Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

O Espiritismo na Arte ~


Parte IX

Segunda lição de o Espírito Massenet

– Ser espiritual: meios de alcançar a esfera musical desejada

(Outubro de 1922)

“Hoje falaremos não do instrumento supra-terrestre, como o fizemos, mas da forma como o ser desencarnado (i) se pode afastar da Terra e penetrar nas esferas etéreas onde as harmonias do espaço se tornarão mais perceptíveis para ele. Tomemos, por exemplo, um ser desencarnado, de uma educação espiritual média, resultante dos seus trabalhos anteriormente realizados e do seu grau de fé.

No início da sua vida no espaço, o ser desencarnado deverá familiarizar-se com o seu novo estado, e ele chegará a despertar em si a lembrança das harmonias que percebeu nas suas existências anteriores. Ele sentirá o desejo de se retemperar nesses fluidos harmónicos; mas, sob o ponto de vista latente, ele não pode saber imediatamente quais os meios para atingir a esfera a que o seu espírito aspira subir. Os seus guias (i), mais elevados que ele, o intuirão e farão vibrar o seu perispírito (i) de uma maneira graduada, a fim de que ele não seja perturbado.

Assim se estabelecerá o que chamamos harmonia, e toda a dissonância desaparecerá entre ele e a esfera musical em que deseja penetrar. Quando, na Terra, ouvis um instrumento imperfeito, se ele não está afinado, os vossos pobres órgãos ficam aturdidos; acontece o mesmo na vida do Além. Os guias impressionam o perispírito do desencarnado, a fim de obter uma adaptação mais completa.

Eis então o nosso ser, tomado como exemplo, preparado para receber ondas musicais. À medida que as suas próprias radiações se ligam melhor às irradiações harmónicas do espaço, aumenta o seu desejo de se elevar ainda mais alto em direcção à fonte de eterna beleza. Livre de toda a influência grosseira, ele vai subir, com os seus guias, para as regiões superiores, celebrando com eles a glória do Altíssimo.

Os fluidos materiais volatilizam-se, o perispírito torna-se mais luminoso, as radiações mais intensas, mais subtis, e a sua evolução é facilitada. O espírito vai subir como sobem os balões sobre o vosso globo.

Penetrando as altas regiões do espaço, o ser espiritual experimenta inicialmente uma sensação de suavidade, uma espécie de dilatação, de arrebatamento; depois, as emanações fluídicas que se desprendem do perispírito entram em contacto com outros feixes de emanações; daí uma espécie de desligamento fluídico entre dois feixes de uma subtileza mais ou menos igual, mas de natureza diferente. Vós não podeis imaginar a impressão experimentada pelo ser fluídico: já não são sensações de bem-estar, de contentamento, mas uma espécie de acalentamento, de ondulação, acompanhados de uma sensação especial, que determina um estado emotivo, uma espécie de êxtase. As vibrações sentidas nesse estado formam o que vós chamais de tonalidades; elas são produzidas pelo atrito entre camadas fluídicas.

Mais alto do que essas esferas harmónicas, existem outras regiões que ainda não podemos atingir e onde residem seres superiores, criadores de uma música sublime, que nos é transmitida por correntes fluídicas especiais. Nós não percebemos os seres que a produzem, no entanto ela chega-nos por correntes condutoras de uma natureza subtil. Um guia esclareceu-me que os seres que produzem as ondas dessa música celeste são quase perfeitos e possuem uma parcela do talento divino.”


Terceira lição de o Espírito Massenet (i)

– As vibrações sonoras nos espaços etéreos

(Outubro de 1922)

“Vós sabeis como se formam as vibrações. O espírito, transportado na esfera vibratória, encontra-se envolvido por uma rede de ondas sonoras cujos elementos são constituídos por seres superiores. O que este sente? Sente uma impressão comparável àquela que sentis ao ouvir uma tónica (ii) em música. Quanto mais as ondas do campo vibratório são desenvolvidas em velocidade e em comprimento, mais a impressão sentida pelo perispírito é viva, penetrante e comparável, em termos humanos, à impressão que nos proporcionam os sons agudos.

Temos, então, de um lado a tónica e de outro o som agudo. Se, no campo vibratório, as ondas variam em velocidade e intensidade, a amplitude do som variará e esse som parte de um ponto inicial, comparável à tónica. Esse ponto inicial compreende uma certa onda vibratória, e eu não posso mensurá-la. Eis uma comparação: os vossos fonógrafos (iii) emitem sons onde, além da sonoridade produzida pelo instrumento, se aproximardes o ouvido do seu pavilhão, sentireis um calor mais ou menos intenso, segundo a elevação do tom. Pois bem, ser desencarnado não sente calor, mas sensações mais ou menos deliciosas, de acordo com a maior ou menor velocidade e com a maior ou menor duração da onda.

As radiações que atingem o perispírito são coloridas de tons infinitamente variados. Cada cor tem uma propriedade particular, que dá uma sensação de bem-estar, de satisfação, que difere segundo a pureza, a homogeneidade de cada tom. É preciso, então, levar em conta, de um lado, a qualidade das ondas, isto é, da sua coloração; de outro lado, a sua velocidade, a sua duração, as diversas fases dos seus meandros. Tudo isso provoca, no ser desencarnado, fenómenos incomparáveis e infinitamente variáveis, porque, quanto mais o espírito é evoluído, mais diversas são as ondas que ele percebe, assim como as cores, que exprimem os sentimentos. Tomemos como exemplo o azul, que representa os sentimentos mais elevados sob o ponto de vista afectivo; uma onda azul nos dará vibrações que serão, para o vosso ser, como um banho de amor. O vermelho, nas mesmas condições, representa a paixão. O amarelo será intermediário. O rosa, que é uma mistura de amarelo com vermelho, vos dará um amor menos intenso, porém mais constante. Assim, com essas cores fundamentais, podeis formar uma gama de tonalidades que dão, por correspondência, vibrações de todos os sentimentos humanos e sobre-humanos.

Se o ser desencarnado ainda é pouco evoluído, mas tem o desejo de se impregnar de sentimentos belos, os seus guias o conduzirão para esferas animadas por seres angélicos. Quando o ser desencarnado é muito evoluído, ele colhe, nas mesmas esferas, satisfações em que o amor e a paixão virão impregnar o seu ser, e é por isso que, de regresso à vossa Terra, os seres que amam a música se lembram intuitivamente das estadas mais ou menos longas que fizeram no espaço, em um campo de ondas musicais.

A música celeste não é produzida por fricções de arco sobre cordas: tudo é fluídico, tudo é espiritual, tudo é inspirado pelo pensamento de Deus.”


– Comentários

Sobre a Terra, a gama de sons, tal como a concebemos, é apenas uma relação de sensibilidade que nada tem de absoluto. Compreende-se muito bem que existe uma relação entre as ondas sonoras e as ondas luminosas, mas esta relação escapa a muitos observadores e sensitivos, porque as percepções são muito diversas nos seus graus de intensidade; sendo as vibrações luminosas incomparavelmente mais rápidas que as vibrações sonoras.

No entanto, para o espírito cujas percepções são muito mais possantes e mais extensas, a relação é mais estreita do que para nós, e a sensação se unifica; temos um exemplo disso na diferença que se estabelece entre as notas baixas, que correspondem às cores mais escuras, e os sons agudos, que correspondem às intensidades mais vivas. (iv)

A inteligência, que percebe e resume todos os efeitos e todas as formas da substância eterna, abrange todas as vibrações, e ela mesma vibra sem preocupações com distâncias e ritmos através do infinito.

Também é fácil para nós compreender como, na vida espiritual, os prazeres estéticos são correlativos ao grau de evolução dos seres. Todos nós temos, na Terra, o mesmo órgão auditivo, no entanto que diferença de sensações experimentadas pelos ouvintes de uma sinfonia, conforme o seu grau de cultura ou a sua elevação psíquica!

As formas e as imagens produzidas pelas vibrações sonoras nos espaços etéreos, das quais nos fala o Espírito Massenet, também nos parecem ser manifestações do pensamento ordenador que concebeu e dirige o Universo. A música celeste poderia representar a própria vibração da alma divina. Eis por que quanto mais o espírito evolui e se depura, mais se torna apto a compreender, a sentir a beleza e a harmonia eterna do mundo.

