Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Da sombra do dogma à luz da razão ~


Existência de Deus

  Sendo Deus a Causa primeira de todas a coisas, o ponto de partida de tudo, o eixo sobre que assenta o edifício da Criação, é o ponto que importa considerar antes de tudo.

  É um princípio elementar que se avalia uma causa pelos seus efeitos, mesmo quando não se vislumbra a causa.

  Se um pássaro cortando o ar é atingido com chumbo mortal, julgamos que um hábil atirador o feriu, apesar de não vermos o atirador. Portanto, nem sempre é necessário ter-se visto uma coisa para sabermos que existe. Em tudo, é ao observar os efeitos que chegamos ao conhecimento das causas.

  Um outro princípio igualmente elementar passou ao estado de axioma à força de verdadeiro: que qualquer efeito inteligente deve ter uma causa inteligente.

  Se perguntássemos quem é o engenheiro de um tal engenhoso mecanismo, que pensaríamos de quem respondesse que este se tinha feito sozinho? Quando vemos uma obra-prima da arte ou da indústria, dizemos que deve ser produto de um homem de génio, porque uma elevada inteligência deve ter presidido à sua concepção; calculamos todavia que deve ter sido feito por um homem, porque sabemos que a coisa não está acima da capacidade humana, mas ninguém se lembrará de dizer que saiu do cérebro de um idiota ou de um ignorante e ainda menos que se trata do trabalho de um animal ou de produto do acaso.

  Em todo o lado reconhecemos a presença do homem nas suas obras. A existência dos homens antediluvianos não seria unicamente provada pelos fósseis humanos, mas também e com a mesma certeza pela presença dos terrenos dessa época de objectos trabalhados pelos homens; um fragmento de vaso, uma pedra talhada, uma arma, um tijolo, serão suficientes para atestar a sua presença. Pela rudeza ou pela perfeição do trabalho reconhecemos o grau de inteligência e da evolução dos que o executam. Se portanto vos encontrardes num país habitado exclusivamente por indígenas e descobrirdes uma estátua de Fídias, não hesitareis em dizer que os indígenas teriam sido incapazes de a fazer, terá de ser obra de uma inteligência superior à dos indígenas.

  Pois bem. Lançando um olhar à nossa volta para as obras da natureza, observando a previsão, a sabedoria, a harmonia que presidem a todas, reconhecemos não existir uma única que não ultrapasse os limites mais elevados  da inteligência humana. Uma vez que o homem não as pode produzir, é porque são produto de uma inteligência superior à humana, a não ser que se diga que é efeito sem causa.

  A isto alguns opõem o seguinte raciocínio:

  As obras ditas da natureza são o produto de forças materiais que agem mecanicamente devido às leis de atracção e retracção; as moléculas dos corpos inertes agregam-se e desagregam-se, crescem e reproduzem-se sempre da mesma maneira, cada qual dentro da sua espécie, graças a estas mesmas leis; cada indivíduo é semelhante àquele de onde saiu; o crescimento, a floração, a frutificação, a coloração, estão subordinados às causas materiais, tais como o calor, a electricidade, a luz, a humanidade, etc. Passa-se o mesmo com os animais. Os astros formam-se pela atracção molecular e movem-se perpetuamente nas suas órbitas devido ao efeito da gravitação. Esta regularidade mecânica na aplicação das forças naturais não revela de maneira nenhuma uma inteligência livre. O homem mexe o seu braço quando quer como quer, mas quem o mexesse no mesmo sentido desde o nascimento até à sua morte, seria um autómato; ora, as forças orgânicas da natureza são puramente automáticas.

  Tudo isto é verdade; mas estas forças são efeitos que devem ter uma causa e ninguém pretende que constituam a Divindade. São materiais e mecânicas; não são de maneira nenhuma inteligentes em si mesmas e isto é ainda verdade; mas são postas em acção, distribuídas, apropriadas para as necessidades de cada coisa por uma inteligência que não é a dos homens. A útil apropriação destas forças é um efeito inteligente que revela uma causa inteligente. Um pêndulo move-se com uma regularidade automática e é esta regularidade que lhe dá o mérito. A força que a faz agir é toda material e de modo nenhum inteligente, mas que seria este pêndulo se uma inteligência não tivesse combinado, calculado o emprego desta força para fazer mover-se com precisão? Por a inteligência não estar no mecanismo do pêndulo e porque a não vemos, seria racional concluir que não existe? Julgamo-la pelos seus efeitos.

  A existência do relógio atesta a existência do relojoeiro; o engenho do mecanismo atesta a inteligência e a sabedoria do relojoeiro. Quando um relógio vos dá num determinado ponto a indicação de que necessitais, já alguma vez veio à ideia de alguém dizer: aqui está um relógio muito inteligente?

  Assim se passa com o mecanismo do UniversoDeus não se mostra, mas afirma-se pelas suas obras.

  Portanto, a existência de Deus é um facto adquirido não só através da revelação mas pela evidencia material dos factos. Os povos primitivos não tiveram revelações e, no entanto, acreditavam instintivamente na existência de um poder sobre-humano; viam coisas que estavam acima do poder humano e concluíam daí que emanavam de um ser superior à humanidade. Não serão mais lógicos que aqueles que pretendem que elas se fizeram sozinhas?

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ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo II Deus, A natureza divina, A Providência, A visão de Deus – Existência de Deus (de 1 a 7) 15º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

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