~ fisionomia espiritual de Victor Hugo ~
Victor Hugo via nas crianças seres que falavam com o invisível, mas
também descobria nelas gigantes que regressavam de misteriosas distâncias. Para
o poeta, as crianças eram seres não estranhos à terra. Ele as considerava
viajantes, que regressavam ao mundo depois de uma prolongada ausência.
Opôs-se enfaticamente à pena de morte. (i) Lutou
contra ela como poeta e como legislador. Por isso, pôs na boca de um pontífice
estas palavras: "Com que direito despojais a alma da casca do
corpo, para apresentá-la na sua espantosa nudez perante a eternidade?"
"Sabei, humanos, que morrer é nascer noutro lugar".
O poeta respeitava
até a vida de um insecto. Para os grandes espíritos a vida espiritual
não tem tamanho. Não esqueçamos que o mais pequeno pode conter a
partícula do génio. Sentia-se criatura do Universo, pois percebia em cada astro
o rumor de uma origem e a futura morada que o ser poderia
habitar. O seu espírito era de uma ressonância cósmica e foi isso que o
afastou do niilismo materialista.
Num dos seus livros, escreveu: "A produção das almas é
o segredo do abismo". Mas este segredo foi-se-lhe revelando com a
sabedoria das mesas girantes que conheceu no seu desterro na ilha de Jersey. Supôs,
assim, que cada homem é o resultado de infinitas existências vividas pelo ser e
que Deus só será uma afirmação da justiça pela lei espiritual da reencarnação.
Para a sua concepção filosófica e religiosa, existe no homem
uma sede divina e é ela que provoca o problema da persistência do eu,
o que o fez dizer: "Toda a síntese de Deus que existe no mundo
condensa-se num único grito para afirmar a existência da alma". A
existência de Deus e da alma complementam-se no pensamento do poeta.
Por quê alguns críticos desejam desvincular Victor Hugo dos temas
do espírito? Sem dúvida, essa situação se desmorona por falta de base quando
ele mesmo diz: "Vêm-se as grandes almas como se vêm as grandes
montanhas; logo, existem". Victor Hugo não foi grande só pelas
suas concepções literárias, mas, também porque acreditou no sentido profundo
destas três palavras: Deus, Alma e Reencarnação.
Acontecia de Victor Hugo entrar em
estado de meditação por longo tempo. Era assim que penetrava no
invisível e o seu génio se impregnava de novidades transcendentais, que logo se
traduziam por maravilhosos poemas. Toda a poesia de Victor Hugo é uma
entrada no mundo profundo da metafísica e da
religião.
O enigma mais apaixonante para ele era a natureza do génio.
Fez indagações filosóficas para conhecê-la, mas foi pela poesia que ele a
contestou com maior acerto: "Deus, ao criar Homero, criou o infinito". E
concluiu: "O génio é inexorável: tem a sua lei e cumpre-a''. De
facto, o génio é uma consequência do destino e uma aproximação a Deus.
Os poemas de Victor Hugo eram
líricos, históricos e religiosos. Constituíam verdadeiras manifestações de
sabedoria, pondo de lado a técnica para ficar no esotérico. O que saia da sua
inspiração eram revelações procedentes das mais profundas raízes do ser.
Disse ele: "Na minha profundidade misteriosa tudo
vibra". Mas, qual era essa " misteriosa profundidade"
de que falava? Atrevemo-nos a dizer que era o abismo vivo e aceso do
mais profundo do ser, cujo devir espiritual é uma consequência de sua
incessante reencarnação.
Os poemas de Victor Hugo têm
ligação com os profetas maiores da Bíblia. Houve quem dissesse que a causa
disso era o facto de ele ter sido a reencarnação de Isaías; mas nós
acreditamos que ele foi realmente inspirado pelo mundo invisível.
O poeta,
segundo dizia António
Machado, é um espírito que tende para o mistério. Outros opinam que é
apenas um ser humano e natural e o que escreve se deve às suas predisposições
cerebrais. Sem dúvida, na personalidade de Victor Hugo existiram rasgos que
desfazem essa apreciação. Sem colocá-lo no plano sobrenatural, acreditamos que
o poeta possui uma sensibilidade que não é consequência do seu sistema nervoso,
nem do peso e volume de seus lóbulos cerebrais. Cremos que no poeta
existe uma condição supra-sensível mediúnica, que lhe permite
captar a alma oculta dos seres e das coisas a beleza poética não é mais que uma
profundidade existencial próxima do místico e do religioso. Assim é
que tanto a inspiração como a revelação, o poético, o místico e o mediúnico
outra coisa não são que situações determinadas pela natureza supra-sensível que
possui o poeta. Sobre essa concepção têm falado amplamente Bremond e Jacques Maritain.
Na América, eminentes poetas têm-se relacionado com o
poético supranormal. Recordemos Walt Whitman, Rubén Darío, Leopoldo Lugones, Amado Nervo, Ricardo Rojas, Arturo Capdevila, Juana de Ibarbouru,
etc. Todos eles se sentiram ligados ao invisível, ao numinoso, supranormal. Foram poetas-médiuns que captaram as
essências poéticas tanto do mundo visível quanto do invisível. Tinham o mesmo ser e
o mesmo tom poético de Victor
Hugo. Eis como a poesia eleva as almas à região dos iguais.