/…
(ii) Tónica: primeira nota da gama, de um dado tom; aquela que começa um trecho de música e lhe dá o seu nome. Ex.: fá maior. (N.T., segundo o Dictionnaire Le Robert de la Langue Française.)
(iii) Fonógrafo: antigo aparelho destinado a reproduzir sons gravados em cilindros ou discos metálicos; aparelho que reproduz os sons gravados em discos sob a forma de sulcos espiralados; gramofone. (N.T., segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.)
(iv) A esse respeito, citarei as palavras pronunciadas pelo Sr. Deslandres, director do Observatório de Meudon (i), no seu discurso na sessão anual do Instituto, no dia 25 de Outubro de 1921: “Actualmente, as vibrações e ondas do éter, bem reconhecidas e classificadas, formam cerca de 50 oitavas. O campo de estudo é muito mais extenso do que para os sons perceptíveis ao ouvido, que formam, no máximo, 10 oitavas, reduzidas a sete nos instrumentos de música. Essas 50 oitavas são repartidas em três grupos principais, que são: o grupo da radiotelegrafia, o grupo ligado à luz e o grupo dos raios X. Em geral, eles são classificados por ordem de frequência, como num grande piano. À esquerda, do lado das baixas frequências e dos sons graves, estão as ondas da telegrafia sem fio, que asseguram as comunicações terrestres a grande distância. Ao centro, tem-se a oitava luminosa e as oitavas vizinhas que transportam calor e luz, que nos fazem conhecer o horizonte do local, o Sol e as estrelas, que impressionam as placas fotográficas e servem para depurar as águas. Enfim, à direita, do lado das altas frequências e dos sons agudos, estão os raios X, que têm propriedades eléctricas notáveis, que nos fazem descortinar as partes mais escondidas dos corpos vivos e a estrutura íntima dos átomos. Deve observar-se também que sobre essas 50 oitavas, só uma, colocada próxima ao meio, é percebida directamente por um dos nossos sentidos: é a oitava que contém os raios luminosos do vermelho ao violeta.” (N.A.)


LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte IX – Segunda lição de o Espírito Massenet: Ser espiritual: meios de alcançar a esfera musical desejada – Terceira lição de o Espírito Massenet: As vibrações sonoras nos espaços etéreos – Comentários, 27º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: O Concerto dos Anjos (1897), óleo sobre tela de Edgard Maxence)

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Da sombra do dogma à luz da razão ~


Existência de Deus

  Sendo Deus a Causa primeira de todas a coisas, o ponto de partida de tudo, o eixo sobre que assenta o edifício da Criação, é o ponto que importa considerar antes de tudo.

  É um princípio elementar que se avalia uma causa pelos seus efeitos, mesmo quando não se vislumbra a causa.

  Se um pássaro cortando o ar é atingido com chumbo mortal, julgamos que um hábil atirador o feriu, apesar de não vermos o atirador. Portanto, nem sempre é necessário ter-se visto uma coisa para sabermos que existe. Em tudo, é ao observar os efeitos que chegamos ao conhecimento das causas.

  Um outro princípio igualmente elementar passou ao estado de axioma à força de verdadeiro: que qualquer efeito inteligente deve ter uma causa inteligente.

  Se perguntássemos quem é o engenheiro de um tal engenhoso mecanismo, que pensaríamos de quem respondesse que este se tinha feito sozinho? Quando vemos uma obra-prima da arte ou da indústria, dizemos que deve ser produto de um homem de génio, porque uma elevada inteligência deve ter presidido à sua concepção; calculamos todavia que deve ter sido feito por um homem, porque sabemos que a coisa não está acima da capacidade humana, mas ninguém se lembrará de dizer que saiu do cérebro de um idiota ou de um ignorante e ainda menos que se trata do trabalho de um animal ou de produto do acaso.

  Em todo o lado reconhecemos a presença do homem nas suas obras. A existência dos homens antediluvianos não seria unicamente provada pelos fósseis humanos, mas também e com a mesma certeza pela presença dos terrenos dessa época de objectos trabalhados pelos homens; um fragmento de vaso, uma pedra talhada, uma arma, um tijolo, serão suficientes para atestar a sua presença. Pela rudeza ou pela perfeição do trabalho reconhecemos o grau de inteligência e da evolução dos que o executam. Se portanto vos encontrardes num país habitado exclusivamente por indígenas e descobrirdes uma estátua de Fídias, não hesitareis em dizer que os indígenas teriam sido incapazes de a fazer, terá de ser obra de uma inteligência superior à dos indígenas.

  Pois bem. Lançando um olhar à nossa volta para as obras da natureza, observando a previsão, a sabedoria, a harmonia que presidem a todas, reconhecemos não existir uma única que não ultrapasse os limites mais elevados  da inteligência humana. Uma vez que o homem não as pode produzir, é porque são produto de uma inteligência superior à humana, a não ser que se diga que é efeito sem causa.

  A isto alguns opõem o seguinte raciocínio:

  As obras ditas da natureza são o produto de forças materiais que agem mecanicamente devido às leis de atracção e retracção; as moléculas dos corpos inertes agregam-se e desagregam-se, crescem e reproduzem-se sempre da mesma maneira, cada qual dentro da sua espécie, graças a estas mesmas leis; cada indivíduo é semelhante àquele de onde saiu; o crescimento, a floração, a frutificação, a coloração, estão subordinados às causas materiais, tais como o calor, a electricidade, a luz, a humanidade, etc. Passa-se o mesmo com os animais. Os astros formam-se pela atracção molecular e movem-se perpetuamente nas suas órbitas devido ao efeito da gravitação. Esta regularidade mecânica na aplicação das forças naturais não revela de maneira nenhuma uma inteligência livre. O homem mexe o seu braço quando quer como quer, mas quem o mexesse no mesmo sentido desde o nascimento até à sua morte, seria um autómato; ora, as forças orgânicas da natureza são puramente automáticas.

  Tudo isto é verdade; mas estas forças são efeitos que devem ter uma causa e ninguém pretende que constituam a Divindade. São materiais e mecânicas; não são de maneira nenhuma inteligentes em si mesmas e isto é ainda verdade; mas são postas em acção, distribuídas, apropriadas para as necessidades de cada coisa por uma inteligência que não é a dos homens. A útil apropriação destas forças é um efeito inteligente que revela uma causa inteligente. Um pêndulo move-se com uma regularidade automática e é esta regularidade que lhe dá o mérito. A força que a faz agir é toda material e de modo nenhum inteligente, mas que seria este pêndulo se uma inteligência não tivesse combinado, calculado o emprego desta força para fazer mover-se com precisão? Por a inteligência não estar no mecanismo do pêndulo e porque a não vemos, seria racional concluir que não existe? Julgamo-la pelos seus efeitos.

  A existência do relógio atesta a existência do relojoeiro; o engenho do mecanismo atesta a inteligência e a sabedoria do relojoeiro. Quando um relógio vos dá num determinado ponto a indicação de que necessitais, já alguma vez veio à ideia de alguém dizer: aqui está um relógio muito inteligente?

  Assim se passa com o mecanismo do UniversoDeus não se mostra, mas afirma-se pelas suas obras.

  Portanto, a existência de Deus é um facto adquirido não só através da revelação mas pela evidencia material dos factos. Os povos primitivos não tiveram revelações e, no entanto, acreditavam instintivamente na existência de um poder sobre-humano; viam coisas que estavam acima do poder humano e concluíam daí que emanavam de um ser superior à humanidade. Não serão mais lógicos que aqueles que pretendem que elas se fizeram sozinhas?

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ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo II Deus, A natureza divina, A Providência, A visão de Deus – Existência de Deus (de 1 a 7) 15º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Inquietações Primaveris ~


Psicologia da Morte

Na dramática História da Psicologia, em que tantos caminhos e descaminhos foram trilhados, surgiu neste século de novidades violentas a psicologia da Morte, resultante das ressurreições clínicas produzidas nos hospitais, através das técnicas médicas de restabelecimento das pulsações cardíacas em pessoas vitimadas por morte súbita. Nos Estados Unidos, a Dra. Ross, tornou-se famosa, com as suas investigações minuciosas sobre as sensações e visões ocorridas durante o estado de quase-morte (EQM) e descritas pelos pacientes ressuscitados. A Psicologia voltou à fase da introspecção, dependendo dos relatos dos pacientes, mas agora já apoiada em longas e profundas pesquisas instrumentais. Os relatos dos pacientes podem ser comparados com as observações e as sondagens clínicas. A verdade é que estes factos sempre aconteceram, em todo o mundo, mas só agora estão a ser submetidos à pesquisa científica. A técnica da mecânica de ressurreição, com massagens e ginástica dos braços, deu tranquilidade ao materialismo científico. Mas a inquietação provocada pelos relatos orais dos pacientes criou alguns problemas, impedindo a explicação simplória da vida como efeito de mecanismos orgânicos. A morte perderia com isso o seu prestígio e a vida se transformaria numa questão de relojoaria. Bastaria accionar o pêndulo parado para se pôr o defunto a prumo e restabelecer o seu tic-tac. Mas a vida e a morte não se mostraram assim tão dóceis, não quiseram satisfazer os biólogos e os químicos empenhados em produzir vida em laboratório. Não obstante, neste caso, não apareceram as intervenções de poderes extracientíficos, à maneira do que fizeram os clérigos no passado, ao interromperem as pesquisas com anátemas e maldições. Menos felizes que os psicólogos da morte foram os pesquisadores soviéticos que, na Universidade de Kirov, conseguiram provar a existência do corpo bioplásmico dos seres vivos, o que lhes custou a excomunhão estatal, reforçada fora da URSS pelas condenações das Igrejas através de instituições científicas por elas controladas. O mesmo já havia acontecido nos Estados Unidos com o problema da reencarnação e o das pesquisas parapsicológicas. O Prof. Rhine, da Universidade de Duke, teve de reagir contra os psicólogos que o criticavam, mostrando que usavam contra as suas pesquisas métodos anti-científicos, com os simples argumentos, sem a contra-prova experimental. Mas tudo isso pertence ao processo de desenvolvimento das Ciências, que é uma luta incessante contra os preconceitos e as crendices institucionalizadas. A verdade é que, de todas estas lutas, restou o facto inegável da possibilidade de elaboração da Psicologia da Morte. A pesquisa no homem vivo reintegra a morte na sua natureza psico-biológica, tirando-lhe os aspectos misteriosos e o sentido de sobrenatural que teólogos e gurus lhe deram através dos séculos. Toda a mitologia igrejeira da morte, da ressurreição e do renascimento ou reencarnação caem por terra com os seus arranjos e adereços, para que a Morte, como a Verdade, possa sair do fundo do poço com a sua nudez clássica.

