Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 3 de abril de 2023

Léon Denis e o Cristianismo ~


Sentido oculto dos Evangelhos ~ 

 Uma certa escola atribui ao Cristianismo em geral e, aos Evangelhos em particular, um sentido oculto e alegórico. Alguns pensadores e filósofos chegaram mesmo a negar a existência de Jesus, vendo nele, nas suas palavras, nos factos de sua vida, uma ideia filosófica, uma abstracção a que foi dado um corpo, para satisfazer a tradição que ao povo judeu anunciava um salvador, um Messias. 

 Na sua opinião, não passaria a história de Jesus de um drama poético, representando o nascimento, a morte e a ressurreição da ideia libertadora no seio do povo hebreu escravizado, ou ainda uma série de figuras imaginadas para tornar perceptível às massas o lado prático e social do Cristianismo, a associação dos tipos divino e humano num modelo de perfeição, oferecido à admiração dos homens. 

 Aceite semelhante tese, os Evangelhos deveriam ser considerados fábulas, invenções. O poderoso movimento do Cristianismo teria tido como ponto de partida uma impostura. Há nisso uma evidente exageração. Se a vida de Jesus não é mais que uma ficção, como pôde ser acolhida pelos seus contemporâneos, a princípio e, depois por uma longa série de gerações? 

 Quais seriam, pois, os verdadeiros fundadores do Cristianismo? Os apóstolos? Eram incapazes de tais concepções. Com excepção de Paulo, que encontrou uma doutrina já constituída, a incapacidade deles é evidente. A personalidade eminente de Jesus destaca-se, vigorosamente, do fundo da mediocridade dos seus discípulos. A menor comparação faz sobressair a impossibilidade de semelhante hipótese. 

 Não foi difícil, nos Evangelhos, distinguir as adições dos cristão-judeus, as quais denunciam claramente a sua origem e, formam contraste flagrante com as palavras e a doutrina de Jesus. (ii) Daí resulta um facto evidente, o de que autores imbuídos a, esse respeito, de ideias supersticiosas e acanhadas eram incapazes de inventar uma personalidade, uma doutrina, uma vida, uma morte como as de Jesus. 

 Nesse mundo judaico, sombrio e exclusivista, em que reinavam o ódio e o egoísmo, a doutrina do amor e da fraternidade só podia emanar de uma inteligência sobre-humana. 

 Se as Escrituras fossem, no seu conjunto, não mais que um amontoado de alegorias, uma obra de imaginação, a doutrina de Jesus não teria podido manter-se através dos séculos, no meio das correntes opostas que agitaram a sociedade cristã. A construção sem alicerce, ter-se-ia desagregado, desmoronado, batida pelo furacão dos tempos. Entretanto, ela ficou de pé e domina os séculos, a despeito das alterações sofridas, a despeito de tudo o que os homens fizeram para desfigurá-la, para submergi-la nas vagas de uma interpretação errónea. 

 A crença num mito não teria sido suficiente para inspirar aos primeiros cristãos o espírito de sacrifício, o heroísmo em face da morte; não lhes teria proporcionado os meios de fundar uma religião que dura há vinte séculos. Só a verdade pode desafiar a acção do tempo e conservar a sua força, a sua moral, a sua grandeza, não obstante os esforços de sapa que procuram arruiná-la. Jesus é, positivamente, a pedra angular do Cristianismo, a alma da nova revelação. Ele constitui toda a sua originalidade. 

 Além disso, não faltam testemunhos históricos da existência de Jesus, posto que em reduzido número. 

 Suetónio, na história dos primeiros Césares, fala do suplício de “Christus”. Tácito e ele mencionam a existência da seita cristã entre os judeus, antes da tomada de Jerusalém por Tito

 O Talmude (i) fala da morte de Jesus na cruz e todos os rabinos israelitas reconhecem o alto valor desse testemunho. (iii) 

 Em caso de necessidade, o próprio Evangelho, só por si, bastaria para fornecer a prova moral da existência e da elevada missão do Cristo. Se numerosos factos apócrifos nele foram mais tarde introduzidos, se as superstições judaicas ali se encontram sob a forma de narrativas fantasistas e teorias obsoletas, duas coisas nele subsistem, que não poderiam ser inventadas e apresentam um carácter de autenticidade que se impõe: – o drama sublime do Calvário e a doce e profunda doutrina de Jesus. 

 Essa doutrina era simples e clara nos seus princípios essenciais; dirigia-se à multidão, sobretudo aos deserdados e aos humildes. Tudo nela era feito para mover os corações, para arrebatar as almas até ao entusiasmo, iluminando, fortalecendo as consciências. Todavia, ela manifesta os sinais de um ensino oculto. Jesus fala muitas vezes por parábolas. O seu pensamento, de ordinário tão luminoso, mergulha por vezes na meia obscuridade. Não se percebem, então, mais que os vagos contornos de uma grande ideia dissimulada sob o símbolo. 

 É o que ele próprio explica por estas palavras, quando, citando Isaías (cap. VI, 9), acrescenta: 

 “Eu lhes falo por parábolas, porque a vós vos é dado conhecer os mistérios do reino dos céus, mas a eles não lhes é concedido.” (Mateus, XIII, 10 e 11.) 

 É evidente que havia duas doutrinas no Cristianismo primitivo: a destinada ao vulgo, apresentada sob formas acessíveis a todos e, a outra oculta, reservada aos discípulos e iniciados. É o que, de resto, existia em todas as filosofias e religiões da antiguidade. (iv) 

 A prova da existência desse ensino secreto encontra-se nas palavras já citadas e nas que mencionamos a seguir. Logo depois da parábola do semeador, que se encontra nos três evangelhos sinópticos, os discípulos perguntam a Jesus o sentido dessa parábola e ele lhes responde: 

 “A vós é concedido saber o mistério do reino de Deus; mas, aos que são de fora, tudo se lhes propõe em parábolas; 

 “Para que, vendo, vejam e não vejam e ouvindo, ouçam e não entendam.” (Marcos, IV, 11 e 12; Lucas, VIII, 10.). 

 São Paulo (i) confirma-o na sua primeira Epístola aos Coríntios, capítulo III, quando distingue a linguagem a usar com homens carnais ou com homens espirituais, isto é, com profanos ou com iniciados. 

 A iniciação era indubitavelmente gradual. Os que a recebiam eram ungidos e, depois de haverem recebido a unção, entravam na comunhão dos santos. É o que torna compreensíveis estas palavras de João

 “Vós tendes a unção do Santo e sabeis todas as coisas. Eu não vos escrevi como se ignorásseis a verdade, mas como a quem a conhece.” (1ª Epístola de João, cap. II, 20, 21 e 27.). (v) 

 Ao tempo da sua controvérsia com CelsoOrígenes defendeu energicamente o Cristianismo. Na sua vigorosa apologia, fala muitas vezes dos ensinos secretos da nova religião. Tendo-a Celso arguído de possuir um cunho misterioso, Orígenes refuta essas críticas, provando que, se em certos assuntos especiais só os iniciados recebiam um ensino completo, a doutrina cristã, por outro lado, no seu sentido geral era acessível a todos. E a prova – disse ele – é que o mundo inteiro (ou pouco falta) está mais familiarizado com essa doutrina que com as opiniões predilectas dos filósofos. 

 Esse duplo método de ensino – prossegue ele, em síntese – é, ao demais, adoptado em todas as escolas. Por que fazer por isso uma censura unicamente à doutrina cristã? Os numerosos mistérios, por toda a parte celebrados na Grécia e noutros países, não são por todos geralmente admitidos? 

 O fundador do Cristianismo não separava a ideia religiosa da sua aplicação social. O “reino dos céus” era, para ele, essa perfeita sociedade dos espíritos, cuja imagem desejaria realizar na Terra. Mas ele devia ir ao encontro dos interesses estabelecidos e suscitar em torno de si mil obstáculos, mil perigos. Daí, um novo motivo para ocultar no mito, no milagre, na parábola, o que na sua doutrina ia ferir as ideias dominantes e ameaçar as instituições políticas ou religiosas. 

 As obscuridades do Evangelho são, pois, calculadas, intencionais. As verdades superiores nele se ocultam sob véus simbólicos. Aí se ensina ao homem o que lhe é necessário para se conduzir moralmente na prática da vida; mas o sentido profundo, o sentido filosófico da doutrina, esse é reservado à minoria. 

