essa membrana se dissipa – mas não imediatamente.

Neste ponto da comunicação alguém o interrompeu com uma pergunta: “Corpo astral?”

Johannes – Não. Tolice. Não se trata de um corpo. É algo perecível, meio corporal, meio mental, uma coisa que se dissipa depois da morte mas que os clarividentes podem ver a rodear a alma.

(*) Alusão aos egípcios, conservadores de cadáveres.



LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte VIII A Música (Parte 3) – Apresentação das comunicações do Espírito Massenet; Primeira lição do Espírito Massenet – O papel do perispírito – Vida espiritual, instrumento e meios de percepção – Comentário, 26º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Mona Lisa 1503-1507 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)

domingo, 11 de setembro de 2016

Da sombra do dogma à luz da razão ~

Natureza da Revelação Espírita (XII, Resumo)

   Uma das questões mais importantes entre as que são colocadas a abrir este capítulo é esta: qual a autoridade da revelação espírita, uma vez que emana de seres cujo saber é limitado e que não são infalíveis?

   A objecção seria séria se esta revelação só consistisse nos ensinamentos dos Espíritos, se tivéssemos de a receber através deles exclusivamente e aceitá-la de olhos fechados; deixa de ter valor a partir do momento em que o homem lhe junta o concurso da sua inteligência e da sua avaliação; porque os Espíritos se limitam a colocá-lo no caminho e das deduções que pode fazer pela observação dos factos. Ora, as manifestações e as suas inúmeras variedades são factos; o homem estuda-as e procura-lhes a lei; é ajudado neste trabalho pelos Espíritos de todas as ordens, que são mais colaboradores do que reveladores, no sentido usual do termo; submete as suas falas ao controlo da lógica e do bom senso: desta maneira, beneficia dos conhecimentos especiais que devem à sua posição, sem abdicarem do uso da sua própria razão.

   Não sendo os Espíritos mais do que as almas dos homens, ao comunicarmos com eles não saímos da humanidade, circunstância capital a considerar. Os homens de génio, que foram os archotes da humanidade, saíram portanto do mundo dos Espíritos, assim como lá entraram depois de deixarem a Terra. Dado que os Espíritos podem comunicar com os homens, estes mesmos génios podem dar-lhes instruções sob a forma espiritual tal como o fizeram enquanto vivos; são invisíveis em vez de serem visíveis e é essa toda a diferença. A sua experiência e o seu saber não devem ser menores e se a sua palavra, como homens, tiver autoridade, não a deverá ter em menor grau por estarem no mundo dos Espíritos.

   Mas não só os Espíritos superiores que se manifestam, mas também os Espíritos de todas as ordens; isso foi necessário para nos iniciar no verdadeiro carácter do mundo espiritual, mostrando-o sob todos os seus aspectos; com isso, as relações entre o visível e o mundo invisível ficam mais íntimas, a conexão é mais evidente; vemos mais claramente de onde vimos e para onde vamos: é essa a finalidade essencial destas manifestações. Todos os Espíritos, seja qual for o grau que atingiram, nos ensinam portanto qualquer coisa, mas como são mais ou menos esclarecidos, compete-nos a nós discernir o que há neles de bom ou de mau e retirar o benefício que os seus ensinamentos comportam; ora todos, sejam eles quais forem, podem ensinar-nos ou revelar-nos coisas que ignoramos e que, sem eles, não saberíamos.

   Os grandes espíritos encarnados são individualidades poderosas, sem dúvida, mas cuja acção está restringida e é necessariamente lenta a propagar-se. Se um só de entre eles, fosse ele Elias ou Moisés, Sócrates ou Platão, tivesse vindo nestes últimos tempos revelar aos homens o estado do mundo espiritual, quem teria provado a verdade dessas afirmações nesta época de cepticismo? Não o teriam considerado um sonhador ou um utópico? E admitindo que era detentor da verdade absoluta, teriam decorrido séculos antes das suas ideias serem aceites pelas massas. Deus, na sua sabedoria, não quis que assim fosse; quis que os ensinamentos fossem prestados pelos próprios Espíritos e não pelos encarnados, para convencer da sua existência, e que acontecesse simultaneamente em toda a Terra, quer para os propagar mais rapidamente, quer para que se visse na coincidência do ensino uma prova da verdade, possuindo assim cada um os meios para se convencer sozinho.