Ao mesmo tempo, no precioso filão das explorações da morte, de que tanta gente tem vivido à tripa-forra, surgiram as tentativas de manutenção da morte em conserva, com os cadáveres de milionários congelados, em catalepsia forçada, na manutenção precária de uma sub-vida sem nenhuma perspectiva. Faltam-nos os recursos básicos para uma experiência realmente científica nesse campo, que são o frio absoluto e um soro mágico que impedisse as queimaduras do gelo absoluto, que Barnayll inventou em Nas Noites dos Tempos, em termos de ficção científica. Mas como a esperança é a última a morrer e os milionários podem pagar todas as esperanças, é evidente que essas tentativas prosseguirão livremente.

As pesquisas parapsicológicas provaram a existência da percepção extra-sensorial nos animais. Nas pesquisas espíritas, mais antigas e mais profundas, as manifestações físicas de animais foram amplamente verificadas. Animais domésticos mortos foram materializados, comprovando a sua sobrevivência ao fenómeno da morte. Em São Paulo, no famoso Grupo Espírita de Odilon Negrão, deu-se a manifestação ectoplásmica inesperada de um cachorro de raça, pertencente à família de um amigo. Três médiuns de materialização participaram na reunião: a D. Hilda Negrão, o Dr. Urbano de Assis Xavier, cirurgião-dentista, e o Dr. Luis Parigote de Sousa, médico. Nenhum dos presentes pensava no cachorro, que tinha morrido na Fazenda da família, em São Manuel. Foram os espíritos controladores do trabalho que anunciaram a presença do animal, pelo fenómeno de voz-directa (a voz do espírito vibrando no ar, sem intermediário mediúnico). O Dr. António, presente, foi quem reconheceu o animal, que, materializando-se, se dirigiu a ele, festejando-o. O prof. Ernesto Bozzano, famoso cientista e pesquisador espírita de Milão (Itália), verificou e estudou vários casos desta natureza. Os anais das Sociedades de pesquisas Psíquicas de Inglaterra e dos Estados Unidos registam numerosos casos destes espontâneos. Conan Doyle, o famoso escritor e historiador inglês, médico e pesquisador psíquico, obteve fotografias de fenómenos semelhantes. Kardec foi o primeiro a constatar esta realidade, hoje na pauta das pesquisas parapsicológicas. John Gunter, famoso repórter e ensaísta alemão, no seu livro Nestes Tempos Tumultuosos, nas vésperas da II Guerra Mundial, relata uma curiosa manifestação de um cachorro de raça, de grande porte, que assombrava um Hotel de Luxo da Baviera. A manifestação deu-se à sua frente, na escadaria do Hotel. Estes factos puseram por terra as teorias cartesianas sobre os animais-máquina, movidos apenas por instintos e, as doutrinas religiosas que atribuem alma exclusivamente aos seres humanos. Esse antropocentrismo, bem ao gosto da vaidade dos homens, já foi também abalado pelas pesquisas da Psicologia Animal e pelas pesquisas parapsicológicas. Com isso, reafirma-se o princípio espírita da evolução geral dos seres através das espécies, sustentadas por Roussell Wallace, o cientista inglês que se opôs ao materialismo das teorias de Darwin. Os resultados de pesquisas e factos espontâneos demonstram que a lógica da natureza é superior à lógica pretensiosa dos homens.

A Psicologia Sem Alma, de Watson, nos Estados Unidos, negou a própria alma humana, baseando-se nas teorias do reflexo russo de Betcherev e Pavlov, mas acabou reduzida a um sistema mecanicista de interpretação do homem.

Freud não era espiritualista, mas foi obrigado a penetrar nas profundezas da alma nas suas pesquisas do inconsciente. A complexidade do dinamismo anímico por ele revelada contraditava flagrantemente com a simplicidade não raro ingénua das suas conclusões negativistas. Contrariando Descartes, que descobriu na sua própria alma a ideia de Deus e elevou esse facto à condição de lei universal, Freud perdeu-se nos subterrâneos da libido e considerou a ideia de Deus como simples introjecção do mito fálico no inconsciente. Carl Jung, seu discípulo, insurgiu-se contra o mestre, formulando a teoria dos arquétipos, em que o arquétipo Supremo é a ideia de Deus, que Kant considerou como o supremo conflito formulado pela mente humana. No seu livro O Homem Descobre a Sua Alma, Jung sustenta a impossibilidade ontológica de excluirmos a alma da realidade ôntica da pessoa humana. Nesse livro, Jung declara, em 1944, estar convencido de que “o estudo científico da alma é a Ciência do Futuro". No campo da Parapsicologia a contribuição de Jung foi a mais importante, com a sua teoria das coincidências significativas, com a qual superou as grosseiras comparações da mente com as emissões radiofónicas, demonstrando que não há emissão de energias físicas no processo telepático, mas coincidências mentais num plano de afinidade supra-sensível. Nas suas memórias, Jung relata factos paranormais de que foi participante e até mesmo produtor, certa vez quando discutia o problema com Freud, tendo este se negado a analisar a questão, que lhe parecia fora do seu campo de estudos.

Para Rhine, a Psicologia não pode desviar-se do seu objecto, que é a alma. Por isso acusou a Psicologia actual de haver perdido o seu objecto, transformando-se numa ecologia, como ciência do comportamento humano, das relações do sujeito com o meio em que vive. A Psicologia da Alma abrange necessariamente o novo ramo das Ciências Psicológicas, que revela a dinâmica essencial das relações corpo-alma durante a vida e no momento da morte, quando a alma ou espírito se liberta do seu condicionamento carnal. Já dizia o padre Vieira: “Quereis saber o que é alma? Vede um corpo sem alma.” A morte é o momento em que a alma e o seu instrumento de manifestação material, o corpo carnal, se mostram separados. Neste estado de separação o corpo material imobiliza-se e o corpo bioplásmico dos pesquisadores russos da Universidade de Kirov continua em actividade, desprendendo-se do corpo carnal. O corpo espiritual da tradição cristã, que Kardec chamou de perispírito, pois se apresenta como um envoltório semimaterial do espírito propriamente dito, foi considerado pelos russos como da vida. A designação científica de bioplásmico define-o na sua natureza e nas suas funções. Bio, porque é vida, corpo vital e, plásmico porque é constituído por um plasma físico, elemento formado de partículas atómicas livres, não ligadas a nenhuma constelação atómica, a nenhum átomo. Este corpo, que foi fotografado pelos russos, através das câmaras Kirlian de fotografias paranormais, apresenta-se brilhante e transparente como se fosse de vidro. As pesquisas com vegetais e animais, em Kirov, provaram que este corpo rege todas as funções do corpo carnal e oferece uma visão total do estado de saúde, doença ou aproximação de estados mórbidos do corpo carnal.

Tudo isto corresponde exactamente ao que a pesquisa espírita já havia revelado sobre o perispírito. O corpo carnal só se cadaveriza quando o corpo bioplásmico se desligou completamente dele. Então a morte consuma-se. É importante que esta descoberta tenha sido feita na URSS por cientistas materialistas, confirmando plenamente as conquistas da Ciência Espírita, feitas por Kardec e por cientistas do maior renome como Crookes, Richet, Crawford, Zöllner, Scherenck-Notzing, Paul Gibier, Ochorovicz e outros. Tivemos ocasião de ver esse corpo em algumas das nossas experiências mediúnicas, muito antes das pesquisas de Kirov. As pesquisadoras da Universidade de Prentice Hall, nos Estados Unidos, que foram à URSS, viram as fotografias e entrevistaram os cientistas responsáveis pelas pesquisas de Kirov, mostraram-se deslumbradas com o corpo espiritual do homem. O relato completo dessa descoberta pode ser lido no livro Experiências Psíquicas Por Trás da Cortina de Ferro, de Lynn Schroeder e Sheila Ostrander, da Editora Cultrix, São Paulo. O título inglês não se refere a experiências, mas a descobertas. A edição original americana é da própria Universidade de Prentice Hall, mas há edições posteriores da Editore Bentam Books, de Nova York.