 Nisso consistia a “comunhão dos santos”, a comunhão dos pensamentos elevados, das altas e puras aspirações. Essa comunhão pouco durou. As paixões terrenas, as ambições, o egoísmo, bem cedo a destruíram. A política se introduziu no sacerdócio. Os bispos, de humildes adeptos, de modestos “vigilantes” que eram a princípio, se tornaram poderosos e autoritários. Constituiu-se a teocracia; a esta, pareceu de interesse colocar a luz debaixo do alqueire e a luz se extinguiu. O pensamento profundo desapareceu. Só ficaram os símbolos materiais. Essa obscuridade tornava mais fácil governar as multidões. Preferiram deixar as massas mergulhadas na ignorância a elevá-las às eminências intelectuais. Os mistérios cristãos cessaram de ser explicados aos membros da Igreja. Foram mesmo perseguidos como hereges os pensadores, os investigadores sinceros, que se esforçavam por adquirir novamente as verdades perdidas. Fez-se noite cada vez mais espessa sobre o mundo, depois da dissolução do Império Romano. A crença em Satanás e no inferno adquiriu lugar preponderante na fé cristã. Em vez da religião de amor pregada por Jesus, o que prevaleceu foi a religião do terror. 

 A invasão dos bárbaros havia poderosamente contribuído para fazer surgir esse estado de coisas. Ele fez voltar a sociedade ao estado de infância, porque os bárbaros invasores, do ponto de vista da razão, não passavam de crianças. Do seio das vastas estepes e das extensas florestas, o mundo bárbaro se arremessava sobre a Civilização. Todas essas multidões, ignorantes e grosseiras, que o Cristianismo aliciou, produziram no mundo pagão em decadência e no novo meio, em que penetravam, uma depressão intelectual. 

 O Cristianismo conseguiu dominá-las, submetê-las, mas em seu próprio detrimento. Velou-se o ideal divino; o culto se tornou material. Para impressionar a imaginação das multidões, voltou-se às práticas idólatras, próprias das primeiras épocas da Humanidade. A fim de dominar essas almas e as dirigir pelo temor ou pela esperança, estranhos dogmas foram combinados. Já não se tratou de realizar no mundo o reino de Deus e de sua justiça, que fora o ideal dos primeiros cristãos. Depois, a profecia do fim do mundo e do juízo final, tomada à letra, as preocupações da salvação individual, exploradas pelos padres, mil causas em suma, desviaram o Cristianismo da sua verdadeira rota e submergiram o pensamento de Jesus numa torrente de superstições. 

 Ao lado, todavia, desses males, é justo recordar os serviços prestados pela Igreja à causa da Humanidade. Sem a sua hierarquia e sólida organização, sem o papado, que opôs o poder da ideia, posto que obscurecida e deturpada, ao poderio do gládio, tem-se o direito de perguntar no que se teria tornado a vida moral, a consciência da Humanidade. No meio desses séculos de violência e trevas, a fé cristã animou de novo ardor os povos bárbaros, ardor que os impeliu a obras gigantescas como as Cruzadas, à fundação da Cavalaria, à criação das artes na Idade Média. No silêncio e na obscuridade dos claustros o pensamento encontrou um refúgio. A vida moral, graças às instituições cristãs, não se extinguiu, a despeito dos costumes brutais da época. Aí estão serviços que é preciso agradecer à Igreja, não obstante os meios de que ela se utilizou para a si mesma assegurar o domínio das almas. 

 Em resumo, a doutrina do grande crucificado, nas suas formas populares, queria a obtenção da vida eterna mediante o sacrifício do presente. Religião de salvação, de elevação da alma pela subjugação da matéria, o Cristianismo constituía uma reacção necessária contra o politeísmo grego e romano, cheio de vida, de poesia e de luz, mas não passando de foco de sensualismo e corrupção. O Cristianismo tornava-se um estágio indispensável na marcha da Humanidade, cujo destino é elevar-se incessantemente de crença em crença, de concepção em concepção, a sínteses sempre e cada vez mais amplas e fecundas. 

 O Cristianismo, com os seus doze séculos de dores e trevas, não foi uma era de felicidade para a raça humana; mas o fim da vida terrestre não é a felicidade, é a elevação pelo trabalho, pelo estudo e pelo sofrimento; é, numa palavra, a educação da alma; e a via dolorosa conduz com muito mais segurança à perfeição, que a dos prazeres. 

 O Cristianismo representa, pois, uma fase da história da Humanidade, a qual lhe foi incontestavelmente proveitosa; ela, a Humanidade, não teria sido capaz de realizar as obras sociais que asseguram o seu futuro se não se tivesse impregnado do pensamento e da moral evangélicos. 

 A Igreja, entretanto, delinquiu, trabalhando por prolongar indefinidamente o estado de ignorância da sociedade. Depois de haver nutrido e amparado a criança, tem querido mantê-la em estado de submissão e servilismo intelectual. Não libertou a consciência senão para melhor a oprimir. 

 A Igreja de Roma não soube conservar o farol divino de que era portadora e, por um castigo do céu, ou antes, por uma justa retroacção das coisas, a noite que ela queria para os outros fez-se nela própria. Não cessou de opor obstáculos ao desenvolvimento das ciências e da filosofia, ao ponto de proscrever, do alto da cadeira de São Pedro, “o progresso – essa lei eterna – o liberalismo e a civilização moderna” (artigo 80 do Sílabus). 

 Foi, por isso, fora dela e mesmo contra ela, a partir de um certo momento da História, que se operou todo o movimento, toda a evolução do espírito humano. Foram necessários séculos de esforços para dissipar a obscuridade que pesava sobre o mundo, ao sair da Idade Média. Fizeram-se necessárias a Renascença das letras, a Reforma religiosa do século XVI, a filosofia, todas as conquistas da Ciência, para preparar o terreno destinado à nova revelação, a essas vozes de além-túmulo que vêm aos milhares e em todas as regiões da Terra, atrair os homens aos puros ensinamentos do Cristo, restabelecer a sua doutrina, tornar compreensíveis, a todos, as verdades superiores amortalhadas na sombra das idades. 

/… 
(ii) Ver notas complementares nºs 2 e 3. (← links para aceder às notas) 
(iii) Ver "Os deicidas", por Cahen, membro do Consistório israelita. 
(iv) Ver a minha obra "Depois da Morte", págs. 9 a 100. 
(v) Ver também nota complementar nº 7. (← link para aceder à nota) 


Léon Denis (1846-1927) (i)Cristianismo e Espiritismo, Título Original em Francês; Léon Denis - Christianisme et Spiritisme, Librairie des Sciences Psychiques, Paris (1898). – Sentido oculto dos Evangelhos, 4º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel

quarta-feira, 15 de março de 2023

Hippolyte Léon Denisard Rivail


Uma Noite Esquecida ou 
a Feiticeira Manouza 
(Milésima segunda noite dos contos árabes) 

~~ Ditado pelo Espírito Frédéric Soulié 

Prefácio da Revue Spirite 

No corrente ano de 1856, as experiências de manifestações espíritas que se realizavam em casa do Sr. B... (*), na rua Lamartine, atraíram uma assistência selecta e numerosa. Eram mais ou menos sérios os Espíritos que se manifestavam neste círculo; alguns disseram coisas de admirável sabedoria e notável profundidade, como se pode julgar por O Livro dos Espíritos, que ali fora começado e em grande parte realizado. Outros eram menos sérios; o seu humor jovial prestava-se de bom grado a piadas, mas daquelas que jamais se afastavam das conveniências. Nesse número se encontrava Frédéric Soulié, que veio espontaneamente, sem haver sido evocado e, cujas visitas inesperadas eram sempre um passatempo agradável para os membros deste círculo. A sua conversa era espirituosa, fina, mordaz, coerente e nunca desmentiu o autor das Mémoires du diable; aliás, nunca se deixou envolver pela lisonja; quando lhe dirigiam algumas perguntas um tanto mais espinhosas de filosofia, confessava francamente a sua incapacidade para resolvê-las, dizendo que ainda se encontrava bastante ligado à matéria e que preferia as coisas alegres às sérias. 

médium que lhe servia de intérprete era a Srta. Caroline B..., uma das filhas do dono da casa, do género exclusivamente passivo e que não tinha a menor consciência do que escrevia, podendo rir-se e conversar como bem lhe aprouvesse, o que fazia com prazer, enquanto a sua mão se movimentava sobre o papel. Durante muito tempo o meio mecânico empregado foi o da cesta de bico(**) Mais tarde a médium serviu-se da psicografia (i) directa. 

