Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 10 de dezembro de 2016

Victor Hugo e o invisível ~


~ fisionomia espiritual de Victor Hugo ~

Victor Hugo via nas crianças seres que falavam com o invisível, mas também descobria nelas gigantes que regressavam de misteriosas distâncias. Para o poeta, as crianças eram seres não estranhos à terra. Ele as considerava viajantes, que regressavam ao mundo depois de uma prolongada ausência.

Opôs-se enfaticamente à pena de morte. (i) Lutou contra ela como poeta e como legislador. Por isso, pôs na boca de um pontífice estas palavras: "Com que direito despojais a alma da casca do corpo, para apresentá-la na sua espantosa nudez perante a eternidade?" "Sabei, humanos, que morrer é nascer noutro lugar".

poeta respeitava até a vida de um insecto. Para os grandes espíritos a vida espiritual não tem tamanho. Não esqueçamos que o mais pequeno pode conter a partícula do génio. Sentia-se criatura do Universo, pois percebia em cada astro o rumor de uma origem e a futura morada que o ser poderia habitar. O seu espírito era de uma ressonância cósmica e foi isso que o afastou do niilismo materialista.

Num dos seus livros, escreveu: "A produção das almas é o segredo do abismo". Mas este segredo foi-se-lhe revelando com a sabedoria das mesas girantes que conheceu no seu desterro na ilha de JerseySupôs, assim, que cada homem é o resultado de infinitas existências vividas pelo ser e que Deus só será uma afirmação da justiça pela lei espiritual da reencarnação.

Para a sua concepção filosófica e religiosa, existe no homem uma sede divina e é ela que provoca o problema da persistência do eu, o que o fez dizer: "Toda a síntese de Deus que existe no mundo condensa-se num único grito para afirmar a existência da alma". A existência de Deus e da alma complementam-se no pensamento do poeta.

Por quê alguns críticos desejam desvincular Victor Hugo dos temas do espírito? Sem dúvida, essa situação se desmorona por falta de base quando ele mesmo diz: "Vêm-se as grandes almas como se vêm as grandes montanhas; logo, existem". Victor Hugo não foi grande só pelas suas concepções literárias, mas, também porque acreditou no sentido profundo destas três palavras: Deus, Alma e Reencarnação.

Acontecia de Victor Hugo entrar em estado de meditação por longo tempo. Era assim que penetrava no invisível e o seu génio se impregnava de novidades transcendentais, que logo se traduziam por maravilhosos poemas. Toda a poesia de Victor Hugo é uma entrada no mundo profundo da metafísica e da religião.

O enigma mais apaixonante para ele era a natureza do génio. Fez indagações filosóficas para conhecê-la, mas foi pela poesia que ele a contestou com maior acerto: "Deus, ao criar Homero, criou o infinito". E concluiu: "O génio é inexorável: tem a sua lei e cumpre-a''. De facto, o génio é uma consequência do destino e uma aproximação a Deus.

Os poemas de Victor Hugo eram líricos, históricos e religiosos. Constituíam verdadeiras manifestações de sabedoria, pondo de lado a técnica para ficar no esotérico. O que saia da sua inspiração eram revelações procedentes das mais profundas raízes do ser. Disse ele: "Na minha profundidade misteriosa tudo vibra". Mas, qual era essa " misteriosa profundidade" de que falava? Atrevemo-nos a dizer que era o abismo vivo e aceso do mais profundo do ser, cujo devir espiritual é uma consequência de sua incessante reencarnação.

Os poemas de Victor Hugo têm ligação com os profetas maiores da Bíblia. Houve quem dissesse que a causa disso era o facto de ele ter sido a reencarnação de Isaíasmas nós acreditamos que ele foi realmente inspirado pelo mundo invisível.

poeta, segundo dizia António Machado, é um espírito que tende para o mistério. Outros opinam que é apenas um ser humano e natural e o que escreve se deve às suas predisposições cerebrais. Sem dúvida, na personalidade de Victor Hugo existiram rasgos que desfazem essa apreciação. Sem colocá-lo no plano sobrenatural, acreditamos que o poeta possui uma sensibilidade que não é consequência do seu sistema nervoso, nem do peso e volume de seus lóbulos cerebrais. Cremos que no poeta existe uma condição supra-sensível mediúnica, que lhe permite captar a alma oculta dos seres e das coisas a beleza poética não é mais que uma profundidade existencial próxima do místico e do religioso. Assim é que tanto a inspiração como a revelação, o poético, o místico e o mediúnico outra coisa não são que situações determinadas pela natureza supra-sensível que possui o poeta. Sobre essa concepção têm falado amplamente Bremond e Jacques Maritain.

Na América, eminentes poetas têm-se relacionado com o poético supranormal. Recordemos Walt WhitmanRubén DaríoLeopoldo LugonesAmado NervoRicardo RojasArturo CapdevilaJuana de Ibarbouru, etc. Todos eles se sentiram ligados ao invisível, ao numinoso, supranormal. Foram poetas-médiuns que captaram as essências poéticas tanto do mundo visível quanto do invisível. Tinham o mesmo ser e o mesmo tom poético de Victor Hugo. Eis como a poesia eleva as almas à região dos iguais.