A Psicologia da Morte não ficará, certamente, restrita aos problemas específicos da relação alma-corpo. A morte nasce das entranhas da vida; por isso, vida e morte caminham juntas, de mãos dadas, ao longo da existência. Costuma dizer-se que começamos a morrer desde que nascemos. Buda dizia que a morte nos visita 75 vezes em cada uma das nossas respirações. A Psicologia da Morte, portanto, deve começar na vida, pesquisando as diversas formas por que as criaturas em geral encaram a morte, como a sentem em relação a si mesmas e em relação aos outros, que influências a morte exerce na vida das pessoas; quais os sentimentos que determinam certas atitudes em face da morte; como se encara hoje o problema das exigências religiosas na hora da morte e nos funerais; qual o efeito do terror da morte no comportamento das criaturas em várias idades; como se poderá mudar tudo isto em favor de condições melhores e assim por diante. A observação de Heideggard sobre a nossa tendência de sempre falarmos da morte como sendo dos outros e não nossa, merece especial atenção nas pesquisas. Vivemos num mundo que só conhecemos por uma face, embora sabendo que a outra face nos espreita. Conhecemos a face da vida, sempre voltada para nós, mas nada ou quase nada sabemos da face da morte. Que efeitos terá essa situação no nosso psiquismo? Os homens matam-se por coisas mínimas. Quais os impulsos reais que levam os homens a essa situação brutal e inconsequente? Por que a morte parece não afectar a maioria das criaturas, que vivem sem preocupação com ela?

Se a Psicologia da Morte não se interessar pela vida, fracassará na sua tentativa de esclarecer os problemas da morte e de ajustar-nos conscientemente ao facto de que nascemos para morrer. Só poderemos compreender a vida depois de compreendermos a morte. Não é estranho que tenhamos feito tudo ao contrário, até agora, temendo e ao mesmo tempo desprezando a morte? A morte é certa, dizem com indiferença. Não obstante, a morte é geralmente incerta, pois não sabemos quando e de que maneira chegará. Se todos nos interessássemos mais pela morte, não poderíamos viver melhor, com menos ambições e desespero inúteis? A Psicologia da Morte não surge por acaso. Na mortalidade massiva do nosso tempo a morte adquire maior importância do que a vida; porque sabemos que estamos na vida e a conhecemos bem. Mas e a morte?

 /…
"As EQM (experiências de quase-morte), vários outros estudos (i)


José Herculano Pires, Educação para a Morte, 18 – Psicologia da Morte, 23º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

domingo, 15 de janeiro de 2017

O Mundo Invisível e a Guerra ~

XII 
Autoridade e Liberdade (2)

|Agosto de 1917|

  Retornemos ao problema da liberdade, cuja noção está marcada na consciência individual e, sob o nome de livre-arbítrio, designa o privilégio que o homem tem de se decidir num sentido determinado e orientar os seus actos para o bem ou para o mal, sendo que a ideia de responsabilidade é inseparável da ideia de liberdade.

  Se fôssemos apenas máquinas dirigidas por forças cegas, autómatos regidos pelo acaso, seríamos irresponsáveis, sendo impossível qualquer sanção à nossa conduta. A sociedade ficaria sujeita a todos os ventos da paixão, a todos os apetites e cobiças.

  A teoria do determinismo, que renega o livre-arbítrio e a responsabilidade, é funesta nas suas consequências, porque corrói os alicerces de toda a lei moral e destrói tudo o que constitui dignidade, altivez e nobreza do carácter humano. Ao preconizar uma indulgência mórbida para com os desequilibrados, os viciosos e os criminosos, o determinismo coloca obstáculos a qualquer tipo de repressão, favorecendo e alentando a todos os abusos e excessos. A ele se pode atribuir, em grande parte, o enfraquecimento e a decadência em que se encontrava o nosso país antes da guerra.

  Por uma estranha contradição, muitas vezes vimos homens, que na política eram adeptos das mais amplas e completas liberdades, rebater, sem embargo, o princípio de liberdade inscrito em nós. Esperamos que as duras lições da guerra lhes tenham aberto os olhos e que agora abandonem ideias perigosas, condenadas por todos os espíritos elevados.

  Não é por acaso que somos dotados do livre-arbítrio ao nascer. Não é a liberdade o que nos espera com a chegada a este mundo, porém a servidão: servidão material, servidão das necessidades, cuja lei imperiosa nos obriga ao trabalho, ao esforço, adquirindo e desenvolvendo a própria liberdade.

  Um olhar à nossa volta nos apresenta a infinita variedade das vontades e da liberdade concedidas a cada um. Somente o Espiritismo e as reencarnações podem explicar esses contrastes e anomalias aparentes.

  As almas frágeis, curvadas ao peso da matéria, sujeitas a todos os desfalecimentos, são espíritos jovens, nascidos recentemente para a vida e que ainda não souberam avaliar as forças ocultas que possuem. Ao contrário, as almas fortes, que conseguiram alto grau de progresso, possuem numerosas existências de lutas e sacrifícios, nas quais aumentaram o seu capital de energia e retemperaram a sua vontade. Entre estas e aquelas existem inumeráveis degraus que representam outras etapas a percorrer e através das quais o ser vê, paulatinamente, aumentar o seu livre-arbítrio e recuar o círculo das fatalidades.

  A diversidade das situações explica-se por si mesma, pois, em razão do seu livre-arbítrio, há almas que se adiantam mais vagarosamente e outras com mais rapidez.

  No começo de nossa trajectória a matéria nos oprime, domina e esmaga, porém, no momento em que a alma se haja elevado o suficiente, começa a dominar a natureza inferior, impondo-lhe os seus desígnios. A educação por meio do trabalho e pela dor desenvolve nela qualidades e forças que a libertam dos laços e dos atractivos materiais.

  Ela se encontra, desde então, apta a ocupar lugar nas comunidades superiores, aprendendo a conduzir-se sem o estímulo do aguilhão da necessidade. Junto com a plenitude de sua liberdade adquire a plenitude da sabedoria e da razão.

  Para que pudessem reinar, neste mundo, a paz e a justiça, seria necessário que as nossas instituições se orientassem por aquelas que regulam a vida nesse Universo invisível onde cada um está no lugar que lhe corresponde e todo o ser recebe uma função adequada ao seu valor moral e aos progressos conseguidos. No entanto, vemos que na Terra tal não acontece.

  Nela os alicerces fundamentais de toda a ordem social – a autoridade e a liberdade –, no lugar de se fundirem num todo harmonioso, se colidem e quase sempre se combatem. A autoridade torna-se perigosa se não está aliada ao mérito e ao saber. A liberdade não o é menos quando se trata de homens violentos, ignorantes e apaixonados.

  Para cada um de nós a lei divina reserva uma série de provações e de trabalhos na medida das nossas necessidades evolutivas e das reparações que as nossas vidas anteriores exigem, porém a lei humana ignora tudo isso.

  Outro erro fundamental de certos sociólogos é a preocupação de estabelecerem a igualdade entre todos os homens. Ela não existe na natureza nem na própria sociedade humana. Jamais se poderá impedir que homens activos, previdentes, económicos superem os indolentes, os imprevidentes e os pródigos.

  No fundo, a igualdade é a própria negação da liberdade e ambas se anulariam mutuamente caso a fraternidade não lhes atenuasse os efeitos antagónicos.

  É verdade que um poderoso movimento de democratização agita todos os países e os povos se voltam para a liberdade. Entretanto, já o dissemos, a liberdade política sem o valor moral, isto é, sem a sabedoria e a razão que a justificam, é uma conquista perigosa, porque o homem terreno coloca os seus direitos acima de seus deveres.

  Ele tem a liberdade de praticar o bem e pratica com maior frequência o mal, que recai sobre ele mesmo com todo o peso das suas consequências, daí as inevitáveis catástrofes, dilacerações, padecimentos e lágrimas.

  As lições da adversidade são necessárias, pois do fundo do abismo dos males a que nos arrasta a guerra vemos melhor os nossos erros e faltas. Estão ressurgindo verdades que estavam esquecidas, fazendo resplandecer entre as nossas angústias um raio do pensamento divino.

  O homem muitas vezes amaldiçoa a dor porque não lhe compreende a eficácia, mas o espírito que paira sobranceiro abençoa-a porque vê nela um instrumento do seu progresso. A dor é o único correctivo do mal que praticamos livremente.

  Se Deus houvesse eliminado o mal e a dor, como alguns filósofos propõem, a nossa liberdade ficaria diminuída na mesma proporção e a nossa personalidade se apoucaria juntamente com os nossos merecimentos. Deus nos permite desfalecimentos e quedas para que as consequências que acarretam sejam um meio de reerguimento.

  Assim, da tormenta actual o nosso país poderá sair moralmente engrandecido, mais sensato e prudente pelos efeitos da rude provação, e aureolado por uma nova glória.