Perguntarão, certamente, que provas possuímos de que o Espírito comunicante era o de Frédéric Soulié e não um outro qualquer. Não nos cabe tratar aqui da questão da identidade dos Espíritos; diremos somente que a de Soulié se revelou por detalhes de tal forma numerosos que não podem escapar a uma observação atenta. Muitas vezes uma palavra, um gesto, um facto pessoal referido vinham confirmar que se tratava dele mesmo; por diversas vezes deixou a sua assinatura, que foi confrontada com as originais. Um dia pediram-lhe que desse o seu retracto e a médium, que não sabe desenhar e, que nem mesmo nunca o tinha visto, fez um esboço de uma semelhança extraordinária. 

Ninguém da reunião havia tido relações com ele quando vivia; por que, então, vinha sem ter sido evocado? É que se tinha ligado a um dos assistentes, sem nunca ter revelado o motivo; só aparecia quando essa pessoa se encontrava presente; entrava com ela e com ela se ia embora, de sorte que, quando não estava presente, ela também não vinha e, coisa bizarra! quando Soulié estava lá era difícil, ou mesmo impossível, haver comunicações de outros Espíritos; o próprio Espírito familiar da casa cedia-lhe o lugar, dizendo, por delicadeza, que deveria fazer as honras da casa. 

Um dia anunciou que nos daria um romance à sua maneira e, realmente, algum tempo depois começou uma narrativa cujo início era muito promissor. O assunto relacionava-se com os druidas e a cena passava-se na Armórica, ao tempo da dominação romana; infelizmente, parece que se apavorou diante da tarefa que havia empreendido, porquanto – é preciso que se diga  – o trabalho assíduo nunca foi o seu forte, confessando que encontrava mais satisfação na vida preguiçosa. Depois de haver ditado algumas páginas, abandonou o romance mas disse que escreveria outro, que lhe daria menos trabalho. Foi então que escreveu o conto cuja publicação iniciamos. Mais de trinta pessoas assistiram a essa produção e podem atestar-lhe a origem. Não a damos absolutamente como obra de elevado alcance filosófico, mas como curiosa amostra de um trabalho de grande fôlego obtido dos Espíritos. Notar-se-á como tudo nele tem sequência, como tudo se encadeia com uma arte admirável. O que há de mais extraordinário é que esse relato foi retomado em cinco ou seis ocasiões diferentes e, muitas vezes, após interrupções de duas ou três semanas. Ora, de cada vez que recomeçava, o assunto continuava como se tivesse sido escrito de um sorvo, sem rasuras, sem aditamentos e, sem que houvesse necessidade de lembrar o que antes já fora relatado. Nós o damos, tal qual saiu do lápis da médium, sem nada haver mudado, nem no estilo, nem nas ideias e nem no encadeamento dos factos. Algumas repetições de palavras e pequenos senão de ortografia foram percebidos, tendo o próprio Soulié nos encarregado de os corrigir, dizendo que nos assistiria nesse mister. Quando tudo estava terminado ele quis rever o conjunto, ao qual fez apenas algumas rectificações sem importância, autorizando a sua publicação como bem o entendêssemos e cedendo, com satisfação, os direitos de autor. Todavia, julgamos por bem não o inserir na Revista sem o consentimento formal do seu amigo póstumo, a quem pertencia de direito, porque foi graças à sua presença e à sua solicitação que nos tornamos devedores dessa produção de além-túmulo. O título foi dado pelo próprio Espírito Frédéric Soulié. 
A. K. 

Uma Noite Esquecida 


Havia em Bagdá uma mulher do tempo de Aladim; é a sua história que vou narrar: 

Num dos subúrbios de Bagdá, não longe do palácio da sultana Sheherazad, morava uma velha mulher chamada Manouza. Feiticeira das mais apavorantes, essa velha era motivo de terror em toda a cidade. À noite passavam-se em sua casa coisas tão assustadoras que, mal se punha o sol, ninguém se aventurava a passar por ali, a não ser algum homem apaixonado, à procura de um filtro para a sua amante rebelde, ou uma mulher abandonada, em busca de um bálsamo para pôr na ferida que o amante, ao desampará-la, lhe havia provocado. 

Certo dia em que o sultão estava mais triste que de costume e a cidade se encontrava em grande desolação porque queria mandar matar a sultana favorita e que, pelo seu exemplo, todos os homens eram infiéis, um jovem deixou a sua magnífica habitação, situada ao lado do palácio da sultana. Esse jovem usava uma túnica e um turbante de cores sombrias; mas sob essas simples vestimentas havia um grande ar de distinção. Procurava ocultar-se ao longo das casas, como se fora um amante que temesse ser surpreendido. Dirigia-se para os lados da casa de Manouza, a feiticeira. Uma viva ansiedade estampava-se no seu rosto, denunciando a preocupação que o agitava. Atravessou as ruas e praças rapidamente, porém usando de grandes precauções. 

Chegando à porta, hesitou por alguns minutos, decidindo-se depois a bater. Durante um quarto de hora padeceu angústias mortais, porque ouvia ruídos que nenhum ouvido humano até então havia escutado; uma matilha de cães uivava com ferocidade, gritos lamentosos se faziam ecoar e se percebiam gemidos de homens e mulheres, como só acontece no fim de uma orgia; e, para iluminar todo esse tumulto, luzes correndo de cima a baixo da casa, fogos-de-artifício de todas as cores. Depois, como que por encanto, tudo cessou: as luzes se apagaram e abriu-se a porta. 

II 

O visitante ficou confuso por alguns momentos, sem saber se devia entrar no corredor escuro que surgia à sua vista. Por fim, armando-se de coragem, penetrou audaciosamente. Depois de haver caminhado às cegas o espaço de trinta passos, encontrou-se diante de uma porta que abria para uma sala, iluminada apenas por uma lamparina de cobre de três bicos, suspensa do centro do tecto. 

A casa que, conforme o barulho ouvido da rua, deveria ser muito habitada, tinha agora um ar deserto; a sala, imensa e, que pela sua construção devia ser a base do edifício, estava vazia, se exceptuarmos os animais empalhados de todo o tipo que a guarneciam. 

No meio dessa sala havia uma pequena mesa coberta de livros de magia e, à sua frente, numa grande poltrona, estava sentada uma velhinha de apenas dois côvados de estatura e, de tal maneira agasalhada com xailes e turbantes que era impossível divisar os seus traços. À aproximação do estranho ela levantou a cabeça e mostrou-lhe o mais terrível rosto que se possa imaginar. 

“Eis que estás aqui, Sr. Noureddin, disse ela, fixando os olhos de hiena no rapaz que entrava; aproxima-te! Faz vários dias que o meu crocodilo de olhos de rubi me anunciou a tua visita. Dize se é de um filtro que precisas, ou de fortuna. Mas, que digo eu, fortuna! A tua não faz inveja ao próprio sultão? Não és o mais rico, assim como és o mais belo? Provavelmente é um filtro que vens procurar. Qual é, pois, a mulher que tem a ousadia de ser cruel contigo? Enfim, nada devo dizer; nada sei; estou pronta a ouvir-te as dificuldades e a dar-te os remédios necessários, desde, naturalmente, que a minha ciência tenha o poder de te ser útil. Mas por que me olhas assim e não avanças? Estarias com medo? Tal como me vês eu te amedronto, por acaso? Outrora fui bela; mais bela que todas as mulheres existentes em Bagdá; foram os desgostos que me tornaram tão feia assim. Mas que te importam os meus sofrimentos? Aproxima-te: eu escuto-te; apenas não te posso conceder mais que dez minutos; apressa-te, portanto.” 

Noureddin não estava muito tranquilo; entretanto, porque não quisesse mostrar à velha a perturbação que o agitava, avançou e disse-lhe: “Mulher, venho aqui por uma coisa grave; da tua resposta depende a sorte da minha vida; vais decidir da minha felicidade ou da minha morte. Eis do que se trata: 

“O sultão quer mandar matar Nazara; eu amo-a; vou contar-te de onde vem esse meu amor e pedir-te que me tragas um remédio, não à minha dor, mas à sua infeliz situação, porquanto não desejo que ela morra. Sabes que o meu palácio é vizinho ao do sultão; os nossos jardins tocam-se. Há cerca de seis semanas, passeando à noite nos meus jardins, ouvi uma música encantadora, acompanhada da mais deliciosa voz de mulher que jamais ouvira. Querendo saber de onde vinha, aproximei-me dos jardins vizinhos e percebi que vinha de um caramanchão de verdura, habitado pela sultana favorita. Fiquei vários dias absorvido por esses sons melodiosos; sonhava noite e dia com a bela desconhecida, cuja voz me havia seduzido, porque, é preciso que te diga, no meu pensamento só podia ser bela. Todas as noites eu passeava nas mesmas áleas onde tinha ouvido aquela maravilhosa harmonia. Durante cinco dias foi em vão; finalmente, ao sexto dia a música fez-se ouvir novamente; já não me podendo conter, aproximei-me do muro e vi que era preciso despender pouco esforço para o escalar. 

