Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 2 de setembro de 2023

Hippolyte Léon Denisard Rivail


Uma Noite Esquecida ou 
a Feiticeira Manouza
(Milésima segunda noite dos contos árabes)

~~ Ditado pelo Espírito Frédéric Soulié
(Segundo artigo)

Prefácio da Revue Spirite. (repetição)

No corrente ano de 1856, as experiências de manifestações espíritas que se realizavam em casa do Sr. B... (*), na Rua Lamartine, atraíram uma assistência selecta e numerosa. Eram mais ou menos sérios os Espíritos que se manifestavam neste círculo; alguns disseram coisas de admirável sabedoria e notável profundidade, como se pode julgar por OLivro dos Espíritos, que ali fora começado e em grande parte realizado. Outros eram menos sérios; o seu humor jovial prestava-se de bom grado a piadas, mas daquelas que jamais se afastavam das conveniências. Nesse número se encontrava Frédéric Soulié, que veio espontaneamente, sem haver sido evocado, e cujas visitas inesperadas eram sempre um passatempo agradável para os membros deste círculo. A sua conversa era espirituosa, fina, mordaz, coerente e nunca desmentiu o autor das Mémoires du diable; aliás, nunca se deixou envolver pela lisonja; quando lhe dirigiam algumas perguntas um tanto mais espinhosas de filosofia, confessava francamente a sua incapacidade para resolvê-las, dizendo que ainda se encontrava bastante ligado à matéria e que preferia as coisas alegres às sérias.

médium que lhe servia de intérprete era a Srta. Caroline B..., uma das filhas do dono da casa, do género exclusivamente passivo e que não tinha a menor consciência do que escrevia, podendo rir-se e conversar como bem lhe aprouvesse, o que fazia com prazer, enquanto a sua mão se movimentava sobre o papel. Durante muito tempo o meio mecânico empregado foi o da cesta de bico(**) Mais tarde a médium serviu-se da psicografia (i) directa.

Perguntarão, certamente, que provas possuímos de que o Espírito comunicante era o de Frédéric Soulié e não um outro qualquer. Não nos cabe tratar aqui da questão da identidade dos Espíritos; diremos somente que a de Soulié se revelou por detalhes de tal forma numerosos que não podem escapar a uma observação atenta. Muitas vezes uma palavra, um gesto, um facto pessoal referido vinham confirmar que se tratava dele mesmo; por diversas vezes deixou a sua assinatura, que foi confrontada com as originais. Um dia pediram-lhe que desse o seu retrato e a médium, que não sabe desenhar, e que nem mesmo nunca o tinha visto, fez um esboço de uma semelhança extraordinária.

Ninguém da reunião havia tido relações com ele quando vivia; por que, então, vinha sem ter sido evocado? É que se tinha ligado a um dos assistentes, sem nunca ter revelado o motivo; só aparecia quando essa pessoa se encontrava presente; entrava com ela e com ela se ia embora, de sorte que, quando não estava presente, ela também não vinha e, coisa bizarra! quando Soulié estava lá era difícil, ou mesmo impossível, haver comunicações de outros Espíritos; o próprio Espírito familiar da casa cedia-lhe o lugar, dizendo, por delicadeza, que deveria fazer as honras da casa.

Um dia anunciou que nos daria um romance à sua maneira e, realmente, algum tempo depois começou uma narrativa cujo início era muito promissor. O assunto relacionava-se com os druidas e a cena passava-se na Armórica, ao tempo da dominação romana; infelizmente, parece que se apavorou diante da tarefa que havia empreendido, porquanto – é preciso que se diga  – o trabalho assíduo nunca foi o seu forte, confessando que encontrava mais satisfação na vida preguiçosa. Depois de haver ditado algumas páginas, abandonou o romance mas disse que escreveria outro, que lhe daria menos trabalho. Foi então que escreveu o conto cuja publicação iniciamos. Mais de trinta pessoas assistiram a essa produção e podem atestar-lhe a origem. Não a damos absolutamente como obra de elevado alcance filosófico, mas como curiosa amostra de um trabalho de grande fôlego obtido dos Espíritos. Notar-se-á como tudo nele tem sequência, como tudo se encadeia com uma arte admirável. O que há de mais extraordinário é que esse relato foi retomado em cinco ou seis ocasiões diferentes e, muitas vezes, após interrupções de duas ou três semanas. Ora, de cada vez que recomeçava, o assunto continuava como se tivesse sido escrito de um sorvo, sem rasuras, sem aditamentos, e sem que houvesse necessidade de lembrar o que antes já fora relatado. Nós o damos, tal qual saiu do lápis da médium, sem nada haver mudado, nem no estilo, nem nas ideias e nem no encadeamento dos factos. Algumas repetições de palavras e pequenos senão de ortografia foram percebidos, tendo o próprio Soulié nos encarregado de os corrigir, dizendo que nos assistiria nesse mister. Quando tudo estava terminado ele quis rever o conjunto, ao qual fez apenas algumas rectificações sem importância, autorizando a sua publicação como bem o entendêssemos e cedendo, com satisfação, os direitos de autor. Todavia, julgamos por bem não o inserir na Revista sem o consentimento formal do seu amigo póstumo, a quem pertencia de direito, porque foi graças à sua presença e à sua solicitação que nos tornamos devedores dessa produção de além-túmulo. O título foi dado pelo próprio Espírito Frédéric Soulié.
A. K.

Uma Noite Esquecida

(Segunda parte, Segundo artigo)

Observação – Os algarismos romanos indicam as interrupções que ocorreram no ditado. Frequentemente, não era retomado senão depois de duas ou três semanas e, apesar disso, como já fizemos observar anteriormente, o relato desenvolve-se como se tivesse sido escrito de um só fôlego; e isso não constitui uma das características menos curiosas desta produção de além-túmulo. O estilo é correcto e perfeitamente apropriado ao assunto. Repetimos, para aqueles que poderiam ver no ditado uma coisa fútil, que não o consideramos como obra filosófica, mas como de estudo. Para o estudioso, nada é inútil: ele sabe aproveitar-se de tudo para aprofundar a ciência espírita que estuda.

III

Nada, entretanto, parecia perturbar a nossa felicidade; tudo era calmo à nossa volta. Vivíamos em perfeita segurança quando, uma noite, no momento em que nos julgávamos mais seguros, apareceu, de repente, ao nosso lado (posso dizer assim porque estávamos numa rotunda, para onde confluíam várias aléias) o sultão, acompanhado do seu grão-vizir. Ambos apresentavam uma expressão apavorante: a cólera havia-lhes transtornado a sua fisionomia; estavam, principalmente o sultão, numa exasperação facilmente compreensível. O primeiro pensamento do sultão foi mandar matar-me, mas, sabendo a que família pertenço e a sorte que o esperava, caso ousasse arrancar um só fio de cabelo da minha cabeça, fez de conta (à sua chegada eu me afastara para o lado) que não me tinha visto e precipitou-se furioso sobre Nazara, a quem prometeu não fazer demorar o castigo que ela merecia. Levou-a consigo, sempre acompanhado do vizir. Quanto a mim, passado o primeiro momento de susto, apressei-me a voltar ao meu palácio a fim de procurar um meio de subtrair a estrela de minha vida das mãos daquele bárbaro, que, provavelmente, iria destruir essa preciosa existência.

– E depois, que fizeste? perguntou Manouza; porque, afinal de contas, não vejo em tudo isso razão para te atormentares tanto para tirar a tua amante do perigo em que a colocaste por tua própria culpa. A mim me pareces um pobre homem que não tem coragem nem vontade quando se trata de coisas difíceis.

– Antes de condenar, Manouza, deves escutar. Não vim a ti sem antes haver examinado todos os meios ao meu alcance. Fiz ofertas ao sultão: prometi-lhe ouro, jóias, camelos e até palácios, se ele devolvesse a minha doce gazela. Desdenhou de tudo. Vendo repelidos os meus sacrifícios, fiz ameaças, que também não foram levadas em consideração: riu-se de tudo e zombou de mim. Também tentei introduzir-me no seu palácio; corrompi escravos e cheguei aos quartos. Entretanto, apesar de todos os meus esforços, não consegui chegar até a minha bem-amada.