  Todo o sofrimento é uma purificação e a própria guerra, apesar dos horrores que produz, está revestida de uma trágica beleza, se considerada como uma obra de sacrifício.

  O que a História mais exalta é a memória dos que souberam sofrer e morrer: os heróis e os mártires, por exemplo. Não existe nada mais sublime do que o nosso próprio sacrifício, em prol de uma causa justa e de uma nobre ideia!

  A presente guerra é, antes de tudo, um conflito de ideias e trará para o futuro consequências incalculáveis. É a luta da espiritualidade contra o materialismo mais violento, mais cruel; a revolta da consciência humana contra o autoritarismo militar e todos os seus excessos.

  Faz cinquenta anos que o seu jugo oprimia o mundo e, pelo menor motivo, a Alemanha ameaçava os seus vizinhos com o seu pesado sabre.

  Toda a Europa ressoava ao estrondo das armas; o chão estremecia com a marcha das longas colunas de tropas, ao cadente patear dos cavalos, sob o rodar dos canhões. Agora, outras perspectivas se vislumbram; depois dessa guerra devastadora, terminado o militarismo alemão, parece que uma paz definitiva poderá reinar no mundo ensanguentado.

  Espíritos tristes, considerando as devastações espantosas causadas pela guerra, ainda duvidam do futuro de uma civilização que pode produzir tais flagelos; eles não contemplam as coisas de altura suficiente. Uma atenta observação lhes mostraria que, do meio da confusão dos acontecimentos, se elaboram, vagarosamente, a consciência universal e a vontade que os povos possuem de destruir, para sempre, a causa de tantos males.

  Paulatinamente, se forma um acordo entre as nações que unem os seus esforços para eliminar o conflito latente, a “paz armada” que vem destruindo a Europa há meio século, enchendo o abismo sem fim dos gastos inúteis que absorvem a maior parte da produção do trabalho e da capacidade dos povos. Se essa guerra pode chegar a tais resultados, ninguém vacilará em reconhecer que, pelo menos, nos obrigará a dar um grande passo para um futuro melhor.

  As dolorosas lições do presente terão fornecido os seus frutos e o prestígio da glória militar se dissipará como a fumaça. Republicanos ou monárquicos, todos querem determinar as responsabilidades do grande drama, tirando delas as punições necessárias. As instituições sociais passarão por profundas modificações e as ideias democráticas parecem impor-se aos mais indiferentes.

  A política secreta já não se usa mais, os povos querem poder gerir o seu próprio destino. A Alemanha, habituada a todas as servidões, parece tremer diante de um sopro libertador.

  Ela sente em si, como todas as outras nações, uma intensa necessidade de renovação e progresso.

  Como podemos definir o progresso? Ele é o objectivo principal da actividade humana, nas suas diversas formas: material, intelectual e moral. Ele deve ser realizado nesses três aspectos, paralelamente, a fim de dar ao poder social o desenvolvimento e o equilíbrio que fazem dele um todo harmonioso.

  O conjunto dos esforços empregados e dos resultados adquiridos constitui a civilização. Porém quando a civilização se apega a uma ou a outra daquelas formas e despreza as demais, o equilíbrio se rompe e a humanidade caminha para um cataclismo. É o que está a acontecer no momento actual. A Ciência concedeu meios formidáveis de destruição ao homem e este os consagrou às obras do mal. A orgulhosa Alemanha pretendia dominar o mundo pela força e pelo terror.

  De outro lado, o sensualismo e a corrupção dos costumes haviam enfraquecido bastante a resistência dos seus adversários. As furiosas paixões desencadearam a borrasca e Deus permitiu que tudo acontecesse a fim de que, ao sinistro clarão dos acontecimentos, pudéssemos calcular toda a extensão dos nossos erros e a humanidade se regenerasse pelo sofrimento.

  Pelas mesmas razões a civilização já desapareceu várias vezes da face da Terra. Os nossos vícios e a nossa cegueira já nos conduziram à beira de um abismo, onde nos teríamos projectado, se não tivéssemos os auxílios poderosos do mundo invisível.

  Quando uma civilização chegou ao ponto de transviar o homem das leis divinas, daquilo que Platão denominava “o real caminho da alma”, quando perdeu de vista o principal objectivo da existência, que é a educação e o aperfeiçoamento moral do homem, tal civilização está condenada a desaparecer por culpa dos seus próprios excessos. Se não for inteiramente destruída ela se verá, no mínimo, abalada nas suas mais íntimas profundezas.

  Pelos ferozes caprichos das batalhas, pelas epidemias e por todos os males decorrentes da guerra, milhares de almas se libertaram, escapando assim da contaminação pelos maus exemplos, das tradições que perpetuam os erros e os abusos, para renascer depois no meio terrestre, quando purificados pela dor, ou noutros mundos melhores.

  A grande lei das reencarnações não é mais do que uma das formas da eterna lei do progresso e nada prevalece contra ela. Às vezes ela parece ter sido sustada pelos efeitos da liberdade humana, porém, mais cedo ou mais tarde, retoma o seu curso, exercendo a sua acção sob novas formas.

  Por meio dos triunfos e dos martírios das nações, através das mortes aparentes e das ressurreições, poder-se-ia seguir a marcha majestosa da humanidade para o belo e para o bem supremos, sob o olhar atento de Deus.

/…


LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, XII Autoridade e Liberdade (2) Agosto de 1917, 29º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

O sentido da vida ~

O Materialismo e o Idealismo

Falemos da possibilidade que o Espiritismo abre, ao mundo de hoje, para a solução de velhas rixas filosóficas que pareciam para sempre insolúveis. A natureza de síntese dos conhecimentos humanos, de que se reveste a doutrina, dá-lhe inesperada capacidade nesse terreno. E assim como a velha questão do corpo e espírito encontra a equação imediata nos postulados espíritas, assim também a luta aparente entre o materialismo e o idealismo, no campo da filosofia, nos revela a sua face de simples equívoco.

De um lado alegam os materialistas que não podem tomar conhecimento do Espiritismo, por ser ele uma doutrina idealista, que joga com improbabilidades. Fugindo ao terreno material, entra o Espiritismo pelos caminhos nebulosos da suposição ou das deduções empíricas, sem base experimental e racional. De outro lado, porém, são os idealistas que acusam o Espiritismo de procurar reduzir coisas do espírito a soluções materiais. Quando falamos da possibilidade de comunicação dos espíritos, os idealistas censuram o nosso materialismo, no trato das coisas espirituais. Ao mesmo tempo – e pelo mesmo motivo – os materialistas nos rotulam de metafísicos, de pescadores de coisas impossíveis.

Diante da celeuma que de um campo e do outro se levanta, perguntaremos: onde ficará o Espiritismo? É verdade que Kardec anotou, no subtítulo de O Livro dos Espíritos, a filiação da doutrina à filosofia espiritualista. Mas não estaremos hoje diante de um facto novo, que nos mostra, na prática a impropriedade desse divisionismo no campo filosófico? A velha disputa que nos vem, como sempre, da velha Grécia, envolvendo Demócrito e Platão, para as figuras de Hegel e Fauerbach, afinal superadas, nas suas contradições, pelo trabalho de Marx e Engels, criadores do materialismo dialéctico, não estaria resolvida com o aparecimento do Espiritismo?

É claro que materialistas e espiritualistas, marxistas, existencialistas e outros, em quantas centenas de variantes se dividem as novas teorias filosóficas, ao longo daquelas duas correntes, considerarão utópica, senão mesmo absurda, a questão que levantamos aqui. Mas todos aqueles que quiserem deixar de lado, por um momento, a bagagem dos seus preconceitos, para olhar as coisas com os próprios olhos, verão que a aceitação dos princípios espíritas liberta o homem das contradições do materialismo e do espiritualismo. Estamos, aliás, diante do conhecido processo de síntese, decorrente do choque das contradições.

Espiritismo não se prende ao terreno exclusivamente idealista, porque não é subjectivo. As suas afirmações decorrem da experiência e não da simples suposição ou dedução. Kardec afirma que o Espiritismo é ciência de observação, e como tal tem de realizar o seu desenvolvimentoNão nos oferece a doutrina uma interpretação idealista, mas um conhecimento objectivo e real dos factos e das coisas. A existência do espírito não nos é apresentada como abstracção, de verificação impossível, mas como realidade que pode ser objectivamente comprovada. E mais do que isso, como parte integrante da própria natureza objectiva. Os casos, por exemplo, de obsessão colocam o problema no terreno da própria patologia médica, incluindo os espíritos entre os factores de anomalias físicas, ao lado dos micróbios e de outros agentes provocadores de doenças e lesões orgânicas.

Por outro lado, diante de todas essas características materialistas, o Espiritismo não se prende aos factos do mundo físico, reconhecendo a existência de um plano hiper-físico na natureza, e de fenómenos com ele relacionados. Prega também a independência do espírito e a sua sobrevivência à morte do corpo somático. Isso basta para identificá-lo com as correntes idealistas.