   Os Espíritos não vêm libertar o homem do trabalho do estudo e das investigações; não lhes trazem nenhuma ciência já acabada; naquilo que pode encontrar por si, deixam-no entregue a si próprio; é o que hoje os Espíritos sabem perfeitamente. Desde há muito que a experiência demonstrou o erro da opinião que atribuía aos Espíritos todo o conhecimento e toda a sabedoria e que bastava dirigir-se ao primeiro Espírito a aparecer para ficar a saber todas as coisas. Saídos da humanidade, os Espíritos são uma das suas faces; tal como na Terra há os superiores e os vulgares. Portanto, muitos sabem filosoficamente menos que certos homens; dizem o que sabem, nem mais nem menos; tal como, entre os homens, os mais evoluídos podem instruir-nos sobre muitas coisas, dar-nos conselhos mais judiciosos que os atrasados. Pedir conselhos aos Espíritos não é de modo nenhum dirigirmo-nos a forças sobrenaturais, mas sim aos nossos iguais, aqueles mesmos a quem nos dirigíamos quando vivos: aos pais, aos amigos ou aos indivíduos mais esclarecidos que nós. É disto que nos devemos convencer e o que é ignorado pelos que, não tendo estudado o espiritismo, têm uma ideia completamente falsa da natureza do mundo dos espíritos e das relações de além-túmulo.

   Qual é então a utilidade destas manifestações ou, se quisermos, desta revelação, se os Espíritos não sabem mais do que nós ou se não nos dizem tudo o que sabem?

   Primeiro, conforme dissemos, abstêm-se de nos dar o que podemos conseguir com o trabalho; em segundo lugar, há coisas que não lhes é permitido revelar, porque o nosso grau de evolução não comporta. Mas, independentemente disto, as condições da sua nova existência ampliam o círculo das suas percepções; vêem o que não viam na Terra; ultrapassados os entraves da matéria, libertados dos cuidados da vida corporal, avaliam as coisas sob um ponto de vista mais elevado e, por isso, de forma mais sã; a sua perspicácia abarca um horizonte mais vasto; compreendem os seus erros, rectificam as suas ideias e libertam-se dos preconceitos humanos.

   É nisto que consiste a superioridade dos Espíritos sobre a humanidade corporal e no que os seus conselhos podem ser, consoante o seu grau de evolução, mais sensatos e mais desinteressados que os dos encarnados. Além disso, o meio em que se encontram permite-lhes iniciar-nos nas coisas da vida futura, que desconhecemos e que não podemos aprender naquele em que nos encontramos. Até esse dia, o homem só tinha criado hipóteses sobre o futuro; é por isso que as suas convicções sobre o futuro eram partilhadas em teorias tão numerosas e divergentes, desde as teorias da negação até às fantásticas concepções do inferno e do Paraíso. Hoje, são os testemunhos oculares, os próprios autores da vida de além-túmulo, que nos vêm dizer do que se trata e estes são os únicos a poder fazê-lo. Estas manifestações serviram portanto para nos darem a conhecer o mundo invisível que nos rodeia e de que não suspeitávamos e só este conhecimento já seria de importância capital, partindo do princípio que os Espíritos são incapazes de nos ensinar alguma coisa mais.

   Se fosseis para um país novo para vós, recusaríeis as indicações do mais humilde camponês que encontrásseis? Recusar-vos-íeis a questioná-lo sobre o estado da estrada, por não ser mais que um camponês? Certamente não esperaríeis dele esclarecimentos de muito elevado alcance, mas tal como é na sua esfera poderá, em certos pontos, elucidar-vos melhor que um sábio que não conheça a região. Retirareis das suas indicações consequências que ele mesmo não poderia retirar, mas não deixou por isso de ser um instrumento útil para as vossas observações, mesmo que só tivesse servido para ficardes a conhecer melhor os hábitos dos camponeses. Passa-se o mesmo nos contactos com os Espíritos, onde o mais pequeno pode servir para nos ensinar qualquer coisa.