– Tu és franco, Noureddin; a tua sinceridade merece uma recompensa e terás aquilo que vens buscar. Far-te-ei ver uma coisa terrível: se tiveres a força de suportar a prova pela qual te farei passar, fica certo de que reencontrarás a tua felicidade de outrora. Dou-te cinco minutos para te decidires.

Esgotado esse tempo, Noureddin disse a Manouza que estava pronto a fazer tudo quanto ela quisesse para salvar Nazara. Então a feiticeira, levantando-se, disse-lhe: Pois bem! – Segue. Depois, abrindo uma porta situada no fundo da sala, fê-lo passar à sua frente. Atravessaram um pátio sombrio, repleto de coisas horríveis: serpentes, sapos que passeavam gravemente em companhia de gatos pretos, os quais transmitiam um ar de domínio no meio desses animais imundos.

IV

Na extremidade desse pátio havia uma outra porta, que Manouza igualmente abriu; e, tendo feito passar Noureddin, entraram ambos numa sala baixa, apenas iluminada do alto: a luz vinha de uma cúpula muito elevada, guarnecida de vidros coloridos, formando todo o género de arabescos. No centro da sala havia um escalfador aceso e, sobre este, num tripé, um grande vaso de bronze, dentro do qual ferviam todos os tipos de ervas aromáticas, cujo odor era tão forte que mal se podia suportar. Ao lado desse vaso havia uma espécie de poltrona grande, de veludo negro, de aspecto surpreendente. Quem ali se sentasse desaparecia completamente, porquanto Manouza, nela se havendo acomodado, Noureddin a procurou durante alguns momentos sem conseguir percebê-la. De repente ela reapareceu e disse-lhe: Estás ainda disposto? – Sim, respondeu Noureddin. – Pois bem! Senta-te nesta poltrona e espera.

Tão logo Noureddin se sentou na poltrona tudo mudou de aspecto, enchendo-se a sala de uma multidão de grandes figuras brancas, a princípio apenas visíveis e que depois pareciam de um vermelho sanguíneo ou lembravam homens cobertos de chagas sanguinolentas, dançando uma ronda infernal; e, no meio deles, Manouza, cabelos desgrenhados, olhos chamejantes, vestes esfarrapadas e uma coroa de serpentes na cabeça. Na mão, à guisa de ceptro, brandia uma tocha acesa que deitava chamas, cujo odor subia à garganta. Depois de haverem dançado um quarto de hora, pararam de repente, a um sinal de sua rainha que, para isso, lançara a sua tocha no escalfador em ebulição. Quando todas essas figuras se dispuseram em volta do escalfador, Manouza fez aproximar-se o mais velho, reconhecido por sua longa barba branca, dizendo-lhe: – Vem aqui, tu que segues o diabo; tenho uma missão muito delicada para te encarregar de fazer. Noureddin quer Nazara e eu prometi que lha entregaria; é coisa difícil. – Conto, Tanaple, com o teu concurso. Noureddin haverá de suportar todas as provas necessárias. – Actua, pois! Sabes o que quero; faze o que quiseres, mas faze; tremerás se fracassares. Eu recompenso a quem me obedece, mas infeliz daquele que não me fizer a vontade! – Serás satisfeita, disse Tanaple, e podes contar comigo. – Muito bem! Vai e age.

V

Mal acabara de pronunciar estas palavras e tudo mudou aos olhos de Noureddin; os objectos tornaram-se o que eram antes e Manouza encontrou-se a sós com ele. – Agora, disse-lhe, volta para casa e espera; eu te mandarei um dos meus gnomos dizer o que deves fazer; obedece e tudo correrá bem.

Noureddin ficou feliz com estas palavras e mais feliz ainda por deixar o antro da feiticeira. Atravessou novamente o pátio e a sala por onde havia entrado; depois ela o acompanhou até a porta exterior. Tendo Noureddin perguntado se devia retornar, ela respondeu: – Não; no momento é inútil. Se for necessário eu to farei saber.

Noureddin apressou-se a voltar ao seu palácio. Estava impaciente para saber se alguma novidade havia acontecido desde a sua saída. Encontrou tudo no mesmo estado; apenas viu, na sala de mármore – sala de repouso de verão dos habitantes de Bagdá – uma espécie de anão de fealdade repugnante, perto da piscina situada no centro dessa sala. A sua vestimenta era amarela, com bordados vermelhos e azuis; tinha uma corcunda monstruosa, pernas pequenas, rosto grosseiro, olhos verdes e estrábicos, boca rasgada até às orelhas e os cabelos de um ruivo que podia rivalizar com o sol.

Noureddin perguntou-lhe como chegara ele ali e o que vinha fazer. – Fui enviado por Manouza, disse-lhe, para te entregar a tua amante. Chamo-me Tanaple. – Se és realmente o enviado de Manouza, estou pronto a obedecer às tuas ordens; mas apressa-te, aquela a quem amo está acorrentada e tenho pressa em libertá-la. – Se estás pronto, leva-me imediatamente ao teu quarto e te direi o que é preciso fazer. – Segue-me, então, disse Noureddin.

VI

Depois de haver atravessado vários pátios e jardins, Tanaple encontrou-se nos aposentos do rapaz; fechou todas as portas e disse-lhe: – Sabes o que deves fazer, tudo quanto eu te disser, sem objecção. Usarás este traje de mercador. Levarás um fardo às costas, contendo os objectos que nos são necessários. Quanto a mim, vestir-me-ei de escravo e conduzirei outro fardo.

Para sua grande estupefacção, Noureddin viu dois enormes pacotes ao lado do anão, embora não tivesse visto nem ouvido ninguém trazê-los. – Em seguida, continuou Tanaple, iremos à casa do SultãoMandarás dizer-lhe que tens objectos raros e curiosos; que se ele os quiser oferecer à sultana favorita, nenhuma huri nunca terá usado outros iguais. Conheces a sua curiosidade; ele terá vontade de nos ver. Uma vez admitidos em sua presença, não terás dificuldade em apresentar a tua mercadoria e lhe venderás tudo quanto levamos: são indumentárias maravilhosas, que transformam as pessoas que as vestem. Assim que o Sultão e a sultana os vestirem, todo o palácio os tomará por nós e não por eles: a ti pelo Sultão e a mim por Ozara, a nova sultana. Operada essa metamorfose, estaremos livres para agir à vontade e libertarás Nazara.

Tudo se passou como Tanaple anunciara: a venda ao sultão e a transformação. Depois de alguns minutos de horrível furor da parte do sultão, que queria expulsar os importunos e fazia um barulho medonho, Noureddin, conforme ordem de Tanaple, chamou diversos escravos e fez prender o sultão e Ozara como escravos rebeldes, ordenando que os conduzissem imediatamente à presença da prisioneira Nazara. Queria saber, dizia ele, se ela estava disposta a confessar o seu crime e se estava preparada para morrer. Quis também que a favorita Ozara viesse com ele, a fim de presenciarem o suplício que iria infligir às mulheres infiéis. Dito isto, marchou, precedido do chefe dos eunucos, durante um quarto de hora, por um sombrio corredor, no fundo do qual havia uma pesada porta de ferro maciço. Tomando de uma chave, o escravo abriu três fechaduras e eles entraram num grande gabinete, comprido e da altura de três ou quatro côvados. Ali, sobre uma esteira de palha, estava sentada Nazara, com um cântaro de água e algumas tâmaras por perto. Já não era a brilhante Nazara de outrora: mas continuava sempre bela, entretanto, pálida e emagrecida. À vista daquele que tomava por seu senhor, estremeceu de medo, julgando que houvesse chegado a sua hora.