“Após alguns momentos de hesitação, tomei uma grande decisão: passei do meu para o jardim vizinho; ali percebi não uma mulher, mas uma huri, a huri favorita de Maomé, uma maravilha, enfim! À minha vista ela se assustou um pouco mas, lançando-me a seus pés, supliquei-lhe que não tivesse nenhum receio e me ouvisse; disse-lhe que o seu canto me havia atraído e garanti-lhe que nas minhas atitudes não encontraria senão o mais profundo respeito; ela teve a bondade de me ouvir. 

“Passámos a primeira noite a falar de música. Também cantei e me ofereci para acompanhá-la; ela consentiu e, marcamos encontro para o dia seguinte, à mesma hora. Naquele momento estava mais tranquila; o sultão estava no seu conselho e a vigilância era pequena. As duas ou três primeiras noites passaram-se inteiramente com música; mas a música é a voz dos amantes e, a partir da quarta noite, já não éramos estranhos um ao outro: nós nos amávamos. Como era bela! Como a sua alma também o era! Planeamos a fuga diversas vezes. Ah! por que não a realizámos? Eu seria menos infeliz e ela não estaria prestes a sucumbir. Essa bela flor não estaria ao ponto de ser colhida pela foice que vai arrebatá-la à luz. 

(Continua na próxima publicação.) 

/… 

(*) N. do T.: Referência ao Sr. Baudin, cujas filhas adolescentes, Caroline e Julie Baudin, foram as primeiras médiuns que concorreram para o trabalho de Allan Kardec. Vide Obras Póstumas – 2ª Parte – A minha iniciação no Espiritismo
(**) N. do T.: Esse processo, bastante primitivo, está descrito na 2ª Parte – capítulo XIII, item 154, de O Livro dos Médiuns


Allan Kardec (i), aliás, Hippolyte Léon Denisard Rivail, Uma Noite Esquecida ou a Feiticeira Manouza, Milésima segunda noite dos contos árabes, Ditado pelo Espírito Frédéric Soulié; – Prefácio da Revue Spirite – Uma Noite Esquecida (Primeiro artigo), Jornal de Estudos Psicológicos, Paris, Novembro de 1858, 16º fragmento da Revista objecto do presente titulo desta publicação. 
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

domingo, 5 de março de 2023

~ em torno do mestre


«Nil novi sub sole» (*) 

(*) Nada de novo sobre o sol 

 "Estando a festa Já a meio, subiu Jesus ao templo e se pôs a ensinar. E se maravilhavam, então, todos, dizendo: Como sabes estas letras, sem teres estudado? Jesus então retorquiu dizendo: O ensino que vos dou não é meu, mas daquele que me enviou... Não falo por mim mesmo. Quem fala por si mesmo procura a sua própria glória; mas, quem procura a glória de Deus esse é verdadeiro, não há nele dolo nem iniquidade... Quem crê em mim não é em mim que crê, mas naquele que me enviou. Eu não posso de mim mesmo fazer coisa alguma... Graças te dou a ti, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos doutos e as revelaste aos pequeninos." 

 Como é diferente o critério de Jesus do dos homens, em relação ao saber, aos conhecimentos adquiridos e aos feitos realizados! 

 O homem procura a fama, a notoriedade pessoal, a sua própria glória. Jesus, ao ser admirado pelo povo que o escutava; ao observar o efeito maravilhoso que o seu verbo produziu na mente e no coração das assembleias a quem se dirigia, exclama: "O ensino que ministro não é meu, mas daquele que me enviou." 

 Ao contrário dos homens, que se jactam dos louvores que recebem, enchendo-se de vaidades, o divino Mestre tira de si qualquer mérito que lhe pretendam conceder, declarando com toda a sinceridade: "Eu não posso, de mim mesmo, fazer coisa alguma!" 

 Às expressões de admiração e surpresa, partidas dos seus ouvintes, em gestos espontâneos e incontidos, ele retruca: "Quem crê em mim, não é em mim que crê, mas naquele que me enviou." 

 Aos enfermos que, restabelecidos por ele, se mostravam gratos, dizia invariavelmente: "A tua fé te curou." 

 Sim, a tua fé, não eu! Quanta sabedoria em toda essa sublime renúncia, em todo esse excelente altruísmo! Quanta sabedoria, insistimos, por isso que, ao lado da elevada moral que essa atitude revela, existe a consciência de um profundo saber. Senão, vejamos. De que é que os homens tanto se ufanam? De suas descobertas? Mas, aquilo que se descobre é precisamente o que já existe. Tudo o que é real e verdadeiro, tudo o que é positivo e indestrutível, sempre existiu, é eterno. Logo, de que se vangloriam os homens? 

 Newton (sábio de valor e que foi modesto) descobriu a lei da atracção e da gravidade dos corpos, lei tão antiga como o próprio Universo, do qual a Terra é parcela ínfima. 

 Harvey descobriu que o sangue circula pelas redes venosas e arteriais. Não obstante, o sangue sempre circulou desde que há formas de vida organizadas no orbe terráqueo. 

 Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil, torrão que em todos os tempos fez parte de um dos continentes. Colombo descobriu a América, região que, a seu turno, jamais deixou de fazer parte deste planeta. 

 Koch descobriu o micróbio da tuberculose; Hansen, o da lepra; porém, tais bacilos coexistem com aquelas enfermidades. A lepra vem de eras imemoriais. Já no tempo de Moisés havia leprosos no mundo. Oxalá houvessem aqueles sábios descoberto, ao invés do micróbio, a cura de tão terríveis mórbus. 

 Não pretendemos com estas considerações negar o merecimento a que fazem jus todos os que porfiam e lutam na esfera das evidências e das pesquisas científicas de qualquer natureza. O que apenas queremos é deixar patente a relatividade dos méritos em tais casos, mesmo quando a descoberta seja fruto de esforços acurados. 

 O próprio vocábulo — descobrir — já está previamente declarado tratar-se de algo existente, apesar de ignorado. O homem devia antes mostrar-se desapontado, por haver enxergado tão tarde aquilo que é de todos os tempos. E quando se trata de descobertas de carácter fortuito como a de Cabral? E quando são obra de um momento, como a de Newton

 Não há nada de novo debaixo do Sol, diz a sabedoria de Salomão. (i) O homem, com as novas que, por misericórdia, lhe vão sendo reveladas do alto, faz como as galinhas. Estas, cada vez que põem um ovo, desandam em alarido, acompanhadas pelos galos e outros galináceos da capoeira. No entanto, o papel da galinha, em relação à postura de ovos, é relativamente secundário, por isso que ela não é criadora, mas simples incubadora do ovo, desde o início de sua formação até à postura. Depois, é ainda pela incubação exterior que a galinha se presta ao choco e consequente ao aparecimento do pinto. Tanto a formação do ovo, como a sua evolução até ao pinto, são fenómenos que se sucedem e se encadeiam à revelia da galinha. 

 Da mesma sorte, tudo o que é real, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é permanente, tudo o que é luz, tudo o que é sabedoria, tudo o que é belo, tudo o que é virtude, tudo o que é vida, vem de Deus, é eterno, coexiste com o Supremo Arquitecto do Universo. 

 O homem não pode coisa alguma, se do céu não lhe for dado, afirma com justeza João Baptista

 O que de facto é do homem é aquilo que passa, que é instável e efémero. O que, infelizmente, para o homem, é sua genuína produção, é a guerra com os seus horrores; é a enfermidade com seu cortejo de angústias e gemidos; é a tirania, a iniquidade, o ódio, o ciúme, a cobiça, o vício, o crime e todas as demais expansões do egoísmo: isso tudo é dele, é obra sua, é seu engenho, sua criação. Pretenderá o homem envaidecer-se de tais feitos? 

 E a sua ciência? A sua ciência, após complicados circunlóquios, termina invariavelmente na força e na matéria, elementos estes que ele continua ignorando o que sejam. Quereis mais de sua ciência? Eis aqui: O que é a electricidade? É movimento. O que é a luz? É movimento. O que é o som? É movimento. Com definições tais a ciência do homem pretende haver resolvido todas as questões e todos os problemas da vida; mas, continua negando a Deus, sob o pretexto de o não compreender! 

 Bendito seja o Senhor do céu e da terra, por haver ensinado esta lição aos simples e pequeninos, ocultando-a aos doutos e eruditos! 

 Quando deixará o homem esse personalismo vaidoso e estiolante? Quando desistirá ele de tirar patentes de invenção e requerer privilégios? Porquê tanto cacarejar? 