Não olhemos o poeta como um ser fisiológico, posto que no
meramente orgânico não podem manifestar-se os conteúdos da Divina
Comédia, de Dante;
do Canto a Mim Mesmo, de Walt Whitman; do Martín
Fierro, de José Hernández;
do Tabaré, de Juan
Zorrilla de San Martin. O poeta demonstra que a alma pode ter aquilo que se
chama "emancipação" e captar assim as essências vivas da beleza e da
verdade. Se o poeta fosse nada mais que carne e osso, como se explicaria a
grandeza oceânica de um Pablo
Neruda que, não obstante a sua adesão ao materialismo
histórico, se sentia a si mesmo como um espírito reencarnado?
A existência do poeta é uma prova da natureza espiritual do
homem e do seu existir infinito. Victor Hugo orava nas
suas solidões, razão porque escreveu muitas páginas depois de ter meditado na
existência de Deus.
Quando escreveu Os trabalhadores do mar, manifestou
as suas profundidades oceânicas tanto no poético como no religioso.
O mar no seu ser profundo bramava furiosamente. As rochas de
seu ser eram açoitadas pelo mar Divino do Universo; por
isso, esse abismo aquático foi para ele o melhor símbolo para
compreender a sua própria alma. Quando se diz Hugo poeta, diz-se mar
rebentando sobre as costas da eternidade. Diz-se que escutava as
vozes do oceano para perceber nelas a noção de que a morte não
poderá aniquilar o génio nem o mais minúsculo ser da
criação.
Há quem diga que acreditar em Deus e na Alma é um
inconveniente ao trabalho em favor de um mundo novo. Que Deus e Alma são dois
anestésicos para adormecer as forças revolucionárias do homem. Acreditamos
que Victor Hugo foi
um exemplo contrário e perfeito dessa apreciação sustentada pelos
teóricos sociais do mundo moderno. Consideramos que a verdadeira revolução
se dará através das novas ideias sobre Deus e a Alma. Sem elas tudo estará
morto e vazio, já que a verdadeira prostração das forças revolucionárias se
origina da falta de sentido espiritual que se quer ver em tudo o que existe.
Pois, se lutar por um mundo novo tem como prémio a morte e o nada, o homem só
deveria dedicar-se a desfrutar dos prazeres materiais, já que o seu porvir será
um tenebroso e infinito não-ser. Victor Hugo acreditava em Deus e
na Alma e era um poeta revolucionário tanto na ordem social quanto na
espiritual.
O autor de Os Miseráveis escrevia
vertiginosamente, sem se incomodar com o estilo. Era uma fonte incontida; os
seus escritos brotavam do seu ser, das suas essências mais
profundas, das suas raízes poéticas fundidas no invisível. Foi um
paradigma do poeta-médium,
mas, não obstante, a grandeza de suas criações não era resultante apenas da
intervenção de seres desencarnados.
Não se esqueça que ele era o médium do mar, do vento, das tempestades, do
abismo, do bosque, da montanha. Era o médium de toda a criação: do pássaro, do
cão, do boi, da ovelha, da árvore, da erva, da água, da rocha, dos astros,
das estrelas. Era, pois, o médium de tudo o que existe; por isso, escreveu como
poeta-médium, já que o fundamental para ele é que o espírito falava e não
apenas a parte visível da realidade.
A religião do poeta baseava-se na do Ser encarnado
e desencarnado.
Uma igreja invisível era para ele o sustentáculo do verdadeiro acto religioso. Sentia-se
unido a Deus, mas nem por isso era o servidor ou partidário de uma cultura
anacrónica e retardatária. Como poeta, penetrou no mistério da
morte, mas nem por isso deixou de aprofundar-se no vasto campo das contradições
humanas. Colocar em ordem as páginas vertiginosamente escritas foi
coisa muito complicada para Victor Hugo. Apesar de ter os pés na terra, escrevia
com o estremecimento de um Leviatã espiritual. O
mundo invisível concentrava-se sobre ele como vento poderoso, que movia a sua pena
incontidamente. Não é em vão que nas palavras de Jesus o espírito é o vento
que "sopra onde quer". León Felipe, o poeta
espanhol que acreditava na reencarnação das
almas, teve no vento o seu daimon poético. Esta força da natureza
foi sempre um médium entre
a matéria e o espírito. O vento do espírito roçou a fronte de Victor Hugo,
fazendo dele o poeta-médium das coisas visíveis e invisíveis.
/…
(i) "Está pois a pena de morte abolida nesse nobre Portugal,
pequeno povo que tem uma grande história. (…) Felicito a vossa nação. Portugal
dá o exemplo à Europa. Desfrutai de antemão essa imensa glória. A Europa
imitará Portugal. Morte à morte! Guerra à guerra! Viva a vida! Ódio ao ódio. A
liberdade é uma cidade imensa da qual todos somos concidadãos" Victor Hugo, 1876, a propósito da
abolição da pena de morte em Portugal (o primeiro país europeu a fazê-lo). Nota
desta publicação.
Humberto Mariotti, Victor Hugo Espírita,
Fisionomia espiritual de Victor Hugo, 15º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis
GIRODET-TRIOSON)
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