(Continua na próxima publicação)

/…
(*) N. do T.: Referência ao Sr. Baudin, cujas filhas adolescentes, Caroline e Julie Baudin, foram as primeiras médiuns que concorreram para o trabalho de Allan Kardec. Vide Obras Póstumas – 2ª Parte – A minha iniciação no Espiritismo.
(**) N. do T.: Esse processo, bastante primitivo, está descrito na 2ª Parte – capítulo XIII, item 154, de O Livro dos Médiuns.


Allan Kardec (i), aliás, Hippolyte Léon Denisard Rivail, Uma Noite Esquecida ou a Feiticeira Manouza, Milésima segunda noite dos contos árabes, Ditado pelo Espírito Frédéric Soulié; – Prefácio da Revue Spirite (repetição), Jornal de Estudos Psicológicos, Paris, Novembro de 1858; – Uma Noite Esquecida (Segundo artigo), Janeiro de 1859, 18º fragmento da Revista objecto do presente titulo desta publicação.
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra

sábado, 19 de agosto de 2023

~ em torno do mestre


Humildes de espírito ~

  Jesus (i), no sermão da montanha — que bem se pode denominar a plataforma ou o programa de sua obra de redenção — começou proferindo a seguinte sentença: "Bem-aventurados os humildes de Espírito, porque deles é o reino dos céus". (Mateus, 5:3.)

  Porque humildes de Espírito? Bem-aventurados os humildes não seria o bastante? Porque a redundância — humildes de Espírito? Qual o motivo dessa superabundância de palavras? Simplesmente porque há várias formas de humildade; porém, só a de Espírito é que faz jus ao reino dos céus.

  Há pessoas humildes de aspecto, de posição social, de haveres, de profissão, de trajes, de fisionomia, mas que o não são de Espírito.

  Outras há cujas palavras e gestos, manifestando simplicidade e doçura, afecto e humildade, mal-escondem a soberba que domina os seus corações. A verdadeira humildade, como aliás todas as virtudes, vem do íntimo. O exterior nem sempre traduz o interior.

  Há um grande número de maltrapilhos e de mendigos orgulhosos. Existem, outrossim, embora excepcionalmente, exemplos de humildade entre pessoas abastadas, que ocupam posições de destaque. Há também sábios humildes, que constituem honrosas excepções à regra geral que impera entre os letrados e os eruditos. A ignorância petulante e enfatuada é coisa vulgar e corriqueira.

  Até entre os chamados ministros do Cristo se encontram orgulhosos impenitentes, compenetrados da ideia de supremacia e convencidos de que só a eles cabem determinados privilégios de ordem e carácter divinos.

  A moral cristã, em muita gente, não passa da esfera do entendimento, da região puramente mental; jamais atinge o círculo do sentimento, a zona do coração. É do coração, no entanto, que vêm o bem ou o mal, a virtude ou o vício.

  O orgulho, sob os seus aspectos multiformes, é a grande pedra de tropeço da Humanidade. É o pecado original, que os mortais trazem consigo, ao aportarem às plagas deste mundo. Daí a origem de todos os atritos, dissídios e odiosidades que mantêm os homens em atitude de mútuas hostilidades.

  A virtude, como alguém já disse, exclui os cálculos: é espontânea, natural. Os humildes de posição, de saber, ou de haveres estão sujeitos às circunstâncias que os cercam na presente existência. Não há mérito nem virtude por isso, além do modo como suportam e se submetem às inevitáveis condições de precariedade em que se encontram.

  A humildade de espírito, ao contrário, é fruto de uma conquista, de certo estado de elevação moral da alma. E, graças a essa virtude, o Espírito pode avançar com passo seguro na realização dos seus gloriosos destinos. O orgulho não só oblitera o entendimento, senão que impossibilita o Espírito de receber as inspirações e as graças emanadas do alto.

  Não é possível aprender sem possuir humildade de coração. Quem é humilde reconhece que ignora e está sempre pronto a assimilar os ensinamentos que o céu outorga aos mortais, por este ou aquele processo.

  A inibição mental é, as mais das vezes, consequência directa do orgulho. A senda da virtude, como o caminho da sabedoria, só podem ser perlustrados pelos humildes de espírito.

  O orgulho é um entrave do espírito em todos os sentidos. É o legítimo obstáculo às reconciliações, ao perdão, à unidade na fé e na ciência. Consequentemente é o factor da discórdia, desde o simples arrefecimento de afectos, até ao ódio que separa, persegue e mata; é a eterna cizânia, que mantém os homens separados, intranquilos, sobressaltados; é o dispersador de forças e de elementos prestáveis e úteis, que poderiam militar conjuntamente com grande eficiência, em prol das boas causas; é finalmente, o fermento que neutraliza as intenções e as aspirações elevadas de muitos, conservando-os na esterilidade.

  Razão, pois, de sobra assiste ao divino Instrutor da Humanidade, subordinando à humildade de espírito todas as bênçãos celestes, como também o acesso aos tabernáculos eternos.

Tentação ~

  1ª FORMA: Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se tornem em pães, visto que tens fome.

  Resposta: Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus. (Lucas, 4:3 e 4)

  Moralidade: A fraqueza da carne é uma das portas abertas às tentações. Por ela o Diabo penetra, agindo com grande êxito. Essa porta denomina-se luxúria ou incontinência, gulodice ou intemperança e, tudo o mais que se relaciona com as sensações físicas, cuja sede é a matéria.

  É do domínio da carne sobre o espírito que se originam todos os vícios repugnantes, tais como o alcoolismo, a concupiscência, a gula, o tabagismo, a cocainomania.

  O corpo, quando não é dirigido pelo Espírito, destrói-se a si mesmo através das continuadas sensações e exaltações a que se submete. Daí o dizer profundamente sábio do Mestre: Aquele que muito quer gozar a vida, perdê-la-á; o que renunciar, porém, à vida, por amor de mim, ganhá-la-á.

  Todas as doenças têm origem nas fraquezas da carne, as quais levam o homem a transgredir constantemente as leis de higiene, leis naturais e, por isso mesmo, religiosas. A enfermidade é herança do pecado — reza o Evangelho.

  A matéria não raciocina, não tem inteligência nem discernimento. É sede, apenas, de sensações. Do abuso dessas sensações nascem as exigências caprichosas da animalidade, as quais arrastam o homem ao pélago dos vícios e à voragem do crime.

  Como sair de tal situação? como dominar a carne, fechando assim ao "Diabo" uma das portas por onde tantas vezes consegue levar a cabo os seus malévolos intentos?

  Vence-se a carne não lhe concedendo tanta atenção, não atendendo aos seus arrastamentos e caprichos; fortificando, enfim, o Espírito com o pão do céu, que é a palavra de Deus, a verdade eterna revelada ao mundo pelo seu Verbo humanado — Jesus-Cristo.

  Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus (1), eis de que os homens se esquecem, embevecidos como geralmente andam com os cuidados do corpo. Os que só vivem da carne e para a carne, ficam sujeitos às fraquezas da carne.

  O remédio é a palavra de Deus — é o pão do Espírito, pois este, como o corpo, também tem fome e tem sede, necessidades estas que precisam ser satisfeitas. Fortalecer ao máximo o Espírito, dando ao corpo tão somente o necessário para sua conservação — eis a chave com que se cerra para sempre uma das portas por onde o "Diabo" costuma penetrar. Assim procedendo, curaremos também da matéria. Graças à direcção do Espírito, o corpo se embelezará, far-se-á forte, alcançando longevidade acentuada.

  2.ª FORMA: Galgando o pináculo do templo, disse-lhe o Diabo: Se és Filho de Deus, lança-te daqui abaixo; porque escrito está: Aos seus anjos ordenará a teu respeito e, eles te susterão nas suas mãos, para não tropeçares em alguma pedra.

  Resposta: Também escrito está: Não tentarás o Senhor teu Deus. (Lucas, 4:9 a 12.)

  Moralidade: O orgulho com as suas modalidades — presunção, arrogância, vaidade, soberba — constitui a segunda porta por onde o Diabo ingressa, arrastando o homem a quedas desastrosas.