   Uma comparação vulgar fará com que se compreenda melhor a situação.

   Um navio carregado de emigrantes parte para um destino longínquo; leva homens de todas as condições, parentes e amigos dos que ficam. Vimos a saber que esse navio naufragou; não ficou qualquer rasto, nenhumas notícias chegaram sobre a sua sorte; pensa-se que todos os viajantes morreram e o luto reside em todas as famílias. No entanto, toda a tripulação, sem uma excepção, arribou a uma Terra desconhecida, abundante e fértil, onde todos vivem felizes sob um céu clemente; mas nada se sabe. Ora, um certo dia, outro navio aborda essa Terra; encontra ali todos os náufragos sãos e salvos. A feliz notícia espalha-se com rapidez de um relâmpago; cada qual diz para consigo: «Os nossos amigos não estão perdidos!» e louvam a Deus. Não podem ver-se, mas correspondem-se; trocam mensagens de afecto e eis que a alegria sucede à tristeza.

   É assim a imagem da vida terrestre e da vida de além-túmulo, antes e depois da revelação moderna; esta, semelhante ao segundo navio, traz-nos a boa-nova da sobrevivência dos que nos são queridos e a certeza de um dia nos reencontrarmos; a dúvida quanto à sua sorte e sobre a nossa deixa de existir; o desalento apaga-se face à esperança.

   Mas outros resultados vêm fecundar esta revelação. Deus, considerando a humanidade madura para penetrar no mistério do seu próprio destino e contemplar com sangue-frio novas maravilhas, permitiu que o véu que separava o mundo invisível do mundo visível se levantasse. As manifestações nada têm de extra-humano; é a humanidade espiritual que vem conversar com a humanidade corporal e dizer-lhe:

   «Nós existimos; portanto, o vazio não existe; é isto que nós somos e é isto que vós sereis; o futuro pertence-vos tal como nos pertence a nós. Caminháveis nas trevas; nós vimos iluminar o vosso caminho e torná-lo praticável. Caminháveis ao acaso; nós mostramo-vos o objectivo. A vida terrestre era tudo para vós, porque não víeis nada para lá; nós vimos dizer-vos, mostrando-vos a vida espiritual, que a vida terrestre não é nada. A vossa visão parava no túmulo; nós mostramo-vos para além dele um horizonte esplêndido. Não sabíeis por que sofríeis na Terra; agora, no sofrimento, vedes a justiça de Deus. O bem não dava frutos visíveis para o futuro; passará agora a ter uma finalidade e será uma necessidade. A fraternidade não passava de uma bela teoria, mas está agora assente sobre uma lei da natureza. Sob o império da convicção de que tudo acaba com a vida, a imensidão está vazia, o egoísmo reina como senhor entre vós e a vossa palavra de ordem é: "Cada um por si"; com a certeza no futuro, os espaços infinitos povoam-se infinitamente, o vazio e a solidão não estão em lado nenhum, a solidariedade une todos os seres para cá e para lá do túmulo; é o reino da caridade com a divisa: "Cada um por todos e todos por um." Enfim, no fim da vida dizíeis um eterno adeus aos que vos são queridos; agora dir-lhes-eis um "até à vista".»

   São estes, em resumo, os resultados da nova revelação; ela veio preencher o vazio cavado pela incredulidade, levantar as coragens abatidas pela perspectiva do vazio e dar a todas as coisas a razão de ser. Não terá este resultado então importância só porque os Espíritos não vêm resolver os problemas da ciência, dar saber aos ignorantes e aos preguiçosos os meios de se enriquecerem sem esforço? No entanto, os frutos que o homem daí deve retirar não são só para a vida futura; usufruirá deles na Terra pela transformação que essas novas crenças devem necessariamente operar no seu carácter, nos seus gostos, nas suas tendências e, por consequência, sobre os hábitos e as relações sociais. Pondo um fim ao reino do egoísmo, do orgulho e da incredulidade, preparam o do bem, que é o reino de Deus anunciado por Cristo (i).