Essas aparentes contradições do Espiritismo revelam a sua natureza sintética e a sua extraordinária capacidade de solucionar os velhos e intrincados problemas da filosofia tradicional. Na realidade, o Espiritismo não é idealista nem materialista, mas simplesmente realista. Ele observa e interpreta a natureza de um ponto de vista diverso dos daquelas duas correntes, tendo uma visão panorâmica da vida e do mundo nas suas múltiplas manifestações espirituais e materiais. Na trama complexa da vida, o Espiritismo não escolheu um determinado ramo para pousar. E com isso, de uma vez por todas, ele conseguiu solucionar o velho impasse, mostrando que tanto Platão como Demócrito estavam com a razão, e Marx e Engels, ao procurar a síntese entre Hegel e Fauerbach, cometeram o erro filosófico de optar por uma das duas tendências.

Para o Espiritismo, o mundo é uma realidade ao mesmo tempo física e espiritual, objectiva e subjectiva. Não se pode tomar a vida e o mundo por um único dos seus aspectos, sob pena de mutilação e de conflito. O exaustivo conflito entre o materialismo e o idealismo ficou, assim, solucionado e o Espiritismo demonstrou que ele não passava de um dos muitos equívocos em que os homens se têm perdido, nas suas exigências intelectualistas, ao longo dos séculos e das civilizações.

/…


José Herculano Pires, O Sentido da Vida, Materialismo e Idealismo, 7º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

| o grande enigma ~

a ideia de Deus | e a experimentação psíquica ~

Até aqui, no nosso estudo da questão de Deus, mantivemo-nos no terreno dos princípios. Nesse domínio, a ideia de Deus nos aparece qual chave da abóbada da doutrina espiritualista. Vejamos agora se não tem a mesma importância no domínio dos factos, na ordem experimental. (i)

À primeira vista, pode parecer estranho ouvir dizer que a ideia de Deus representa um papel importante no estudo experimental, na observação dos factos espíritas.

Notemos primeiramente que há tendência, por parte de certos grupos, para dar ao Espiritismo carácter sobremaneira experimental, para fazer-se exclusivamente o estudo dos fenómenos, desprezando-se o que tem cunho filosófico, tendência para rejeitar tudo o que possa recordar, por pouco que seja, as doutrinas do passado, para, em suma, limitar tudo ao terreno científico. Nesses meios, procura afastar-se a crença e a afirmação de Deus, por supérfluas, ou, pelo menos, por serem de demonstração impossível. Pensa-se, assim, atrair os homens de ciência, os positivistas, os livres-pensadores, todos aqueles que sentem uma espécie de aversão pelo sentimento religioso, por tudo o que tem certa aparência mística ou doutrinal.

Por outro lado, desejar-se-ia fazer do Espiritismo um ensino filosófico e moral, baseado nos factos, ensino susceptível de substituir as velhas doutrinas, os sistemas caducos, e satisfazer o grande número de Almas que buscam, antes de tudo, consolação para as suas dores; uma filosofia simples, popular, que lhes dê tréguas às tristezas da vida.

De um lado e de outro, há multidões a contentar; muito mais, até, de um lado que do outro, porque a multidão daqueles que lutam e sofrem excede em muito a dos homens de estudo.

A sustentar essas duas teses vemos, de uma parte e de outra, homens sinceros e convencidos, a cujas qualidades nos congratulamos de render homenagem.

Por quem optar? Em que sentido convirá orientar-se o Espiritismo para assegurar a sua evolução?

O resultado das nossas pesquisas e das nossas observações leva-nos a reconhecer que a grandeza do Espiritismo, a influência que adquire sobre as massas, provém, principalmente, da sua doutrina; os factos são os fundamentos em que o edifício se apoia. Certamente! As fundações representam papel essencial em todo o edifício, mas não é nas fundações, isto é, nas estruturas subterrâneas, que o pensamento e a consciência podem encontrar abrigo.

Aos nossos olhos, a missão real do Espiritismo não é somente esclarecer as inteligências por um conhecimento mais preciso e mais completo das leis físicas do mundo; tal consiste, principalmente, em desenvolver a vida moral nos homens, a vida moral que o materialismo e o sensualismo têm amesquinhado tanto. Levantar os caracteres e fortificar as consciências, tal é o papel do Espiritismo. Sob este ponto de vista, pode ser remédio eficaz para os males que assediam a sociedade contemporânea, remédio a esse acréscimo inaudito do egoísmo e das paixões, que nos arrastam ao abismo. Julgamos dever exprimir aqui a nossa inteira convicção: não é fazendo do Espiritismo somente uma ciência positiva, experimental; não é eliminando nele o que há de elevado, o que atrai o pensamento acima dos horizontes estreitos, isto é, a ideia de Deus, o uso da prece, que se facilitará a sua missão; ao contrário, concorrer-se-ia para torná-lo estéril, sem acção sobre o progresso das massas.

Certamente! Ninguém mais do que nós admira as conquistas da Ciência; sempre tivemos prazer de render justiça aos esforços corajosos dos sábios que fizeram recuar a cada dia os limites do desconhecido.

Mas a Ciência não é tudo. Sem dúvida ela tem contribuído para esclarecer a Humanidade; entretanto, tem-se mostrado sempre impotente para torná-la mais feliz e melhor.

A grandeza do espírito humano não consiste somente no conhecimento; está também no ideal elevado. Não foi a Ciência, e sim o sentimento, a fé e o entusiasmo que fizeram Jeanne d'Arc e todas as grandes epopeias da História.

Os enviados do Alto, os grandes predestinados, os videntes e os profetas não escolheram por móbil a ciência: escolheram a crença.

Eles vieram para mostrar o caminho que conduz a Deus.

Que é feito da ciência do passado? As vagas do esquecimento a submergiram, tal qual submergirão a ciência dos nossos dias. Quais serão os métodos e as teorias contemporâneas em vinte séculos? Em compensação, os nomes dos grandes missionários têm sobrevivido através dos tempos. O que sobrevive a tudo, no desastre das civilizações, é o que eleva a alma humana acima de si mesma, para um fim sublime, para Deus!

Há outra coisa mais. Mesmo limitando-nos ao terreno do estudo experimental, há uma consideração capital em que devemos inspirar-nos. É a natureza das relações que existem entre os homens e o mundo dos Espíritos; é o estudo das condições a preencher para tirar dessas relações os melhores efeitos.

Logo que chegamos aos ditos fenómenos, ficamos impressionados pela composição desse mundo invisível que nos cerca, pelo carácter das multidões de Espíritos que nos rodeiam e que procuram sem cessar pôr-se em relação com os homens. Em torno do nosso atrasado planeta flutua uma vida poderosa, invisível, onde dominam os Espíritos levianos e zombeteiros, com os quais se misturam Espíritos perversos e malfazejos. Aí há muitos apaixonados, cheios de vícios, criminosos. Deixaram a Terra com a alma repleta de ódio, com o pensamento saturado de vingança: esperam na sombra o momento propício para satisfazer os seus rancores, as suas fúrias, à custa dos experimentadores imprudentes e imprevidentes que, sem precaução, sem reserva, abrem de par em par as vias que fazem comunicar o nosso mundo com o dos Espíritos.

É desse meio que nos vêm as mistificações sem-número, os embustes audaciosos, as manobras bem conhecidas dos Espíritos experimentados, manobras pérfidas, que, em certos casos, conduzem os médiuns à obsessão, à possessão, à perda das suas mais belas faculdades, a tal ponto que certos críticos, fazendo a enumeração das vítimas desses factos, contando todos os abusos que decorrem de uma prática imprevista e frívola do Espiritismo, têm perguntado se não seria ele uma fonte de perigos, de misérias, uma nova causa de decadência para a Humanidade. (ii)

Felizmente, ao lado do mal está o remédio. Para nos livrar das influências más existe um recurso supremo. Possuímos um meio poderoso para afastar os Espíritos do abismo e para fazer do Espiritismo um elemento de regeneração, um sustentáculo, um confortante. Esse recurso, esse preservativo é a prece, é o pensamento dirigido para Deus! O pensamento de Deus é qual uma luz que dissipa a sombra e afasta os Espíritos das trevas; é uma arma que dispersa os Espíritos malfazejos e nos preserva dos seus embustes. A prece, quando é ardente, improvisada – e não recitação monótona –, tem um poder dinâmico e magnético considerável; (iii) ela atrai os Espíritos elevados e assegura-nos a sua protecção. Graças a eles podemos sempre comunicar com aqueles que nos amaram na Terra, aqueles que foram a carne da nossa carne, o sangue do nosso sangue e que, da sombra do Espaço, nos estendem os braços.

Temos verificado, muitas vezes, na nossa carreira de experimentadores: quando, numa reunião espírita, todos os pensamentos e vontades se unem num transporte poderoso, numa convicção profunda; quando sobem para Deus pela prece, jamais falha o socorro. Todas essas vontades reunidas constituem um feixe de forças, a arma segura contra o mal. Ao apelo que se eleva para o céu, há sempre algum Espírito de escol que responde. Esse Espírito protector, a convite do Alto, vem dirigir os nossos trabalhos, afastar dali os Espíritos inferiores, deixando somente intervir aqueles cujas manifestações são úteis para eles próprios ou para os encarnados.