  O orgulho é um desafio que o homem faz à Divindade. Desse acto de insânia ele sai sempre vencido e desapontado.

  Daí a justeza desta sentença evangélica: Aquele que se exalta será humilhado.

  Nenhuma paixão exerce tão nefasta influência sobre o homem como o orgulho, cujas raízes estão mergulhadas nas profundezas do egoísmo. Por esta razão é difícil vencê-lo, como também porque assume aspectos multiformes e enganadores.

  O orgulho não é peculiar somente à gentilidade. Ele invade a região da fé, penetra o coração do crente, chegando mesmo a alimentar-se da própria crença de suas vítimas.

  E de quantas formas se reveste! Ora é a cólera rubra que cega o entendimento, que enfurece ao ponto de nivelar o homem à fera bravia. Ora é a presunção arrogante que lhe oblitera a mente e calcina as fibras do coração. Ora é a confiança ilimitada em si mesmo, em pretensos dons e qualidades, na infalibilidade de seus juízos próprios, na superioridade excelsa de sua inteligência. Ora, ainda, na exagerada susceptibilidade de sentimentos, descobrindo por toda a parte desatenções, ofensas e desprezo à sua augusta personalidade. Ora, finalmente, na atitude de hostilidade ou desdém para com todos os empreendimentos e todos os feitos onde a actuação própria não foi exercida, onde o seu juízo não foi emitido nem consultado.

  E, assim, o orgulho envolve o homem numa trama perigosa e traiçoeira, chegando ao prodígio de fazer com que haja quem se orgulhe de ser bom, de possuir certas virtudes e até de ser humilde!

  Se és Filho de Deus, lança-te do pináculo abaixo, pois os anjos te ampararão: eis o desafio dirigido a Deus, às suas leis sábias e imutáveis. É como se dissesse: Homem, és santo e bom; és poderoso e sábio; não deves temer os males, sejam eles quais forem.

  Não te deves incomodar com coisa alguma; não é preciso providência, nem cautelas, nem prudência. Deixa o vigiar e orar para os fracos e pusilânimes; os anjos velarão por ti, impedindo que sejas vítima de mistificações, evitando, enfim, que qualquer dano possa alcançar-te. Arroja-te, sê ousado e intimorato; tens em ti mesmo todo o poder, todo o valor, toda a sabedoria! Assim fala o orgulho, desafiando as leis naturais e provocando a reacção que se não faz demorar: a humilhação do orgulhoso.

  Como nos livrarmos de inimigo que se mascara assim para nos vencer?

  Guardando na mente e no coração a advertência do Mestre: Não tentarás o Senhor teu Deus, isto é, serás sempre humilde, reconhecendo a tua ignorância e fraqueza, através do estudo constante que deves fazer de ti mesmo; agirás sempre com prudência e calma, prevenindo tudo o que estiver ao teu alcance e jamais abusando dos dons e faculdades de teu Espírito; orarás e vigiarás constantemente, pois assim estarás estabelecendo a tua comunhão com a fonte de todo o poder que é Deus, esse Deus a quem nunca desafiarás deixando-te possuir da louca pretensão de submetê-lo aos teus caprichos e veleidades. Dessa sorte, terás fechado outra porta por onde o "Diabo", a cada passo, penetra, invadindo os teus domínios.

  3.ª FORMA: De novo o Diabo o levou a um monte muito alto e, mostrou-lhe todos os reinos do mundo e a glória deles e, disse-lhe: Tudo isto te darei, se, prostrado, me adorares.

  Resposta: Vai-te Satã; pois está escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás e, só a ele darás culto. (Mateus, 4:8 a 10.)

  Moralidade: A cobiça, a ambição desmedida o apego às riquezas e à fascinação do poder e das glórias mundanas são, em conjunto, a terceira porta aberta às investidas do Diabo.

  Ser idólatra não importa somente no feiticismo que consiste em render culto às imagens. A idolatria mais perniciosa é aquela que se verifica na avareza, no apego às temporalidades, na sede de poder e de gloríolas do século; e, finalmente, na adoração de si mesmo ou egolatria.

  Indescritíveis e inumeráveis são os crimes perpetrados no mundo pela ambição aliada à cobiça. Crimes individuais e crimes colectivos. As guerras cruentas que ensoparam a Terra, por vezes, de sangue e de lágrimas, estendendo o negro véu da viuvez e da orfandade sobre milhares de mulheres e crianças, não têm outra origem, nem outra explicação além da cupidez de corações ávidos de ouro e de pruridos de hegemonia.

  As barreiras alfandegárias que encarecem e dificultam a vida das nações; o despotismo dos governos imperialistas; as tiranias oligárquicas e ditatoriais; todos os vexames e sacrifícios que se têm imposto impiedosamente aos povos, são legítimos frutos dessa insaciável sede de domínio, de glórias e de supremacias, sede maldita que oblitera a razão e destrói as fibras do sentimento humano.

  Por isso, dizia o Apóstolo das gentes:

  A raiz de todos os males é a cobiça.

  E aconselhava: Não vos fascineis com as grandezas: acomodai-vos às coisas humildes.

  Satã entronizou o bezerro de ouro e, com esse manipanso vai enlouquecendo homens e nações. Do alto do monte das ambições o "Diabo" tem precipitado indivíduos e povos, depois de lhes haver prometido o sempre cobiçado domínio da Terra. No que respeita ao passado, sabemos que a Babilónia, o Egipto, a Grécia e a Roma dos Césares se despenharam no abismo. Quanto ao presente, vimos os Impérios Centrais, qual nova Cafarnaum, querendo galgar as nuvens, cair no pó.

  Cumpre, portanto, fecharmos a terceira porta atendendo ao conselho do Mestre: Ao senhor teu Deus adorarás e, só a ele darás culto.

  Adorar a Deus e só a ele prestar culto significa amar o próximo como a si mesmo e viver segundo a justiça. Esta é a realidade da vida. O "Diabo" continua, hoje como ontem, iludindo o homem com falaciosas promessas. O mundo não é propriedade do Diabo nem o será jamais dos ambiciosos. O homem é apenas usufrutuário da Terra por tempo incerto e limitado. O melhor uso que ele pode fazer de sua estada, nesta estância da vida, é iluminar o Espírito e fortalecer a vontade, fechando ao Diabo as portas da fraqueza da carne, do orgulho e da cobiça.

  Desse modo proclamará a sua independência, adorando e servindo a Deus através do culto da justiça, do amor e da verdade.

Ressurreição ~

  Vivemos no mundo da ilusão. A verdade não está naquilo que vemos, mas precisamente no que não vemos. Atrás do que cai sob o domínio de nossos olhos é que ela se oculta. Jogando com as faculdades do Espírito e, não com os sentidos, é que se surpreende a realidade das coisas.

  Ainda hoje há muita gente que supõe a Terra fixa, porque não a vê mover-se. Outros há que imaginam as cores como propriedade dos corpos; e se lhes dissermos que as cores não existem, são aparências ou impressões particulares produzidas na retina pela luz, segundo a sua natureza própria ou segundo a maneira como é reflectida pelos corpos duvidarão da nossa integridade mental.

  São conhecidos os fenómenos denominados — miragem — que se observam nos desertos arenosos da África, onde o viandante, por ilusão de óptica, vê nitidamente na atmosfera a imagem de objectos distantes e, até mesmo cidades, oásis, lagos, etc. E assim somos enganados a cada instante pelos nossos sentidos a propósito daquilo que nos afecta como expressão de realidade e, não passa de ficções...

  Dentre todas as ilusões que nos cercam, a maior e a de mais sérias consequências é a morte. Nada nos parece mais real e verdadeiro do que ela. É o epílogo fatal da vida, segundo o juízo geral. A própria ciência oficializada, longe de combater esse funesto erro, é a primeira a fortalecê-lo, apresentando pretensas documentações em seu abono. Não lhe aproveitam, neste particular, os exemplos do passado com respeito às muitas quimeras e fantasias sustentadas e difundidas como dogmas intangíveis pelo ensino escolástico da época.