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(i) O uso do artigo antes da palavra Cristo (do grego Christosunção), empregue num sentido absoluto, é mais correcto, atendendo que este nome não é o do Messias de Nazaré, mas uma qualidade tomada substantivamente. Diremos então: Jesus era Cristo; era o Cristo anunciado; a morte do Cristo e não de Cristo enquanto se diz: a morte de Jesus e não do Jesus. Em Jesus Cristo, os dois nomes reunidos formam um só nome próprio. É pela mesma razão que dizemos que o Buda Gautama adquiriu a dignidade de Buda devido às suas virtudes e às suas austeridades; a vida do Buda, tal como dizemos o exército do Faraó e não de Faraó; Henrique IV era rei; o título de rei; a morte do rei e não de rei(N. do A.)



ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo I NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA números de 57 a 62 e, últimos (XII), 14º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Inquietações Primaveris ~


os voluntários | da morte

A tendência para o suicídio caracteriza os candidatos ao voluntariado da morte. A necrofilia é uma componente natural do psiquismo de todos os seres vivos. A teoria, antiga e actual, da existência de povos necrófilos, como os egípcios e os japoneses, por exemplo, é discriminativa e exagerada. Mas não há dúvida de que a necrofilia, como todas as variantes psico-afectivas, se acentua mais em alguns povos, em razão de concepções religiosas, tradições de honra, condicionamentos culturais e morais, heranças tribais sobreviventes e até mesmo condições mesológicas, como nas regiões sujeitas a catástrofes geológicas periódicas. A verdade é que em todos os povos, como o revelam as estatísticas do suicídio em todo o mundo, as ocorrências dessa natureza se verificam com alternativas de crescimento e, também, de diminuição. É evidente a existência de uma repercussão social do suicídio no nosso tempo, mais acentuada agora pela divulgação mais intensa dos meios de comunicação. A teoria parapsicológica de Jung, sobre as coincidências significativas, sugere a presença de uma forma de contágio mental e afectivo nos meios sociais. Seja como for, a existência do suicídio no reino animal, como elemento ligado à própria reprodução da espécie – como nas aranhas, escorpiões e abelhas – prova que a tendência para o suicídio existe em todos nós e pode ser intensificada não só por factores individuais, mas também por factores de ordem exterior. A concepção antropomórfica de Deus, levou as religiões a considerarem geralmente o suicídio como um acto de rebeldia e desobediência a Deus. Disso resultam as condenações assustadoras das religiões que negam o socorro dos sacramentos à alma do suicida. Essa também é uma manifestação da necrofilia nas religiões, que nega o amparo e a ajuda precisamente aos seres mais necessitados, procurando matar a própria alma do suicida, numa exasperação sádica do instinto da morte. Disso resultam as condenações assustadoras das religiões que negam o socorro dos sacramentos à alma do suicida. Embora essa medida seja, duma maneira geral, tomada no sentido de repressão ao suicídio, a impiedade é chocante para com as vítimas do suicídio e para com as suas famílias, que se sentem impedidas de dar ao suicida o menor dos consolos. Essa medida extrema, como alias todas as dessa ordem, servem apenas para exasperar o instinto de morte nos meios atingidos pela desgraça. Do ponto de vista da Ciência, da Parapsicologia e do Espiritismo, o suicídio, que interrompe de maneira brusca o processo vital, causa transtornos graves a quem o pratica. A mente se conturba já antes da prática do acto criminoso, pois o suicídio é um auto-assassínio, não raro longamente meditado. Seja dessa natureza ou determinado por condições patológicas, loucura ou decepções violentas, é sempre uma interrupção brusca do curso vital de uma existência necessária. Esse corte violento de todas as possibilidades em curso produz um choque reversivo na estrutura psicológica mental e afectiva do suicida, levando-o a um estado de confusão e angústia que pode durar longo tempo. Deus não castiga o suicida, é ele mesmo, o suicida, que se castiga no próprio acto de se suicidar. Negar socorro religioso a um espírito nessas condições é uma impiedade, é abandonar a si mesmo o espírito em desequilíbrio. Pensar no suicida como num condenado eterno é aumentar a sua angústia e o seu desespero, colocando-nos na posição de torturadores cruéis. Além disso, há suicídios que se justificam, como no caso de imolação voluntária para salvar outras pessoas. Essa intenção, se for justa e real, e não apenas fantasiosa ou criada por precipitações, abranda o chamado martírio dos suicidas, tão insistentemente divulgado no meio espírita com a finalidade de evitar esses actos. Cada pensamento, cada palavra, cada gesto nosso tem as suas repercussões inevitáveis no curso existencial. As leis naturais, que tanto são materiais como espirituais, não podem ser violadas sem que essa violação nos acarrete as consequências do abuso. A ordem universal, instituída em todo o Universo, não se comprova apenas na vida carnal, mas em todos os planos existenciais. Não se deve temer no suicídio o suposto castigo de Deus, mas as consequências naturais do acto de violação de um processo vital. Temos de compreender a dinâmica da Natureza, tanto para viver como para morrer. Temos de inteirar-nos do aspecto racional da realidade em que vivemos e morremos, para escaparmos à ilusão do antropomorfismo religioso, carregado de misticismo e de medo, que nos faz ver nos processos naturais a mão oculta de um Deus que não usa as mãos mas o seu poder mental para nos levar ao conhecimento de nós mesmos, dos nossos deveres e dos compromissos espirituais. Só assim poderemos racionalizar a nossa vida de maneira espontânea e clara, evitando os caminhos tortuosos de crenças e descrenças antigas. O acto de crer é emotivo e antecede a razão. A fé nascida da crença é sugestiva e, portanto, emocional. Pode levar-nos à paixão e ao fanatismo, gerando os monstros sagrados dos torturadores e assassinos ao serviço de Deus. Só a razão, assente na experiência objectiva e em princípios lógicos pode dar-nos a fé verdadeira que nos permite dizer, como Dennis Bladley: “Eu não acredito, eu tenho a certeza.” O saber é superior ao crer, pois é uma conquista da experiência individual no trato directo com os factos reais. O voluntariado da morte não cresce nas searas positivas do saber, mas nos campos fantasiosos da ilusão. Quando a razão periclita e desfalece ao impacto das emoções tumultuadas, nos embates do mundo, podemos perder os freios da razão e entregar-nos ao desespero. Nesse caso a razão só poderá restabelecer o seu controlo se for socorrida pela vontade amadurecida no tempo.