 Ó Salomão onde estás, que não vens proclamar ainda mais uma vez esta verdade: Nil nove sub sole!

 (*) Nada de novo sobre o sol 


Amor e amores ~ 

 Os homens conhecem muitos amores: o amor materno, o amor filial, o amor conjugal, o amor fraterno, o amor platónico, o amor da pátria, o amor divino, etc, etc. 

 E, talvez por isso mesmo, ignorem o que seja o amor propriamente dito. O amor sem complementos, desacompanhado de todas as adjectivações, essa força que preside à harmonia do Universo; o amor, simplesmente amor. 

 Da ignorância em que os homens vivem do único amor, origina-se a causa de todos os seus males e sofrimentos. 

 Os amores apendiculados não resolvem os problemas da vida, antes os complicam. Alguns chegam a ser nocivos e perigosos. Aquele que se denomina conjugal responde quase sempre pelos divórcios e pelas tragédias domésticas, não raras vezes sanguinolentas. É muito provável que a sua benéfica influência explique a razão por que os cônjuges, neste mundo, raras vezes se entendem. 

 Esse mesmo tipo de amor, quando ainda nos pródromos da conjugação, costuma ter o seu epílogo nos necrotérios, através de dois crimes: assassínio e suicídio. Chama-se a isso — drama passional, ou delitos por amor! Blasfémia! 

 Do amor fraterno resulta que os filhos dos mesmos pais, que juntos cresceram sob o mesmo tecto, se desestimem e até mutuamente se hostilizem. Os que se querem constituem excepção. 

 O amor da pátria gera as dificuldades e os graves problemas internacionais, as crises económicas, para cuja solução determina a queima de produtos indispensáveis à vida humana, tais como o trigo, o café, o petróleo, etc.; esquecendo-se de que há carestia, fome e nudez em várias regiões do globo. 

 Faz mais ainda esse decantado amor: emprega a maior parte das arrecadações, extorquidas ao povo, na manutenção de exércitos aparelhados com tudo quanto a arte de matar e destruir tem produzido de mais aperfeiçoado. E, de vez em quando, açula essas matilhas de lobos umas contra as outras em cruentas lutas, ensopando a terra de sangue e de lágrimas, quando ficou estabelecido pelo Senhor dos mundos que o solo fosse regado com o suor do rosto. 

 O dito amor divino (que dele o céu nos defenda) criou abismos de separação entre os membros da família humana. Não contente com isso, inventou a Inquisição, as Cruzadas e a noite de S. Bartolomeu! 

 Decididamente, os tais amores (salvo as excepções que transcendem para o amor propriamente dito, pois tais modalidades constituem um meio para atingir aquela finalidade) são desastrosos. 

 Certamente, prevendo tudo isso é que o Divino Instrutor da Humanidade, depois de muito haver falado e exemplificado acerca do amor (sem complementos, nem apêndices), terminou dizendo aos seus discípulos: Um novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei. 

 A novidade do mandamento está no modo como ele ama. O seu amor é diferente dos muitos amores já bem conhecidos, em todos os tempos, nesta sociedade. 

 Deus é amor. Portanto, o verdadeiro amor é uno com o verdadeiro Deus. O politeísmo, como o amor polimorfo, gera a confusão. Não podemos servir ao Deus uno, alimentando ideias exclusivistas e sentimentos sectários, é por isso que todas as coisas e todos os seres são obras suas e reflectem sempre, de uma ou de outra maneira, a divina presença. 

 O mesmo sucede no que respeita ao culto do amor. Este nobre sentimento em tudo palpita, pois, em essência, é a mesma vida universal que anima a infinita criação. Por isso, podemos senti-lo na estrela que refulge no azul do céu, no perfume da flor, na gota de orvalho que tremula na relva, no canto do passaredo, no sorriso da criança... 

 Tal é a moralidade daquele mandamento a que Jesus chamou novo há vinte séculos e, que novo contínua a ser hoje, porque ignorado e não praticado. 

 É tempo de aprendê-lo, cultivando o amor, até que adquiramos o hábito de amar; até que nos tornemos, como Jesus, filhos do AMOR 


A nossa loucura ~ 

 É vezo dos adversários do Espiritismo, particularmente da clerezia com e sem batina, acoimar de loucos os profitentes daquele credo. 

 Não se encontra em qualquer tratado de psiquiatria fundamento algum em que repouse semelhante aleive. Os especialistas na matéria sempre que se manifestam serenamente, quer nas obras que tratam do assunto, quer em artigos avulso pela imprensa, apontam, como factores principais da loucura, a sífilis, o alcoolismo e a toxicomania. 

 É possível que certos elementos interessados na difamação do Espiritismo consigam, por encomenda, alguma opinião de profissionais, favorecendo-lhes os intentos. Tais pareceres, porém, reclamados por interesses subalternos de momento, não têm valor científico nem idoneidade moral. Falecendo em documentos dessa natureza aqueles requisitos, não podem ser os mesmos levados a sério. 

 De outra sorte, é público e notório que há inúmeros casos de insânia em pessoas pertencentes a outros credos e, mesmo no seio de famílias adversárias, irreconciliáveis da doutrina espírita. Este facto, bastante eloquente e significativo, destrói por si só a falsa imputação a que nos vimos aludindo. 

 Contudo, o estribilho continua: o Espiritismo faz loucos; na casa onde entram os livros espíritas, entra o gérmen da loucura. 

 Diante dessa insistência, concluímos que algum motivo devia existir para corroborar o referido remoque. E, de acordo com o conselho evangélico — procurai e achareis —, chegamos a desvendar o mistério com grande satisfação para nós, vítimas da cruel e pertinaz insinuação. Quando se aclarou na nossa mente o enigma, quase bradamos como Arquimedes: Eureca! Eureca! 

 Vamos, portanto, revelar aos leitores a nossa descoberta. 

 Como é sabido, procura-se por natural instinto de curiosidade, muito próprio da psicologia  humana, saber o móbil que determina a conduta de certas pessoas ou de certa classe de indivíduos cujo proceder destoa do modus vivendi da maioria. O móbil que determina os actos do homem, segundo o critério geral, é, invariavelmente, o interesse; interesse que pode ser directo ou indirecto, presente ou remoto, de natureza material ou moral, mesquinho ou elevado, mas sempre interesse. 

 Ora, os detractores do Espiritismo tornaram-se detractores dessa doutrina precisamente porque não conseguiram descobrir onde o interesse que move os espíritas através dessa actividade fecunda e constante a que eles se entregam. Indagando, perscrutando e investigando meticulosamente, por todos os meios, onde o interesse oculto dos espíritas, nada encontraram. Daí concluíram, aliás logicamente, por estar de acordo com os costumes do século, que só a loucura poderia explicar o ardor com que se debatem os adeptos do Espiritismo em prol dos ideais que esta doutrina encarna. 

 O fenómeno não é novo. Já no início do Cristianismo, os primitivos discípulos da nova fé passaram também como insanos e como elementos perigosos à ordem social, motivo por que sofreram as mais cruéis e dolorosas perseguições. 

 E, realmente, os que tomam os espíritas como desequilibrados têm razão, segundo o critério da época. Senão vejamos. 

 Qual é o móbil que agita os apóstolos do Espiritismo? Onde está o interesse a que visam? Económico, não é visto como os seus evangelizadores agem por conta própria, não percebem emolumentos nem ordenados por via directa ou indirecta, de quem quer que seja. Não fazem jus tão pouco a títulos honoríficos quaisquer. 

 São antes, ridicularizados pela atitude que assumem na sociedade. Recompensa futura, na outra vida, também não pode ser invocada como justificativa, porque a doutrina espírita reconhece e adopta a lei da causalidade, isto é, a lei das causas e efeitos mediante a qual todo o erro, falta ou crime cometido, há de recair fatalmente sobre o seu autor. O espírita não crê nas indulgências plenárias ou parciais nem no perdão no sentido de anulação da culpa. Crê na graça divina como auxílio, como a colaboração dos fortes em favor dos fracos; dos que sabem, em prol dos que ignoram. 

 Ora, do exposto se conclui claramente que os espíritas não lutam por motivo algum que se ligue ao interesse. Os seus divulgadores não percebem côngruas nem dízimos; são comumente lesados nos seus interesses particulares por questões de intolerância do meio em que vivem. Não fazem jus, como já vimos, a honras e distinções; são, antes, espezinhados e escarnecidos. Não pretendem alcançar favores e privilégios no céu. Que podem ser, então, tais pessoas senão vítimas de loucura? Onde já se viu destoar assim do século em que vivem? Que significa agir fora da órbita traçada pelo egoísmo e proceder em desconformidade com a grande maioria? Loucura rematada, não há dúvida nenhuma. 