Não olhemos o poeta como um ser fisiológico, posto que no meramente orgânico não podem manifestar-se os conteúdos da Divina Comédia, de Dante; do Canto a Mim Mesmo, de Walt Whitman; do Martín Fierro, de José Hernández; do Tabaré, de Juan Zorrilla de San Martin. O poeta demonstra que a alma pode ter aquilo que se chama "emancipação" e captar assim as essências vivas da beleza e da verdade. Se o poeta fosse nada mais que carne e osso, como se explicaria a grandeza oceânica de um Pablo Neruda que, não obstante a sua adesão ao materialismo histórico, se sentia a si mesmo como um espírito reencarnado?

A existência do poeta é uma prova da natureza espiritual do homem e do seu existir infinito. Victor Hugo orava nas suas solidões, razão porque escreveu muitas páginas depois de ter meditado na existência de Deus.

Quando escreveu Os trabalhadores do mar, manifestou as suas profundidades oceânicas tanto no poético como no religioso. O mar no seu ser profundo bramava furiosamente. As rochas de seu ser eram açoitadas pelo mar Divino do Universo; por isso, esse abismo aquático foi para ele o melhor símbolo para compreender a sua própria alma. Quando se diz Hugo poeta, diz-se mar rebentando sobre as costas da eternidade. Diz-se que escutava as vozes do oceano para perceber nelas a noção de que a morte não poderá aniquilar o génio nem o mais minúsculo ser da criação.

Há quem diga que acreditar em Deus e na Alma é um inconveniente ao trabalho em favor de um mundo novo. Que Deus e Alma são dois anestésicos para adormecer as forças revolucionárias do homem. Acreditamos que Victor Hugo foi um exemplo contrário e perfeito dessa apreciação sustentada pelos teóricos sociais do mundo moderno. Consideramos que a verdadeira revolução se dará através das novas ideias sobre Deus e a Alma. Sem elas tudo estará morto e vazio, já que a verdadeira prostração das forças revolucionárias se origina da falta de sentido espiritual que se quer ver em tudo o que existe. Pois, se lutar por um mundo novo tem como prémio a morte e o nada, o homem só deveria dedicar-se a desfrutar dos prazeres materiais, já que o seu porvir será um tenebroso e infinito não-ser. Victor Hugo acreditava em Deus e na Alma e era um poeta revolucionário tanto na ordem social quanto na espiritual.

O autor de Os Miseráveis escrevia vertiginosamente, sem se incomodar com o estilo. Era uma fonte incontida; os seus escritos brotavam do seu ser, das suas essências mais profundas, das suas raízes poéticas fundidas no invisível. Foi um paradigma do poeta-médium, mas, não obstante, a grandeza de suas criações não era resultante apenas da intervenção de seres desencarnados. Não se esqueça que ele era o médium do mar, do vento, das tempestades, do abismo, do bosque, da montanha. Era o médium de toda a criação: do pássaro, do cão, do boi, da ovelha, da árvore, da erva, da água, da rocha, dos astros, das estrelas. Era, pois, o médium de tudo o que existe; por isso, escreveu como poeta-médium, já que o fundamental para ele é que o espírito falava e não apenas a parte visível da realidade.

A religião do poeta baseava-se na do Ser encarnado e desencarnado. Uma igreja invisível era para ele o sustentáculo do verdadeiro acto religioso. Sentia-se unido a Deus, mas nem por isso era o servidor ou partidário de uma cultura anacrónica e retardatária. Como poeta, penetrou no mistério da morte, mas nem por isso deixou de aprofundar-se no vasto campo das contradições humanas. Colocar em ordem as páginas vertiginosamente escritas foi coisa muito complicada para Victor Hugo. Apesar de ter os pés na terra, escrevia com o estremecimento de um Leviatã espiritual. O mundo invisível concentrava-se sobre ele como vento poderoso, que movia a sua pena incontidamente. Não é em vão que nas palavras de Jesus o espírito é o vento que "sopra onde quer". León Felipe, o poeta espanhol que acreditava na reencarnação das almas, teve no vento o seu daimon poético. Esta força da natureza foi sempre um médium entre a matéria e o espírito. O vento do espírito roçou a fronte de Victor Hugo, fazendo dele o poeta-médium das coisas visíveis e invisíveis.

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(i) "Está pois a pena de morte abolida nesse nobre Portugal, pequeno povo que tem uma grande história. (…) Felicito a vossa nação. Portugal dá o exemplo à Europa. Desfrutai de antemão essa imensa glória. A Europa imitará Portugal. Morte à morte! Guerra à guerra! Viva a vida! Ódio ao ódio. A liberdade é uma cidade imensa da qual todos somos concidadãos" Victor Hugo, 1876, a propósito da abolição da pena de morte em Portugal (o primeiro país europeu a fazê-lo). Nota desta publicação.


Humberto Mariotti, Victor Hugo Espírita, Fisionomia espiritual de Victor Hugo, 15º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)

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