Acusa-se a razão de frieza e insensibilidade, mas a razão possui o calor do entusiasmo e a sensibilidade da justiça sem venda nos olhos. A visão clara, precisa e serena da realidade pode explodir na razão, em surtos de indignação contra os corruptores da verdade. Podemos aferir esse facto nas páginas do Evangelho, nas passagens decisivas em que o Cristo desferiu os raios da sua indignação contra a hipocrisia e a astúcia interesseira dos fariseus. Os que amam a verdade não podem tolerar a mentira nem se fazerem cúmplices dos exploradores da mentira.

A morte não é uma porta de escape para os fracos, mas a catapulta da transcendência para os bravos que enfrentam as batalhas da vida sem se acobardarem. Ninguém é obrigado a amadurecer antes do tempo, mas os que já estão maduros não podem regredir sem trair a si mesmos e à verdade.

Se existem as atenuantes do suicídio, como já vimos, a verdade é que elas são mais rigorosas do que as exigências da vida. Isto porque a programação de cada vida está incluída no processo da evolução geral do planeta. Temos as nossas obrigações a cumprir na encarnação, não somente em nosso benefício, mas também a favor dos que foram designados para participar das nossas lutas. Não podemos pensar no suicida que escapou aos seus deveres, sem nos lembrarmos também dos que ficaram abandonados a si mesmos perante a fuga e a deserção, ante o engolfar-se o suicida no seu egoísmo, como se não tivesse com eles nenhum compromisso. Por essas razões colectivas, e não por motivos particulares, nem pelo pressuposto absurdo da Ira de Deus é, que o crime da fuga se transforma em traição, que pesará fatalmente na consciência culpada. O voluntariado da morte não é desastroso por ser da morte – pois todos morremos – mas por ser a legião dos traidores da vida e dos que ficaram vivos na Terra.