 Por isso, parodiando o Apóstolo da gentilidade (i), dizemos: Anunciamos uma doutrina que é loucura para os gregos (materialistas) e escândalo para os judeus (sectários). 

 O Cristo de Deus fez jus ao mesmo qualificativo. 

/…  

"Aos que comigo crêem e sentem as revelações do Céu, comprazendo-se na sua doce e encantadora magia, dedico esta obra.” 

                                                                                 Pedro de Camargo “Vinícius”        


Pedro de Camargo “Vinícius” (i)Em torno do Mestre, 1ª Parte / Seixos e Gravetos; A grande lição / O sumo bem / As milícias do Céu, 16º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Jesus em casa de Marta e Maria, óleo sobre tela (1654-1655), pintura de Johannes Vermeer)  

domingo, 26 de fevereiro de 2023

Diálogos de Kardec ~


~ o caminho da vida ~ 

A questão da pluralidade das existências, tem desde há muito tempo, preocupado os filósofos e, mais de um, reconheceu; na anterioridade da alma, a única solução possível para os mais importantes problemas da psicologia. Sem esse princípio, eles se encontram presos a cada passo, encurralados num beco sem saída, donde somente poderão escapar com o auxílio da pluralidade das existências. 

A maior objecção que podem fazer a esta teoria é a da ausência da lembrança das existências anteriores. Com efeito, uma sucessão de existências inconscientes, umas das outras; deixando um corpo, para ocupar outro, sem a memória do passado, equivaleria ao nada, visto que quanto ao pensamento seria o nada; seria uma multiplicidade de novos pontos de partida, sem ligação entre si; seria a ruptura incessante de todas as afeições que fazem o encanto da vida presente, a mais doce e consoladora esperança do futuro; seria, afinal, a negação de toda a responsabilidade moral. Semelhante doutrina seria tão inadmissível e tão incompatível com a justiça divina, quanto a de uma única existência com a perspectiva de uma eternidade de penas por algumas faltas temporárias. Compreende-se então que, os que fazem semelhante ideia da reencarnação a recusem; mas, não é assim que o Espiritismo no-la apresenta. 

A existência espiritual da alma, diz ele, é a sua existência normal com a lembrança retrospectiva indefinida. As existências corpóreas são apenas intervalos(curtas estações) na existência espiritual, sendo a soma de todas as estações, apenas uma parcela mínima da existência normal, absolutamente como se numa viagem de muitos anos, de tempos a tempos, o viajante parasse durante algumas horas. Embora pareça que, durante as existências corporais, haja solução de continuidade, por ausência de lembrança, a ligação efectivamente se estabelece no curso da vida espiritual, que não sofre interrupção. A solução de continuidade, realmente, só existe para a vida corpórea exterior e de relação e, a ausência, aí, da lembrança prova a sabedoria da Providência que assim evitou fosse o homem por demais desviado da vida real, onde ele tem deveres a cumprir; mas, quando o corpo se encontra em repouso, durante o sono, a alma levanta voo parcialmente e restabelece então a cadeia interrompida, apenas durante a vigília. 

A isto ainda se pode opor uma objecção, perguntando que proveito pode o homem tirar das suas existências anteriores, para se melhorar, dado que ele não se lembra das faltas que tenha cometido. O Espiritismo responde, primeiro, que a lembrança das existências infelizes, juntando-se às misérias da vida presente, ainda mais penosa tornaria esta última. Desse modo, poupou Deus às suas criaturas um acréscimo de sofrimentos. Se assim não fosse, qual não seria a nossa humilhação, ao pensarmos no que já fomos! Para o nosso melhoramento, aquela recordação seria inútil. Durante cada existência, damos sempre alguns passos para a frente, adquirimos algumas qualidades e nos despojamos de algumas imperfeições. Cada uma de tais existências é, portanto, um novo ponto de partida, em que somos aquilo em que nos tivermos feito, em que nos tomamos pelo que somos, sem nos preocuparmos com o que tivesse-mos sido. Se numa existência anterior, fomos antropófagos, que importa isso, uma vez que já o não somos? Se tínhamos um defeito qualquer, de que já não conservamos nenhum vestígio, aí está uma conta saldada, de que não mais nos cumpre cuidar. Suponhamos que, porém, se trate de um defeito apenas meio corrigido: o restante ficará para a vida seguinte e será nesta que dele devemos cuidar, corrigindo-o. 

Tomemos um exemplo: um homem foi assassino e ladrão e, foi punido, quer na vida corpórea, quer na vida espiritual; ele se arrepende e corrige do primeiro pendor, porém, não do segundo. Na existência seguinte, será apenas ladrão, talvez um grande ladrão, porém, não mais assassino. Mais um passo para diante e já não será mais que um ladrão vago; um pouco mais tarde já não roubará, mas poderá ter a tentação de roubar, mas que a sua consciência neutralizará. Depois, um esforço derradeiro e, tendo desaparecido todos os vestígios da enfermidade moral, será um modelo de probidade. Que lhe importa então o que ele foi? A lembrança de ter acabado no cadafalso não seria uma tortura e uma humilhação constantes? 

Aplicai este raciocínio a todos os vícios, a todos os desvios e, podereis ver como a alma se melhora, passando e voltando a passar pelos cadinhos da encarnação. Não terá sido Deus mais justo com o tornar o homem árbitro de sua própria sorte, pelos esforços que empregue para se melhorar, do que se fizesse que a sua alma nascesse ao mesmo tempo que o seu corpo e o condenasse a castigos perpétuos por erros passageiros, sem lhe conceder meios de purificar-se das suas imperfeições? Pela pluralidade das existências, o seu futuro está nas suas mãos. Se ele gasta muito tempo a melhorar-se, sofre as consequências dessa maneira de proceder: é a suprema justiça; a esperança, porém, jamais lhe é interdita. 

A seguinte comparação é de molde a tornar compreensíveis as peripécias da vida da alma: 

Suponhamos uma estrada longa, em cuja extensão se encontram – de distância em distância – mas com intervalos desiguais, florestas que se tem de atravessar e, à entrada de cada uma, a estrada larga e magnífica, se interrompe, para só continuar à saída. O viajante segue por essa estrada e penetra na primeira floresta. Aí, porém, não dá com caminho aberto; depara-se-lhe, ao contrário, um labirinto indestrinçável em que ele se perde. A claridade do Sol desapareceu sob a espessa ramagem das árvores. Ele vagueia, sem saber para onde se dirige. Afinal, depois de inauditas fadigas, chega aos confins da floresta, mas extenuado, dilacerado pelos espinhos, amachucado pelos montes de pedras. Lá, descobre de novo a estrada e prossegue a sua jornada, procurando curar-se das feridas. Mais adiante, segunda floresta se lhe afigura, onde o esperam as mesmas dificuldades. Mas, ele já possui um pouco de experiência e dela sai menos molestado. Noutra, cruza-se com um lenhador que lhe indica a direcção que deve seguir para se não transviar. A cada nova travessia, aumenta a sua sagacidade, de maneira que transpõe cada vez mais facilmente os obstáculos. Certo de que à saída encontrará de novo a boa estrada, fixa-se nessa certeza; depois, já sabe orientar-se para encontrá-la com mais facilidade. A estrada termina no cume de uma montanha elevadíssima, donde ele descortina todo o caminho que percorreu desde o ponto de partida. Vê também as diferentes florestas que atravessou e se lembra das vicissitudes por que passou, mas essa lembrança não lhe é penosa, porque chegou ao fim da caminhada. É como o velho soldado que, então na calma do lar, recorda as batalhas que vivenciou. Aquelas florestas que lhe pontilhavam a estrada, são como que pontos negros sobre uma fita branca e, ele diz a si mesmo: “Quando eu estava naquelas florestas, nas primeiras, sobretudo, como me pareciam imensas de atravessar! Afigurava-se-me que nunca chegaria ao fim; tudo à minha volta me parecia gigantesco e intransponível. E quando penso que, sem aquele bondoso lenhador que me pôs no bom caminho, talvez eu ainda lá estivesse! Agora, que contemplo essas mesmas florestas do ponto onde me encontro, como se me apresentam pequeninas! Afigura-se-me, que de um passo, teria podido transpô-las; ainda mais, a minha vista as penetra e lhes distingue os menores detalhes; percebo até os passos em falso que dei.” 