  E, por ser assim, a morte, no sentido em que é considerada, vem gozando foros de realidade inconteste, de facto inconfundível e inexorável, não passando, no entanto, da maior de todas as ilusões de que a Humanidade tem sido e continua sendo vítima.

  Já disse alguém, com bastante justeza, que a pior mentira é a que mais se parece com a verdade. A morte está exactamente nesta condição; parecendo, segundo todos os aspectos, a última palavra no cenário da existência humana, não é mais que simples dissimulação da vida.

  A vida — eis a realidade verdadeira. É ela que vence, é ela que triunfa sempre, sobrepondo-se a todas as metamorfoses, a todas as contingências a que se submete na sua maravilhosa trajectória pela senda da eternidade.

  A vida não é o que vemos: o que vemos são apenas as suas manifestações através das formas organizadas. Quereis saber o que é a alma? dizia Santo Agostinho, olhai um corpo sem ela, O corpo com todos os seus órgãos; o corpo intacto, completo e perfeito não passa de um cadáver se lhe escapa a alma, sede da vida. Sem que lhe falte coisa alguma do que se vê, falta-lhe tudo, porque lhe falta a vida que se não vê.

  A semente nos oferece outro exemplo edificante. Divida-se em algumas fracções uma semente em óptimas condições germinativas. Reunindo cuidadosamente essas partes, sem que das mesmas se perca a mais insignificante parcela, reconstitua-se a semente e, lance-se à terra: jamais germinará. Porquê? Porque ao fragmentá-la evolou-se aquilo que os nossos olhos não vêem e, que é tudo: a vida.

  A vida não é a forma organizada, por mais complexa que essa forma seja. Ora, como vemos a forma e não vemos a vida que a anima, tomamos, por isso, o efeito pela causa, concedendo à morte o império sobre a vida, quando, na verdade, é esta que fatalmente reina sobre aquela.

  Difícil, no entanto, tem sido convencer o homem deste facto. A ilusão da morte dominou-o de tal maneira que ele se obstina em considerá-la como flagrante realidade.

  Sendo a ressurreição, como é, um fenómeno natural que a cada instante se opera, no meio em que nos encontramos, é ainda considerada como utopia pela ciência mundana e, como milagre pela fé dogmática.

  A passagem do Homem-Deus pela Terra, assinalando o acontecimento mais extraordinário da História humana, teve por objecto, em síntese, revelar ao homem a imortalidade através de um testemunho positivo, palpável, categórico.

  Jesus (i) veio a este mundo exemplificar o poder da vida sobre a morte; morreu para que todos vissem como se morre; ressuscitou para que todos vissem como se ressuscita. O epílogo de sua existência terrena não foi a agonia do Calvário: foi a ascensão de Betânia. Da mesma sorte, o triunfo majestoso do seu ideal não se verificou no patíbulo da cruz, mas sim nas suas aparições a Madalena, aos dois peregrinos de Emaús e, finalmente, aos apóstolos no cenáculo de Jerusalém.

  O Cristianismo é, por excelência, a religião da vida em oposição às religiões da morte. "Deixai aos mortos o cuidado de enterrar os seus mortos. Deus, não é Deus de mortos: para Ele todos vivem" — assim predicava o Mestre divino. Não obstante, os seus discípulos, testemunhas oculares da imortalidade manifesta no seu Mestre, dificilmente se renderam à evidência dessa revelação, a maior certamente de todas que, na sua misericórdia, o céu tem outorgado à Terra.

  Paulo (i), o insigne pioneiro da nova fé, convertido pelo Cristo redivivo, insistia continuamente sobre a imortalidade, fazendo girar em torno desse assunto todas as suas prédicas e epístolas.

  Jesus (i) ressuscitou: eis a nova alvissareira para a Humanidade Eis a esperança — mais que a esperança — eis a fé; mais que a fé, eis a certeza, eis o facto positivo e palpável da continuidade da vida além do túmulo.

  É necessário, acentuava o Converso de Damasco, que este corpo corruptível se revista de incorruptibilidade; que esta forma mortal se revista de imortalidade. Semeia-se em vileza, ressuscita-se em glória. O derradeiro inimigo a vencer é a morte. Quando, pois, este nosso corpo perecível e mortal se revestir de glória e de imortalidade, então diremos: tragada foi a morte na vitória! Onde está, ó morte, o teu poder?

  São essas palavras de vida que as vozes do céu hoje rememoram, anunciando e testemunhando mais uma vez a eterna verdade; nada morre, nada se extingue, nada se aniquila na Natureza. É a vida e, não a morte, que domina a criação, entoando o cântico sublime da imortalidade. É o Espírito que vence a morte e, não a morte que vence o Espírito.

  A própria matéria não é destruída na mais pequenina parcela. O seu aniquilamento é aparente, é ilusório; as formas se desfazem para se organizarem em seguida sob aspectos novos e mais aperfeiçoados. A ressurreição é a aurora perenal que envolve o Universo; é o sol da vida, sol sem ocaso, pairando majestoso no Levante sempiterno.

  Hosanas a Jesus ressuscitado, imagem da vida eterna, testemunho vivo da imortalidade, símbolo da vitória do Espírito sobre as formas perecíveis!

  Tu és, como bem o disseste, a ressurreição e a vida; o que crê em ti, ainda que esteja morto, viverá; e todo o que vive e crê em ti, nunca morrerá!

/...
(1) Deus/Inteligência organizadora. Adenda desta publicação.

"Aos que comigo crêem e sentem as revelações do Céu, comprazendo-se na sua doce e encantadora magia, dedico esta obra.”

                                                                                Pedro de Camargo “Vinícius”


Pedro de Camargo “Vinícius” (i), "Em torno do Mestre", Primeira Parte / Seixos e Gravetos; Humildes de espírito / Tentação / Ressurreição, 17º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jesus em casa de Marta e Maria, óleo sobre tela (1654-1655), pintura de Johannes Vermeer)  

quarta-feira, 26 de julho de 2023

as vidas sucessivas | os elementos ~


Experiências magnéticas 
– O Sono magnético e o corpo fluído

1) Os estados da hipnose

  Antes de expor as minhas experiências sobre a regressão da memória e a precognição, farei um rápido resumo de como o magnetismo age habitualmente sobre os sensitivos que estudei. 

  Sob a influência de passes longitudinais exercidos de cima para baixo e combinados com a imposição da mão direita sobre a cabeça do sujet (i) sentado diante de mim, produz-se uma série de estados semelhantes à vigília, mas apresentando cada uma das características específicas que servem para denominá-los, (ii) e que se sucedem sempre na mesma ordem. 

  Esses estados são separados por fases de letargia com a aparência do sono habitual que permitem distingui-los nitidamente uns dos outros quando o sujet bastante envolvido não queima as etapas. 

  Eis, sumariamente, a enumeração dessas características específicas e a sua sucessão: 

  1º estado: vigília

  I: fase de letargia

  2º estado: sonambulismo. O sujet parece uma pessoa desperta gozando de todas as suas faculdades, no entanto é bastante sugestionável e apresenta o fenómeno da insensibilidade cutânea, que persiste em todos os estados seguintes. A memória é normal. 

  II: fase de letargia

  3º estado: rapport(iii) O sujet não percebe ninguém além do magnetizador e das pessoas que este coloca em relação com aquele, seja por um contacto ou mesmo por um simples olhar. Apresenta a sensação de bem-estar bastante pronunciada,
diminuição da memória normal e da sugestibilidade. A sensibilidade começa a exteriorizar-se numa camada paralela ao corpo e situada a cerca de trinta e cinco milímetros da pele. (iv) sujet vê os eflúvios exteriores dos corpos organizados e dos cristais. 

  III: fase de letargia.