Há aí um princípio infalível. Com o pensamento purificado e a elevação para Deus, o Espiritismo experimental pode ser uma luz, uma força moral, uma fonte de consolações. Sem esses requisitos ele poderá ser a incerteza, a porta aberta a todas as armadilhas do Invisível; uma entrada franca a todas as influências, a todos os sopros do abismo, a esses sopros de ódio, a essas tempestades do mal que passam sobre a Humanidade, à semelhança de trombas, e a cobrem de desordem e de ruínas.

Sim, é bom, é necessário abrir veredas para a comunicação com o mundo dos Espíritos; mas, antes de tudo, deve evitar-se que essas veredas sirvam aos nossos inimigos, para nos invadirem. Lembremo-nos de que há nos mundos invisíveis muitos elementos impuros. Dar-lhes entrada, seria derramar sobre a Terra males inúmeros; seria entregar aos Espíritos perversos uma verdadeira multidão de almas fracas e desarmadas.

Para entrar em relação com as Potências superiores, com os Espíritos esclarecidos, é preciso a vontade e a fé, o desinteresse absoluto e a elevação dos pensamentos. Fora destas condições, o experimentador seria o joguete dos Espíritos levianos.

“O que se assemelha se ajusta”, diz o provérbio. Com efeito, a lei das afinidades rege tanto o mundo das Almas quanto o dos corpos.

Há, pois, tanto sob o ponto de vista teórico quanto do prático e, ainda, sob o ponto de vista do progresso do Espiritismo, a necessidade de se desenvolver o senso moral, de nos ligarmos às crenças fortes e aos princípios superiores, de não abusar das evocações, de não entrar em comunicação com os Espíritos senão em condições de recolhimento e de paz moral.

Espiritismo foi dado ao homem como meio de se esclarecer, de se melhorar, de adquirir qualidades indispensáveis à sua evolução. Se se destruíssem nas Almas ou somente se desprezassem a ideia de Deus e as aspirações elevadas, o Espiritismo poderia tornar-se coisa perigosa. Eis a razão pela qual não hesitamos em dizer que entregarmo-nos às práticas espíritas sem purificar os nossos pensamentos, sem os fortificar pela prece e pela fé, seria executar obra funesta, cuja responsabilidade poderia cair pesadamente sobre os seus autores.

Chegamos agora a um ponto particularmente delicado da questão. Atribui-se muitas vezes aos espíritas o não viverem sempre de acordo com os seus princípios; fazendo-se observar que entre eles o sensualismo, os apetites materiais e o amor ao lucro ocupam lugar muitas vezes considerável. Acusam-nos, principalmente, de divisões intestinas, rivalidades de grupos e de pessoas, que são grandes obstáculos à organização das forças espíritas e à sua marcha para diante.

Não nos interessa insistir sobre essas proposições; não queremos pronunciar aqui nenhum juízo desfavorável para quem quer que seja. Permita-se-nos somente fazer notar que não será reduzindo o Espiritismo ao papel de simples ciência de observação, que se conseguirá iludir, atenuar essas fraquezas. Ao contrário, não faremos mais que as agravar. O Espiritismo exclusivamente experimental já não terá autoridade, nem força moral necessárias para ligar as Almas. Alguns supõem ver no afastamento da ideia de Deus uma aproveitável medida ao Espiritismo. Por nossa parte, diremos que é a insuficiência actual desta noção e, ao mesmo tempo, a insuficiência dos nobres sentimentos e das altas aspirações, que produzem a falta de coesão e criam as dificuldades da organização no Espiritismo.

Desde que a ideia de Deus se enfraquece numa Alma, a noção do eu, isto é, da personalidade, aumenta logo; e aumenta ao ponto de se tornar tirânica e absorvente. Uma dessas noções não cresce e se fortifica senão em detrimento da outra. Quem não adora a Deus, adora-se a si mesmo, disse um pensador.

O que é bom para os meios de experimentação espírita, é bom para a sociedade inteira. A ideia de Deus – nós o demonstramos – liga-se estreitamente à ideia de Lei, e assim à de dever e de sacrifício. A ideia de Deus liga-se a todas as noções indispensáveis à ordem, à harmonia, à elevação dos seres e das sociedades. Eis por que, logo que a ideia de Deus se enfraquece, todas essas noções se debilitam; desaparecem, pouco a pouco, para dar lugar ao personalismo, à presunção, ao ódio por toda a autoridade, por toda a direcção, por toda a lei superior. E é assim que, pouco a pouco, grau a grau, se chega a esse estado social que se traduz por uma divisa célebre, que ouvimos ecoar por toda a parte: Nem Deus, nem Senhor!

Tem-se de tal modo abusado da ideia de Deus, através dos séculos; tem-se torturado, imolado, em seu nome, tantas vítimas inocentes; em nome de Deus tem-se de tal modo regado o mundo de sangue humano, que o homem moderno se desviou Dele. Tememos muito que a responsabilidade desse estado de coisas recaia sobre aqueles que fizeram, do Deus de bondade e de eterna misericórdia, um Deus de vingança e de terror. Mas, não nos compete estabelecer responsabilidades. O nosso fim é, antes, procurar um terreno de conciliação e de aproximação, em que todos os bons Espíritos se possam reunir.

Seja como for, os homens modernos, na grande maioria, já não querem suportar acima deles nem Deus, nem lei, nem constrangimento; já não querem compreender que a liberdade, sem a sabedoria e sem a razão, é impraticável. A liberdade, sem a virtude, leva à licença, e a licença conduz à corrupção, ao rebaixamento dos caracteres e das consciências, numa palavra, à anarquia. Será somente quando tivermos atravessado novas e mais rudes provas que consentiremos em reflectir. Então, a verdade se fará luz e a grande palavra de Voltaire se verificará aos nossos olhos: “O ateísmo e o fanatismo são os dois pólos de um mundo de confusão e de horror!” (A História de Jeni.).

É verdade que muito se fala de altruísmo, nova denominação do amor da Humanidade, e se pretende que esse sentimento deve bastar. Mas, como se fará do amor da Humanidade uma coisa vivida, realizada, quando não chegamos, não direi a amar-nos, mas somente a suportar-nos uns aos outros? Para se agruparem os sentimentos e as aspirações, é necessário um ideal poderoso. Pois bem! Esse ideal não o encontrareis no ser humano, finito, limitado; não o encontrareis nas coisas deste mundo, todas efémeras, transitórias. Ele não existe senão no Ser infinito, eterno. Somente Ele é bastante vasto para recolher, absorver todos os transportes, todas as forças, todas as aspirações da alma humana, para reconhecê-los e fecundá-los. Esse ideal é Deus!

Mas que é o ideal? É a perfeição. Deus, sendo a perfeição realizada, é ao mesmo tempo o ideal objectivo, o ideal vivo!

/…
(i) Vide as minhas obras precedentes: Cristianismo e Espiritismo, No Invisível e, ainda, Espíritos e Médiuns – tratado de Espiritismo experimental.
(ii) Vide J. Maxwell, Fenómenos Psíquicos, páginas 232 a 235; Léon Denis, No Invisível, cap. XXII. Vide também Relatório de Congresso Espírita de Bruxelas, 1910, págs. 112, 124.
(iii) Obtemos a prova objectiva desse facto por meio das Chapas fotográficas. No estado de prece, pelo contacto dos dedos, conseguimos impregnar as chapas de radiações muito mais activas, de eflúvios mais intensos do que no estado normal.


Léon Denis, O Grande Enigma, Primeira parte / Deus e o Universo, VII A ideia de Deus e a experimentação psíquica, 18º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: As majestosas e violentas palavras dos poemas, pintura em acrílico de Costa Brites)

sábado, 10 de dezembro de 2016

Victor Hugo e o invisível ~


~ fisionomia espiritual de Victor Hugo ~

Victor Hugo via nas crianças seres que falavam com o invisível, mas também descobria nelas gigantes que regressavam de misteriosas distâncias. Para o poeta, as crianças eram seres não estranhos à terra. Ele as considerava viajantes, que regressavam ao mundo depois de uma prolongada ausência.

Opôs-se enfaticamente à pena de morte. (i) Lutou contra ela como poeta e como legislador. Por isso, pôs na boca de um pontífice estas palavras: "Com que direito despojais a alma da casca do corpo, para apresentá-la na sua espantosa nudez perante a eternidade?" "Sabei, humanos, que morrer é nascer noutro lugar".

poeta respeitava até a vida de um insecto. Para os grandes espíritos a vida espiritual não tem tamanho. Não esqueçamos que o mais pequeno pode conter a partícula do génio. Sentia-se criatura do Universo, pois percebia em cada astro o rumor de uma origem e a futura morada que o ser poderia habitar. O seu espírito era de uma ressonância cósmica e foi isso que o afastou do niilismo materialista.