Diz-lhe então um ancião: – “Meu filho, eis-te chegado ao termo da viagem; mas, um repouso indefinido causar-te-ia tédio mortal e tu tenderias a ter saudades das vicissitudes que experimentaste e que te davam actividade ao corpo e ao Espírito. Vês daqui grande número de viajantes na estrada que percorreste e que, como tu, correm o risco de perder-se; tens agora a experiência, nada mais temas: vai-lhes no encalço e procura com os teus conselhos guiá-los, a fim de que cheguem depressa.” 

– Irei com alegria, responde o nosso homem; entretanto, pergunto: por que não há uma estrada directa desde o ponto de partida até aqui? Isso pouparia aos viajantes o terem de atravessar aquelas abomináveis florestas. 

– Meu filho, novato ou mais experiente, atenta bem e verás que muitos evitam a travessia de algumas delas: são os que, tendo adquirido mais rapidamente a experiência necessária, sabem seguir um caminho mais directo e mais curto para chegarem aqui. Essa experiência, porém, é fruto do trabalho que as primeiras travessias lhes impuseram, de sorte que eles aqui chegam em virtude do próprio mérito. Que saberias, se por lá não tivesses passado? A actividade que tiveste de desenvolver, os recursos de imaginação que precisaste empregar para abrir caminho, aumentaram os teus conhecimentos e desenvolveram a tua inteligência. Sem que tal se desse, serias tão noviço quanto o eras à partida. Ao demais, procurando livrar-te dos obstáculos, contribuíste para o melhoramento das florestas que atravessaste. O que fizeste foi pouca coisa, imperceptível mesmo; pensa, contudo, nos milhares de viajantes que fazem outro tanto e que, trabalhando para si mesmos, trabalham, sem o perceberem, para o bem comum. Não será justo que recebam o salário de suas penas no repouso de que gozam aqui? Que direito teriam a esse repouso, se nada tivessem feito? 

– Meu pai, responde o viajante, numa das florestas, encontrei um homem que me disse: “Na orla há um imenso abismo a ser transposto de um salto; mas, de mil, apenas um só o consegue; todos os outros lhe caem no fundo, numa fornalha ardente e ficam perdidos sem remissão. Esse abismo, eu não vi.” 

– Meu filho, é que ele não existe, pois, de contrário, seria uma cilada abominável, armada a todos os que para cá se dirigem. Bem sei que lhes cabe vencer dificuldades, mas igualmente sei que cedo ou tarde as vencerão. Se eu tivesse criado impossibilidades para um só que fosse, sabendo que esse sucumbiria, teria praticado uma crueldade, que dificultaria imenso, a atingissem a maioria dos viajantes. Esse abismo é uma alegoria, cuja explicação vais receber. Olha para a estrada e observa os intervalos das florestas. Entre os viajantes, alguns vês que caminham com passo lento e semblante jovial; vê aqueles amigos, que se tinham perdido de vista nos labirintos da floresta, como se sentem ditosos, por se terem de novo encontrado ao deixarem-na. Mas, a par deles, outros há que se arrastam penosamente; estão estropiados e imploram a compaixão dos que passam, pois que sofrem atrozmente das feridas de que, por culpa própria, se cobriram, atravessando os espinheiros. Curar-se-ão, no entanto e, isso lhes constituirá uma lição da qual tirarão proveito na floresta seguinte, donde sairão menos estropiados. O abismo simboliza os males que eles experimentam e, dizendo que de mil apenas um o transpõe, aquele homem teve razão, porquanto enorme é o número dos imprudentes; errou, porém, quando disse que aquele que ali cair não mais sairá. Para chegar a mim, o que tombou encontra sempre uma saída. Vai, meu filho, vai mostrar essa saída aos que estão no fundo do abismo; vai amparar os feridos que se arrastam pela estrada e mostrar o caminho aos que se embrenharam pelas florestas. 

A estrada é a imagem da vida espiritual da alma e em cujo percurso esta é mais ou menos feliz. As florestas são as existências corpóreas, em que elas trabalham pelo seu adiantamento, ao mesmo tempo que para a obra geral. O caminheiro que chega ao fim e que volta para ajudar os que vêm atrasados, representa os anjos guardiães, os missionários de Deus, que se sentem venturosos em vê-lo, como, também, no desdobrarem as suas actividades para fazer o bem e obedecer ao supremo Senhor. 

/... 


ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte – O caminho da vida, 22º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

domingo, 12 de fevereiro de 2023

O Mundo Invisível e a Guerra ~


XXVI 

~~ A Alma e os Mundos: A Vida Infinita 

 Leitores, no decorrer destas páginas, seguistes o curso do meu pensamento e nelas encontrastes, certamente, alguma coisa das vossas impressões e emoções, como que o reflexo da vossa própria imagem; isso fez com que criásseis interesse por elas. 

Antes de terminar este livro, eu vos convido a abandonar, por um momento, as nossas preocupações comuns, as tristes lembranças dos quatro anos trágicos que acabamos de passar, para que elevemos os nossos olhos para a natureza infinita que para mim sempre foi uma poderosa consolação. 

 Muitas vezes, por insónia ou na angústia, eu me levanto, no meio das noites claras, para contemplar o desfile majestoso dos astros, esses mundos luminosos que me falam a mais eloquente das linguagens; que me esclarecem da sabedoria e do poder do Criador. 

 A sua visão me consola [dos horrores da Terra, desta pobre Terra ensanguentada pela guerra,] coberta de ruínas e banhada por tantas lágrimas. 

 Das profundezas do espaço, aqueles mundos me atraem, me chamam, como que me fazendo sinais inteligíveis. 

 Se os meus olhos se apagarem, se a minha cegueira vier a ser completa, será para mim uma cruel privação já não poder contemplar esses maravilhosos diamantes celestes. 

 Neste momento [em que a Terra enlutada chora os seus filhos mortos,] parece que os céus estão em festa. Será para receber os que nos deixaram momentaneamente? 

 No zénite (i), brilha Júpiter em todo o seu esplendor, repleto do Sol. A majestosa Orion se inclina para ocidente. Reconhecemos Sirius pela sua luz branca e pura, mas aqui e além, por toda a parte resplandecem outros focos: Rigel, Prócion, Aldebaran, etc. 

 A seguir aparecerão; a rica constelação do Leão, Vega e a gigante Arcturo, semelhante a oito mil sóis como o que nos ilumina. 

 A Via Láctea desdobra sobre as nossas cabeças a sua imensa faixa polvilhada de sóis, que a distância mal deixa entrever. O cortejo dos astros continuará, sempre, sem fim... As irradiações e vibrações de todos esses mundos se cruzam na imensidão. 

 A alma sensível fica deslumbrada, sentindo os eflúvios de amor e as palpitações da vida universal. Tem a sensação do intercâmbio que se opera entre o Espaço e a Terra, quando os pensamentos e as preces sobem e as forças e as inspirações nos envolvem. 

 Quantas indagações esse espectáculo nos desperta na alma! 

 Para onde irão todos esses astros na sua rápida caminhada, por exemplo, a estrela número 1830 do catálogo de Groombridge que, proveniente de um sistema desconhecido, se desloca a 300 quilómetros por segundo, atravessando o nosso Universo qual um enorme bólide

 E esses cometas vagabundos, estranhos mensageiros que se movem errantes de sistema em sistema, qual terá sido a sua origem e qual será o seu papel no cosmos? Além disso, as incontáveis nebulosas, espalhadas no espaço como berços de futuros universos, origens de mundos ou formigueiros de sóis e, que encontramos profusamente semeados até nos espaços infinitos! 

 Tais abismos de mistério e silêncio, de sombra e de luz, por muito tempo foram objecto de espanto e terror para o homem e era com hesitação, quase que com medo, o seu pensamento que tentava sondar-lhes as profundezas. 

 Agora, graças à revelação dos espíritos, essa imensidade, muda e melancólica na aparência, se anima e vibra. Todos esses mundos e os espaços que os separam estão povoados por legiões de almas, humanas ou etéreas. Constituem as nossas futuras moradas, estações de nossa longa peregrinação, os degraus da escada de progresso que todos temos de subir através dos tempos. 

 O nosso atrasado planeta é uma mansão de dor e de lágrimas, uma rude escola onde os espíritos novos vão adquirir as virtudes heróicas, as qualidades fundamentais que lhes darão acesso às esferas venturosas. Porém, lá do Alto, existem sociedades mais adiantadas que se desenvolvem em paz, em alegria e em harmonia. 

 Assim, fora dos limites de nossas breves e penosas existências terrenas, abrem-se diante de nós imensas perspectivas, oferecendo-se ao nosso interesse e à nossa atenção múltiplos temas de estudo e exploração, variedades e contrastes inimagináveis. 