  4º estado: simpatia ao contacto. A sensibilidade continua a exteriorizar-se e pode constatar-se uma segunda camada sensível a seis ou sete centímetros da primeira e de menor sensibilidade. O sujet experimenta as sensações do magnetizador quando este se coloca em contacto com ele. A sensibilidade cutânea desaparece, assim como a memória dos factos; elas não reaparecem nos estados seguintes, mas a memória da linguagem subsiste nesses estados, já que o sujet pode conversar com o magnetizador. 

  IV: fase de letargia

  5º estado: simpatia à distância. O sujet percebe todas as sensações do magnetizador, mesmo sem contacto, desde que a distância não seja muito grande. Ele já não vê os eflúvios exteriores dos corpos, mas vê os órgãos internos dos seres vivos. Já não é sugestionável e perde totalmente a memória de sua vida; e não conhece mais do que duas pessoas, o magnetizador e ele próprio, no entanto não sabe os seus nomes. 

  Em geral, a partir desse estado, um pouco mais cedo ou um pouco mais tarde, de acordo com o sujet, a sensibilidade que até esse momento se exteriorizava em camadas concêntricas à periferia do corpo, condensa-se para formar, primeiramente a cerca de um metro à sua direita, uma coluna nebulosa azul mais ou menos de seu tamanho e, em seguida, à sua esquerda, uma outra coluna análoga vermelha; (v) enfim, as duas colunas reúnem-se para formar uma única coluna cuja forma se precisa cada vez mais para constituir o fantasma do sujet. Esse fantasma, ligado ao corpo físico por um liame luminoso e sensível, que é como o seu cordão umbilical, torna-se cada vez mais móvel e obediente à vontade. Tem uma tendência bem pronunciada a elevar-se até uma altura que ele não pode ultrapassar; isso parece depender do grau de evolução intelectual e moral dos sujets, que vêem flutuar à sua volta seres apresentando uma cabeça com um corpo terminado em ponta como uma vírgula. Ficam felizes por terem saído do seu envoltório físico, dos seus andrajos, segundo uma expressão que utilizam com frequência e, repugna-lhes para aí voltarem. Todos estes fenómenos se desenvolvem e se precisam através de uma série de estados separados por fases de letargia que se sucedem como os dias e as noites. 

  Passes transversais reconduzem o sujet ao estado de vigília, fazendo-o passar, em ordem inversa, por todos os estados e todas as letargias pelos quais passou ao adormecer. 

  Em 1895, publiquei nos Annales des Sciences Psychiques um artigo intitulado “Fantasmas dos Vivos”, no qual expus com detalhes as minhas primeiras experiências sobre essa espécie de fenómenos, onde pude levar os sujets até um décimo terceiro estado, graças à electricidade. 

  Durville as retomou e as completou, expondo as suas próprias experiências num livro publicado em 1909 sob esse mesmo título: Fantómes des vivants(vi) 

/... 
(i) Não apresentando o termo sujet tradução exacta, decidimos mantê-lo, até mesmo porque o seu uso se tornou relativamente habitual. Significa, resumidamente, indivíduo em estudo ou estudado experimentalmente. (N.T.) 
(ii) Essas características foram seleccionadas por serem as que primeiro se apresentam à observação, mas é provável que haja outras ainda não reconhecidas. (A.R.
(iii) Estamos mantendo, nesta tradução, o termo rapport para designar a relação ou ligação que se opera entre o magnetizador e o sujet, durante o transe de regressão de memória. A tradução literal ou outro qualquer vocábulo não se mostraram apropriados e, na verdade, os investigadores sérios e os bons autores têm utilizado sempre o termo francês, que se consagrou. (N.T.) 
(iv) Em junho de 1904, o Sr. Charpentier comunicou à Academia das Ciências a seguinte experiência: “Colocando-se diante de uma parede reflectora e afastando progressivamente da superfície anterior do corpo em uma direcção normal uma pequena tela fosforescente (nódoa de sulfureto sobre cartão preto), vê-se que esta tela passa por máximos e mínimos de intensidade regularmente espaçados, indicando a existência, nas proximidades do corpo, de espécies de ondas estacionárias cujo comprimento é de cerca de 35 milímetros, ou seja, precisamente o comprimento de onda dos nervos.” (A.R.
(v) Em alguns sujets a formação do fantasma ocorre na ordem inversa. (A.R.
(vi) Se há algumas pequenas divergências nas nossas constatações, não se surpreendam. Os primeiros viajantes que penetram num país desconhecido não concentram necessariamente a sua atenção sobre os mesmos pontos e estão sujeitos a não os verem exactamente no mesmo dia. Foi assim que, durante anos, magnetizei sensitivos sem observar o fenómeno da regressão da memória, que passava sem dúvida despercebido por mim, porque eu não interrogava o sujet sobre as coisas que me poderiam indicá-lo. Actualmente, ainda, não estou muito seguro sobre as causas que a determinam, apesar de supor que ela aconteça devido ao facto de que, sob a influência de passes que fixam os laços que unem o corpo material ao corpo fluídico, este se concentra ao invés de exteriorizar-se; pois constatei diversas vezes que eu já não encontrava camada sensível em volta do sujet quando ele recuava no tempo e, os espectadores videntes diziam, quando o fenómeno se produzia depois da formação do corpo fluídico, que viam este corpo mudar de forma e diminuir quando o sujet voltava a ser criança. (A.R.


Albert de RochasAs Vidas Sucessivas, Segunda Parte Experiências magnéticas Capítulo I O sono magnético e o corpo fluídico; 1 – Os estados da hipnose, 1º fragmento desta obra.  
(imagem de contextualização: Albert de Rochas d'Aiglun (1837-1914), engenheiro militar francês, historiador da ciência, pesquisador de fenómenos espíritas, escritor, tradutor e administrador da Escola Politécnica de Paris) 

sexta-feira, 23 de junho de 2023

O Mundo Invisível e a Guerra ~


XXVII 

~~~ A Grande Doutrina 

 A guerra mundial (1) marcou o fim de uma época e para nós se inicia um novo período histórico, oferecendo aos homens de saber e de boa vontade uma tarefa imensa. Trata-se de refazer todo o género humano, por meio de uma educação, uma moral e de uma fé novas. É preciso mostrar às gerações que estão a passar, a meta que devem atingir, lhe ensinar o sentido profundo da vida, a nobreza do trabalho e a grande lição da morte. 

 É preciso ensinar a todos que a vida é sagrada até mesmo nos seus aspectos comuns, apesar de suas provações e de suas dores, principalmente em razão destas, já que a vida é para nós um supremo recurso de progresso e elevação. Devemos ensinar-lhes que as vidas humildes, obscuras e operosas, quando não representam o resgate de um passado criminoso, correspondem a um processo eficaz de aperfeiçoamento. 

 É preciso demonstrar-lhes a virtude do sacrifício e a vaidade das riquezas que nos prendem à matéria. É pela abnegação que o ser adquire todo o seu poder de irradiação e espalha salutar influência em tudo quanto realiza e em tudo que o rodeia. 

 Através de mil vidas, o homem deve ir conhecendo todas as alternativas do prazer e da dor, sendo esta última, inegavelmente, a mais fecunda para o seu progresso. Essa é a razão pela qual temos mais causas de pesar do que de felicidade. 

 A décima sexta Tríade (idiz: “Tudo é padecer em Abred (a Terra) porque sem isso não se pode conseguir conhecimento completo sobre coisa alguma”. 

 O homem deve ocupar, alternadamente, as situações sociais mais variadas, para passar pelas provações e adquirir as qualidades desses diversos meios. As situações fáceis nos estimulam a desenvolvermos as nossas faculdades, cultivarmos as artes e as ciências e exercermos a beneficência. As situações obscuras e de dependência nos ensinam a paciência, a disciplina, a economia e a perseverança no trabalho. 

 Ora vencido pelo destino, ora por ele servido, o homem abre caminho através dos obstáculos, porém cada vez que supera uma dificuldade sente que lhe aumenta a força, a vontade se retempera e a sua experiência se enriquece. 

 Em cada reencarnação ele retorna à vida terrena, como a uma escola saudável onde ganhará novos méritos e, recomeça a luta que deve aumentar-lhe o cabedal de energia e as riquezas do espírito e do coração. 

 Assim, de vida em vida, como a borboleta que sai da crisálida, ele sente desprender-se, pouco a pouco, da individualidade grosseira do começo, um espírito poderoso, luminoso, de sabedoria e de amor. E, de esfera em esfera, de mundo em mundo, prosseguirá a sua carreira, ligado aos seres que ama, para com eles chegar, um dia, à plenitude da ciência, da virtude e da felicidade. 
~~~
 A revelação dos espíritos efectua-se através de fenómenos cujo conjunto forma uma nova Ciência, uma Ciência que encontra, em tais factos, preciosos elementos de desenvolvimento e progresso. A Ciência convencional havia chegado aos limites finais do mundo da matéria. 