Os batalhões de voluntários da morte são sempre seguidos, em todo o mundo, pelo cortejo dos frustrados da vida. É um cortejo esfarrapado, esquálido, formado pelos milhões de crianças natimortas ou que não conseguiram sobreviver ao nascimento mais do que alguns dias. Pode deduzir-se, da lei de causa e efeito, que esses bandos anónimos, procedentes, em geral, dos subúrbios miseráveis das metrópoles ricas, se constituem de ex-voluntários que voltam à encarnação ansiosos por retomar as oportunidades de realização que desprezaram no acto do suicídio. Numa reunião mediúnica de que participávamos, manifestou-se um espírito que, a princípio, parecia de um brincalhão. Reclamava por o terem convencido, no plano espiritual, a reencarnar-se para aliviar na vida terrena a consciência pesada. E explicava: “Aceitei a proposta, submeti-me a todos os preparativos, suportei pacientemente os pesados meses de uma gestação em que eu e a minha nova mãe passamos momentos difíceis. Por fim, nasci, mas não tive a possibilidade de sentir o gosto da nova vida. Morri e voltei imediatamente para o mundo espiritual. De que me serviu todo esse sacrifício? Quero que vocês me expliquem, pois aqui não tenho possibilidade de conversar com ninguém que entenda deste assunto. Aí na Terra vivemos em cambulhada, mas aqui a situação é diferente, cada qual tem de se ajeitar no meio que lhe é próprio.” Nesse momento o médium tomou uma posição estática, parecia caído em êxtase. Logo a seguir voltou à naturalidade e disse: “O sujeito que me fez passar por essa chegou e está a explicar-me que ganhei tempo. Passei por tudo isso para aliviar a minha consciência do remorso do suicídio. Já me sinto mais aliviado.”

Esta história, real, levanta uma ponta do véu que oculta, aos nossos olhos, o mistério das mortes prematuras. Não existe acaso nos processos da natureza. Existem leis. Pelos dados fornecidos pelo espírito frustrado, foi relativamente fácil, comprovarmos a realidade dos factos. Nenhum dos participantes da reunião, conhecia nenhuma das pessoas vivas relacionadas com o caso, mas os factos-chave do suicídio e do nascimento frustrado, foram comprovados. Nos anais das Sociedades de Pesquisas Psíquicas da Europa e da América, há numerosos registos de casos desta natureza. Todas as interpretações teóricas contrárias à teoria espírita, parecem arranjos, mal costurados, ante a evidência e a coerência das provas obtidas.

Há pessoas, que não aceitam estes factos mediúnicos, alegando que tudo neles se passa de maneira muito semelhante aos factos da vida terrena. Não percebem, que estão condicionadas pelas fantasias do maravilhoso, oferecidas pelas religiões de que já se desligaram sem abandonar os seus fardos. A ideia de que o morto é uma alma do outro mundo, transformou-se numa entidade mitológica, continua a funcionar, no inconsciente dessas criaturas, que são contraditórias sem o perceber. Os reflexos mentais, condicionados, exigem maravilhas dos pobres mortos, humanos, que continuam humanos, por não terem conseguido ainda alcançar os planos da angelitude. Os espíritos humanos, são almas humanas, que animaram corpos humanos na Terra. Quando os espíritos, se apresentam de maneira mirabolante, não merecem o crédito dos estudiosos do assunto, mas conseguem, facilmente, encantar e fascinar os amantes do maravilhoso. Essa, como assinalou Kardec desde meados do século XIX, é a maior dificuldade para a aceitação da realidade espiritual.

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José Herculano Pires, Educação para a Morte, 17 – Os Voluntários da Morte, 22º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)