 Diante de tantas maravilhas que o futuro nos reserva, as presentes provações perdem a sua rudeza. Crescem; a nossa confiança, a nossa esperança e a nossa fé. 

 Incapazes de medir a extensão das riquezas espirituais das quais participaremos, juntamos as nossas vozes às vozes do Infinito, ao coro universal dos seres e dos mundos, para a comemoração da vida eterna e infinita! 

~~*~ 

 O nosso destino está escrito no Céu em caracteres de fogo. Desde a origem dos mundos, Deus (*) traçou sobre as nossas cabeças, em linhas luminosas, o poema da alma e do seu futuro. E todos aqueles que souberam decifrar essas letras maravilhosas conseguiram sabedoria e força moral nesse estudo. 

 Mesmo entre os espíritos da nossa esfera, há poucos que conseguiram visitar e descrever os esplendores celestes e, se alguns, num rápido voo, puderam explorar diversos sistemas e penetrar mais além dentro do infinito, logo, devem regressar aos meios correspondentes ao seu grau de adiantamento. 

 Essas longínquas explorações são permitidas ao espírito que delas se torne digno, para lhe mostrar o seu caminho de progresso. Elas estimulam a sua vontade de adquirir os merecimentos que lhe permitirão viver na sociedade das almas unidas pelo amor dentro da felicidade. 

 Tudo está graduado no nosso progresso. Para alguns espíritos muito jovens, insuficientemente preparados, o conhecimento de certas verdades colocaria em risco todo o seu equilíbrio mental. Somente aos grandes espíritos pertence o pleno conhecimento do Universo. Deles é que nos vem, principalmente (por intuição ou mediunicamente), a revelação das leis superiores. 

 Para que consigamos alcançá-la, é preciso prepararmos a nossa alma pela meditação, pelo recolhimento e pela prece. Assim se produz em nós uma espécie de ampliação do ser, uma expansão das faculdades, que torna possível penetrarem em nós as mais altas verdades. Por seu intermédio e pela sua acção, uma transformação se opera, paulatinamente; ao mesmo tempo em que se desdobram as páginas do livro exterior e, à medida que o horizonte se aclara, o ser interior se ilumina e os ecos de dentro atendem aos apelos de fora. 

 Debaixo de uma influência espiritual, as lembranças do passado, mergulhadas no mais profundo da nossa memória (i), ressurgem. A cadeia de nossas vidas anteriores se reconstitui e voltamos a tomar consciência da nossa verdadeira natureza e da nossa pátria de origem (**). Sentimos melhor a gravidade e a solenidade das coisas da vida. As provações e os males, os trabalhos e as dores são considerados como outros tantos meios de educação e de progresso. 

 Toda a nossa história, através dos séculos, está escrita dentro de nós. As nossas vidas passadas, monótonas ou trágicas, foram se vertendo, gota a gota, no fundo da nossa alma e, como uma água profunda, em cuja superfície nos inclinamos em certas horas, podemos então ver nela reflectida, como em um espelho, as imagens do passado. 

 Já ficou assinalado que, nos fenómenos de exteriorização e mediante a visão psíquica aumentada, a criatura revê o lugar onde as suas existências aconteceram; as margens da Ática, banhadas pelo Sol, onde o mar rebenta o seu rolo de espumas debaixo dos ramos dos mirtos e da verdura prateada das oliveiras; as imensas planícies da Assíria e do Egipto e os colossos de pedra que se erguem para o céu azul as suas formas geométricas ou os seus perfis de animais. A alma reconstitui as remotas civilizações e o papel, muitas vezes obscuro, mas às vezes brilhante, que nelas desempenhava. 

 Vislumbra as brancas cidades cujos nomes harmoniosos marcam como estações a caminhada intelectual da humanidade: Atenas, a jóia da Hélade, a cidade querida dos filósofos, dos oradores e dos escultores; Crotona, onde Pitágoras ensinava a sua doutrina a um grupo de iniciados; Alexandria, onde os esplendores do génio grego se misturaram, no crisol do pensamento, com a chama ardente do Cristianismo (i) nascente. 

 Os que viveram aqueles momentos deslumbrantes da história não podem evitar um sentimento de emoção, recordando a adolescência ingénua de sua alma, embalada pelos mitos e lendas pagãs, enamorada pelas ilusões da vida oriental. 

 Poderíamos ter uma ideia de tais impressões comparando-as com as que nos proporciona, no ocaso da vida, as lembranças de nossas ricas sensações da mocidade, quando para nós tudo era sedução e encanto. 

 Aí todas as cenas da natureza provocavam em nós verdadeira embriaguez, como, por exemplo, quando entramos numa floresta espessa pela primeira vez, ouvindo o murmúrio das fontes, dos regatos ou a canção dos ventos entre os ramos; ou quando, do alto das montanhas contemplamos a extensão dos vales e das planícies, vendo, ao longe, resplandecer o mar ou desdobrar-se o panorama de uma grande cidade! 

 Quanta riqueza oculta no íntimo obscuro da alma, tesouros de pensamentos e acções, de alegrias e tormentos, acumulados pelos séculos no íntimo da criatura e que a sugestão hipnótica faz reaparecer, quais essas plantas e flores que flutuam na superfície dos lagos, com as suas raízes mergulhadas nas sombrias profundidades das águas! 

 No meio de tais quadros e recordações que brotam das sombras do passado existem alguns que proporcionam calma e alívio, porém, em compensação, quantas cenas que melhor seria não as tivéssemos revivido! Elas emergem do silêncio e da noite adquirindo poderosa importância e às vezes, ao revê-las, uma angústia nos invade. 

 Os segredos guardados no fundo de nossa memória se levantam e nos acusam. Todo o nosso passado permanece indestrutível e indelével, não há poder capaz de destruí-lo, mas nos é permitido resgatá-lo no futuro, com obras de sacrifício e tarefas bem realizadas. 

 Entendemos porquê a sabedoria eterna conservou esquecidas essas remotas lembranças, por algum tempo: foi para nos dar mais completa liberdade de acção no curso desta vida. Sem tal precaução, os fantasmas de nossas vidas passadas apareceriam diante de nós sem cessar, perturbando a quietude e a serenidade do presente. O reconhecimento das responsabilidades adquiridas e de suas consequências paralisaria o nosso voo para o alto. 

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 Os mais profundos mistérios da alma e do Universo continuam sendo ocultos para nós, todavia podemos comprovar que se realiza, no domínio do conhecimento, um sensível progresso. O véu do destino se levanta e a grande lei da evolução se torna exacta e clara aos nossos olhos. 

 Assistimos a uma verdadeira transformação do pensamento, sob o ponto de vista filosófico. Ele  abandona cada vez mais as posições materialistas que ocupava há tanto tempo para se tornar, agora, espiritualista e idealista, pois já passaram de moda as teorias do átomo e da célula. Além da matéria, reconhece-se a existência de uma força criadora, de um dinamismo poderoso que a penetra e a dirige. Ainda mais acima domina a ideia. 

 A inteligência e a vontade governam o mundo dos seres e das coisas. Aparece a lei e por seu intermédio se afirma a ideia de Deus, que é o pensamento e a força eterna que movem o Universo. Ele é a conciliação de todos os problemas e o objectivo supremo de todas as evoluções. Emanam dele as mais altas aspirações do génio, as intuições do artista e do sábio. Todas as criações de uma arte sublime, os espectáculos grandiosos da natureza, as harmonias do Universo, a sinfonia que os mundos compõem entre si nas profundezas do espaço, tudo isso não é mais do que um reflexo, um pálido eco do poder criador. 

 Estudar Deus na sua obra, aí reside o segredo de toda a força, de toda a verdade, de toda a sabedoria e de todo o amor. Porque Deus irradia através de sua obra assim como o Sol filtra os seus raios por entre a leve neblina que flutua sobre as florestas e os vales. 

/… 
(*) Deus / Inteligência organizadora. Adenda desta publicação. 
(**) Somos Espíritos, a viver temporariamente em corpos face ao nosso atraso evolutivo. À semelhança do mergulhador que necessita do escafandro para explorar o fundo dos mares. Nota desta publicação. 


Léon Denis, O Mundo Invisível e a Guerra, XXVI A Alma e os Mundos: A Vida Infinita, 42º fragmento desta obra. 
(imagem: Dois soldados um alemão e o outro britânico, no dia de Natal durante a primeira guerra mundial (1914), aquando de um cessar-fogo promovido pelos próprios soldados, alemães, britânicos e também franceses, ao longo de uma semana trocaram saudações, cantaram músicas e chegaram a trocar presentes)