 Diante dela, agora, o Invisível se mostra com as suas imensas forças e as suas leis espirituais, sem o conhecimento de tais leis é impossível compreender a vida nas suas variadas formas e no seu progresso colossal. 

 A análise metódica e racional das manifestações colocará a Ciência em contacto com o mundo dos espíritos, aproximando as humanidades e facilitando a sua colaboração num programa de trabalho que resultará no mais amplo entendimento do universo psíquico e das condições da vida nas suas fases superiores, mas esse é apenas um dos dois aspectos de uma grande questão. 

 A Ciência é necessária, mas não é bastante, porque a corrente científica deve ter, como paralelo e complemento, a corrente popular, que levará às multidões o ensino e o conforto de que precisam. A Ciência é complexa e por isso inacessível ao maior número de pessoas. O ensino popular deve ser singelo e estar ao alcance de todos. 

 Faz cinco anos que epidemias, luto e todas as desgraças [ provenientes da guerra ]* causaram cruéis feridas à França; são inúmeras as almas que a dor atingiu e, que exigem a parcela de verdade e luz que lhes cabe. 

 Assim, devemos procurar a humanidade sofredora, mostrando-lhe as perspectivas consoladoras do Invisível e do além-túmulo, demonstrando-lhe a certeza da sobrevivência e da imortalidade da alma, a alegria de se tornarem a ver os que foram separados pela morte. 

 Devemos dirigir-nos ao povo que é desprovido de ideal, aos humildes e aos pequenos aos quais o materialismo enganou, pois só fez medrar neles o gosto pelos prazeres e os sentimentos de ódio e de inveja; devemos ir até eles levando-lhes o ensinamento moral, a alta e pura doutrina que aclara o futuro e nos mostra como a justiça se realiza por intermédio das vidas sucessivas. 

 Todos vós que amais a justiça e a procurais no estreito círculo que o vosso olhar abrange, raro a encontrareis nas obras humanas ou nas instituições deste mundo inferior. Dilatai os vossos horizontes e podereis vê-la expandir-se na série das nossas vidas através dos tempos, pela simples análise dos efeitos e das causas. 

 O bem e o mal remontam sempre às suas origens e o crime recai pesadamente sobre os seus autores. O nosso destino é obra nossa, mas só se ilumina com o conhecimento do passado e, para nos apoderarmos do seu encadeamento, é necessário contemplarmos do alto e, no seu conjunto, o panorama vivo de nossa própria história. 

 Todavia, isso só seria possível para o espírito que se encontre desligado do envoltório carnal, seja pela exteriorização durante o sono, seja pela morte. Então, das sombras e contradições do presente, aparecerá para ele, no seu esplendor e na sua soberana majestade, a grande lei que regula o progresso dos seres, da mesma forma como rege a marcha dos mundos. 

 Quando os apóstolos da causa social compreenderem e ensinarem essa nobre doutrina, nela irão encontrar fecunda fonte de inspiração. Ela lhes dará à palavra o poder de penetração, o calor que derrete os gelos da indiferença e do cepticismo, trazendo-lhes uma onda purificadora e regeneradora ao coração. 

 Espero aqui as mesmas contestações que me foram endereçadas durante certas conferências seguidas de debate público. Dir-me-ão: “Essa é a linguagem que usaram todas as opressões políticas e religiosas através dos séculos, para dominar e subjugar as multidões e, tais promessas de vidas futuras, embora apresentadas de outra forma, são sempre, no dizer de Jean Jaurès; – uma velha cantiga que acalenta a miséria humana”. 

 Pode ser que a nossa forma de ver não coincida com a teoria deste ou daquele teórico; o que procuramos, acima de tudo, é a verdade e, para descobri-la, convém que nos elevemos às serenas regiões onde as paixões políticas não chegam e onde os interesses materiais não reinam. Indagai os grandes mortos – responderei aos meus contraditores –, inspirai-vos com os seus conselhos. Eles confirmarão a existência dessas leis superiores fora das quais é inútil e estéril qualquer obra humana. 

 Enquanto limitardes o vosso pensamento aos estreitos horizontes da vida actual e não quiserdes ver nela o que ela representa na verdade, isto é, um degrau para subir mais alto, serão inúteis as vossas tentativas para criar neste mundo uma ordem de coisas que esteja de acordo com a justiça, assim como têm sido inúteis todos os esforços que o vosso talento tem realizado. 

 [ Observai o que está a acontecer lá no oriente da Europa, onde a tremenda luta de classes lança as nações num abismo, onde nenhum raio de idealismo brilha. Vede essa maré crescente das paixões desencadeadas por um materialismo grosseiro que tudo ameaça invadir! Não obstante certas teorias, o que é necessário fazer para se atingir a paz social e a harmonia é o acordo íntimo das inteligências, das consciências e dos corações e isso só nos será dado por uma grande doutrina, uma revelação superior que trace a rota humana e fixe os nossos deveres comuns. ]* 

 Afirmamos que, na história do mundo, as catástrofes geralmente são sinais precursores de tempos novos, o anúncio de que se prepara uma transformação e de que a humanidade vai passar por profundas transformações. 

 A morte abriu clareiras numerosas entre os homens, porém entidades mais evoluídas encarnarão na Terra e as legiões inumeráveis das almas libertas pela guerra pairarão acima de nós, ávidas por participar dos nossos trabalhos, dos nossos esforços, para transmitir aos que elas deixaram no mundo a confiança em Deus e a fé num porvir mais auspicioso. 

 A acção dessas almas se estende e se impõe cada vez mais, provocando testemunhos inesperados que, às vezes, vêm de bem alto. O jornal "L’Homme Livre", por exemplo, em 1º de janeiro de 1919, registava o seguinte: “Os nossos queridos mortos estão ao nosso lado e a humanidade se compõe mais de mortos que de vivos; somos governados pelos mortos”. 

 Numa oratória magnífica, na Câmara dos Deputados, Georges Clemenceau evocava os espíritos de Léon GambettaAuguste Scheurer-KestnerAlfred Chanzy e outros ilustres mortos, convidando-os a serem “os primeiros a transpor as terríveis portas de ferro que a Alemanha fechou contra nós”. 

 O próprio Presidente da República, Raymond Poincaré, disse no seu discurso de Estrasburgo: “Connosco, Alsácia, tu honrarás a memória de nossos mortos, porque tanto ou mais do que os vivos, foram eles que te libertaram”. 

 Os obreiros de nossa vitória não foram apenas esses grandes mortos, pois à frente deles vemos os Espíritos de Luz (i) que nos mostram o caminho sagrado e os altos destinos que nos aguardam. 

 É lógico que muitos homens e, não apenas os de menor valor, por meio das provações sofridas, foram curados dessa sensualidade e desse cepticismo pestilento que quase levaram a França à perdição. 

 Actualmente, um grande sopro passa pelo mundo, conduzindo as almas para uma síntese onde tudo o que existe de bom e verdadeiro nas antigas crenças se vem juntar às obras da Ciência e do pensamento moderno, formando um instrumento valioso na educação e na disciplina sociais. 

 Entretanto, às vezes a sombra se condensa e a escuridão da noite se torna maior à nossa volta, multiplicam-se os perigos e terríveis ameaças pesam sobre a civilização, porém nessas horas sentimos mais perto de nós os nossos grandes irmãos do Espaço. 