Num dos seus livros, escreveu: "A produção das almas é o segredo do abismo". Mas este segredo foi-se-lhe revelando com a sabedoria das mesas girantes que conheceu no seu desterro na ilha de JerseySupôs, assim, que cada homem é o resultado de infinitas existências vividas pelo ser e que Deus só será uma afirmação da justiça pela lei espiritual da reencarnação.

Para a sua concepção filosófica e religiosa, existe no homem uma sede divina e é ela que provoca o problema da persistência do eu, o que o fez dizer: "Toda a síntese de Deus que existe no mundo condensa-se num único grito para afirmar a existência da alma". A existência de Deus e da alma complementam-se no pensamento do poeta.

Por quê alguns críticos desejam desvincular Victor Hugo dos temas do espírito? Sem dúvida, essa situação se desmorona por falta de base quando ele mesmo diz: "Vêm-se as grandes almas como se vêm as grandes montanhas; logo, existem". Victor Hugo não foi grande só pelas suas concepções literárias, mas, também porque acreditou no sentido profundo destas três palavras: Deus, Alma e Reencarnação.

Acontecia de Victor Hugo entrar em estado de meditação por longo tempo. Era assim que penetrava no invisível e o seu génio se impregnava de novidades transcendentais, que logo se traduziam por maravilhosos poemas. Toda a poesia de Victor Hugo é uma entrada no mundo profundo da metafísica e da religião.

O enigma mais apaixonante para ele era a natureza do génio. Fez indagações filosóficas para conhecê-la, mas foi pela poesia que ele a contestou com maior acerto: "Deus, ao criar Homero, criou o infinito". E concluiu: "O génio é inexorável: tem a sua lei e cumpre-a''. De facto, o génio é uma consequência do destino e uma aproximação a Deus.

Os poemas de Victor Hugo eram líricos, históricos e religiosos. Constituíam verdadeiras manifestações de sabedoria, pondo de lado a técnica para ficar no esotérico. O que saia da sua inspiração eram revelações procedentes das mais profundas raízes do ser. Disse ele: "Na minha profundidade misteriosa tudo vibra". Mas, qual era essa " misteriosa profundidade" de que falava? Atrevemo-nos a dizer que era o abismo vivo e aceso do mais profundo do ser, cujo devir espiritual é uma consequência de sua incessante reencarnação.

Os poemas de Victor Hugo têm ligação com os profetas maiores da Bíblia. Houve quem dissesse que a causa disso era o facto de ele ter sido a reencarnação de Isaíasmas nós acreditamos que ele foi realmente inspirado pelo mundo invisível.

poeta, segundo dizia António Machado, é um espírito que tende para o mistério. Outros opinam que é apenas um ser humano e natural e o que escreve se deve às suas predisposições cerebrais. Sem dúvida, na personalidade de Victor Hugo existiram rasgos que desfazem essa apreciação. Sem colocá-lo no plano sobrenatural, acreditamos que o poeta possui uma sensibilidade que não é consequência do seu sistema nervoso, nem do peso e volume de seus lóbulos cerebrais. Cremos que no poeta existe uma condição supra-sensível mediúnica, que lhe permite captar a alma oculta dos seres e das coisas a beleza poética não é mais que uma profundidade existencial próxima do místico e do religioso. Assim é que tanto a inspiração como a revelação, o poético, o místico e o mediúnico outra coisa não são que situações determinadas pela natureza supra-sensível que possui o poeta. Sobre essa concepção têm falado amplamente Bremond e Jacques Maritain.

Na América, eminentes poetas têm-se relacionado com o poético supranormal. Recordemos Walt WhitmanRubén DaríoLeopoldo LugonesAmado NervoRicardo RojasArturo CapdevilaJuana de Ibarbouru, etc. Todos eles se sentiram ligados ao invisível, ao numinoso, supranormal. Foram poetas-médiuns que captaram as essências poéticas tanto do mundo visível quanto do invisível. Tinham o mesmo ser e o mesmo tom poético de Victor Hugo. Eis como a poesia eleva as almas à região dos iguais.

Não olhemos o poeta como um ser fisiológico, posto que no meramente orgânico não podem manifestar-se os conteúdos da Divina Comédia, de Dante; do Canto a Mim Mesmo, de Walt Whitman; do Martín Fierro, de José Hernández; do Tabaré, de Juan Zorrilla de San Martin. O poeta demonstra que a alma pode ter aquilo que se chama "emancipação" e captar assim as essências vivas da beleza e da verdade. Se o poeta fosse nada mais que carne e osso, como se explicaria a grandeza oceânica de um Pablo Neruda que, não obstante a sua adesão ao materialismo histórico, se sentia a si mesmo como um espírito reencarnado?

A existência do poeta é uma prova da natureza espiritual do homem e do seu existir infinito. Victor Hugo orava nas suas solidões, razão porque escreveu muitas páginas depois de ter meditado na existência de Deus.

Quando escreveu Os trabalhadores do mar, manifestou as suas profundidades oceânicas tanto no poético como no religioso. O mar no seu ser profundo bramava furiosamente. As rochas de seu ser eram açoitadas pelo mar Divino do Universo; por isso, esse abismo aquático foi para ele o melhor símbolo para compreender a sua própria alma. Quando se diz Hugo poeta, diz-se mar rebentando sobre as costas da eternidade. Diz-se que escutava as vozes do oceano para perceber nelas a noção de que a morte não poderá aniquilar o génio nem o mais minúsculo ser da criação.

Há quem diga que acreditar em Deus e na Alma é um inconveniente ao trabalho em favor de um mundo novo. Que Deus e Alma são dois anestésicos para adormecer as forças revolucionárias do homem. Acreditamos que Victor Hugo foi um exemplo contrário e perfeito dessa apreciação sustentada pelos teóricos sociais do mundo moderno. Consideramos que a verdadeira revolução se dará através das novas ideias sobre Deus e a Alma. Sem elas tudo estará morto e vazio, já que a verdadeira prostração das forças revolucionárias se origina da falta de sentido espiritual que se quer ver em tudo o que existe. Pois, se lutar por um mundo novo tem como prémio a morte e o nada, o homem só deveria dedicar-se a desfrutar dos prazeres materiais, já que o seu porvir será um tenebroso e infinito não-ser. Victor Hugo acreditava em Deus e na Alma e era um poeta revolucionário tanto na ordem social quanto na espiritual.

O autor de Os Miseráveis escrevia vertiginosamente, sem se incomodar com o estilo. Era uma fonte incontida; os seus escritos brotavam do seu ser, das suas essências mais profundas, das suas raízes poéticas fundidas no invisível. Foi um paradigma do poeta-médium, mas, não obstante, a grandeza de suas criações não era resultante apenas da intervenção de seres desencarnados. Não se esqueça que ele era o médium do mar, do vento, das tempestades, do abismo, do bosque, da montanha. Era o médium de toda a criação: do pássaro, do cão, do boi, da ovelha, da árvore, da erva, da água, da rocha, dos astros, das estrelas. Era, pois, o médium de tudo o que existe; por isso, escreveu como poeta-médium, já que o fundamental para ele é que o espírito falava e não apenas a parte visível da realidade.

A religião do poeta baseava-se na do Ser encarnado e desencarnado. Uma igreja invisível era para ele o sustentáculo do verdadeiro acto religioso. Sentia-se unido a Deus, mas nem por isso era o servidor ou partidário de uma cultura anacrónica e retardatária. Como poeta, penetrou no mistério da morte, mas nem por isso deixou de aprofundar-se no vasto campo das contradições humanas. Colocar em ordem as páginas vertiginosamente escritas foi coisa muito complicada para Victor Hugo. Apesar de ter os pés na terra, escrevia com o estremecimento de um Leviatã espiritual. O mundo invisível concentrava-se sobre ele como vento poderoso, que movia a sua pena incontidamente. Não é em vão que nas palavras de Jesus o espírito é o vento que "sopra onde quer". León Felipe, o poeta espanhol que acreditava na reencarnação das almas, teve no vento o seu daimon poético. Esta força da natureza foi sempre um médium entre a matéria e o espírito. O vento do espírito roçou a fronte de Victor Hugo, fazendo dele o poeta-médium das coisas visíveis e invisíveis.

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(i) "Está pois a pena de morte abolida nesse nobre Portugal, pequeno povo que tem uma grande história. (…) Felicito a vossa nação. Portugal dá o exemplo à Europa. Desfrutai de antemão essa imensa glória. A Europa imitará Portugal. Morte à morte! Guerra à guerra! Viva a vida! Ódio ao ódio. A liberdade é uma cidade imensa da qual todos somos concidadãos" Victor Hugo, 1876, a propósito da abolição da pena de morte em Portugal (o primeiro país europeu a fazê-lo). Nota desta publicação.


Humberto Mariotti, Victor Hugo Espírita, Fisionomia espiritual de Victor Hugo, 15º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)