 Os seus fluidos vivificantes nos amparam e nos penetram. Graças a eles acendem-se, no horizonte, clarões de aurora que iluminam o nosso caminho. No meio do caos dos acontecimentos, um novo mundo se delineia... 

/… 
(1) Primeira guerra mundial 1914-1918. Adenda desta publicação. 
Parênteses atribuídos por esta publicação. 


Léon Denis, O Mundo Invisível e a Guerra, XXVII A Grande Doutrina, 43º fragmento e o último desta obra. 
(imagem: Dois soldados um alemão e o outro britânico, no dia de Natal durante a primeiraguerra mundial (1914), aquando de um cessar-fogo promovido pelos próprios soldados, alemães, britânicos e também franceses, ao longo de uma semana trocaram saudações, cantaram músicas e chegaram a trocar presentes)  

domingo, 18 de junho de 2023

Da sombra do dogma à luz da razão ~


~ Uranografia Geral (*) 
O espaço e o tempo ~

| Galileu, Espírito 
(Études Uranographiques)
(IX)

As estrelas fixas ~ 🌈

  As estrelas a que chamamos fixas e que constelam os dois hemisférios do firmamento, não estão de maneira nenhuma isoladas de toda a atracção exterior como geralmente se supõe; longe disso, pertencem todas a uma mesma aglomeração de astros estelares. Esta aglomeração não é outra senão a grande nebulosa de que fazemos parte e cujo plano equatorial que se projecta no céu recebeu o nome de Via Láctea. Todos os sóis que a compõem são solidários; as suas múltiplas influências reagem perpetuamente uma sobre a outra e a atracção universal reúne-as todas numa mesma família.

  Entre estes diversos sóis, a maior parte está, como o nosso, rodeado de mundos secundários que iluminam e fecundam pelas mesmas leis que presidem à vida do nosso sistema planetário. Uns, como Sírio, são milhares de vezes mais magníficos em dimensão e em riquezas que o nosso e o seu papel mais importante no Universo, assim como há planetas em maior número e muito superiores ao nosso a rodeá-lo. Outros são muito diferentes pelas suas funções astrais. É assim que um certo número destes sóis, verdadeiros gémeos da ordem sideral, se encontram acompanhados pelos seus irmãos da mesma idade e formam, no espaço, sistemas binários a que a natureza atribuiu funções muito diferentes das que pertencem ao nosso Sol (**).

  Apesar do número prodigioso destas estrelas e dos seus sistemas, apesar das distâncias incomensuráveis que as separam, não deixam por isso de pertencer todas à mesma nebulosa estelar que as observações dos mais potentes telescópios mal podem atravessar e que as concepções mais arrojadas da imaginação mal conseguem ultrapassar; nebulosa que, todavia, não passa de uma unidade na ordem das nebulosas que compõem o mundo astral. 

  As estrelas a que chamamos fixas não estão de maneira nenhuma imóveis na vastidão. As constelações que imaginámos sobre a abóbada do firmamento não são criações simbólicas reais. A distância da Terra e a perspectiva sob a qual medimos o Universo a partir desta estação são as duas causas desta dupla ilusão de óptica. (Capítulo V, n.º 12.) 

  Vimos que a totalidade dos astros que brilham na cúpula azul está encerrada numa mesma aglomeração cósmica, numa mesma nebulosa a que chamamos Via Láctea; mas, por pertencerem todos ao mesmo grupo, estes astros não deixam de ser animados cada um deles por um movimento próprio de translação no espaço; o repouso absoluto não existe em lado nenhum. São regidos pelas leis universais de atracção e rolam no espaço sob o impulso incessante desta força imensa; rolam, não de acordo com rotas traçadas por acaso, mas segundo as órbitas fechadas, cujo centro é ocupado por um astro superior. Para tornar as minhas palavras mais compreensíveis através de um exemplo, falarei especialmente do vosso Sol. 

  Sabemos, pelas observações modernas, que não é fixo nem central, como se julgava nos primeiros tempos da astronomia nova, mas que avança no espaço arrastando com ele o seu vasto sistema de planetas, de satélites e de cometas. 

  Ora esta caminhada não é fortuita e não vai mesmo errando em vazios infinitos, perder longe das regiões que lhe estão consignadas os seus filhos e os seus súbditos. Não, a sua órbita é calculada e, conjuntamente com outros sóis da mesma ordem que ele e como ele rodeados de um certo número de terras habitadas, gravita à volta de um sol central. O seu movimento de gravitação, tal como o dos sóis seus irmãos, não é apreciável nas observações anuais, pois períodos seculares em grande número mal bastariam para marcar o tempo de um desses anos astrais. 

  O sol central de que acabámos de falar é ele mesmo um globo secundário relativamente a um outro mais importante ainda à volta do qual perpetua uma caminhada lenta e calculada em companhia de outros sóis da mesma, ordem. 

  Poderíamos verificar esta subordinação sucessiva de sóis para sóis que a nossa imaginação se cansasse de percorrer uma tal distância; porque, não o esqueçamos, podemos contar em números redondos uns trinta milhões de sóis na Via Láctea, subordinados uns aos outros como gigantescas rodas dentadas de um imenso sistema. 

  E estes astros, em quantidade incontável, vivem, cada um deles, uma vida solitária; tal como nada está isolado na economia do vosso pequeno mundo terrestre, nada está isolado no incomensurável Universo. 

  Estes sistemas de sistemas pareceriam de longe, ao olhar investigador do filósofo que fosse capaz de abarcar o quadro desenvolvido pelo espaço e pelo tempo, uma poeira de pérolas de ouro levantada em turbilhões sob o sopro divino que faz voar os mundos siderais nos céus como grãos de areia no deserto. 

  Acabou-se a imobilidade, o silêncio e a noite! O grande espectáculo que assim se desenvolvesse sob o nosso olhar seria a criação real, imensa e plena de vida etérea que o olhar infinito do Criador abarca no conjunto imenso. 

  Mas até aqui só falámos numa nebulosa; os seus milhões de sóis, os seus milhões de terras habitadas não formam, como dissemos, mais do que uma ilha do arquipélago infinito. 
                                                                                            Pelo Espírito de Galileu 

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(*) Este capítulo foi textualmente extraído de uma série de comunicações ditadas à Sociedade Espírita de Paris, em 1862 e 1863, sob o título de Études Uranographiques e assinado, Galileu; médium M. C. F. (N. do A.)
(**) É aquilo a que se chama em astronomia estrelas duplas. São dois sóis em que um gira à volta do outro, como um planeta à volta do seu sol. De que estranhos e magníficos espectáculos devem usufruir os habitantes dos mundos que compõem estes sistemas iluminados por um duplo sol! Mas também como devem ser aí diferentes as condições da vida!
Numa comunicação feita posteriormente, O Espírito de Galileu acrescenta: «Há mesmo sistemas mais complicados onde dois sóis diferentes representam, em face um do outro, o papel de satélites. Produzem-se então efeitos de luz maravilhosos para os habitantes dos globos que iluminam; tanto mais que, apesar da sua proximidade aparente, entre eles podem circular mundos habitados e receber alternadamente ondas de luz diversamente coloridas cuja reunião forma a luz branca.» Aí, os anos já não se medem pelos mesmos períodos, nem os dias pelos mesmos sóis e estes mundos iluminados por duplo archote recebem em herança condições de existência inimagináveis para os que nunca saíram deste pequeno mundo terrestre.
Os astros, sem cortejo, privados de planetas, receberam os melhores elementos de habitabilidade alguma vez dados a alguém. As leis da natureza são diversificadas na sua imensidão e se a unidade é a palavra importante do Universo a variedade infinita não deixa de ser o seu eterno atributo. (N. do A.) 


ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo VI, Uranografia Geral, O espaço e o tempo – As estrelas fixas (de 37 a 44), 31º fragmento desta obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida. 
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites).