Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Léon Denis e o Cristianismo ~


Relações com os Espíritos dos Mortos

(II de II)

  S. Paulo não foi apenas assistido por Espíritos de luz, de que se fazia porta-voz e intérprete. (ii) Espíritos inferiores por vezes o atormentavam, e era-lhe necessário resistir às suas influências. (iii) É assim que, em todos os meios, para a educação do homem e desenvolvimento de sua razão, a luz e a sombra, a verdade e o erro se misturam. O mesmo acontece no domínio do Espiritualismo moderno, em que se encontram todas as ordens de manifestações, desde as comunicações do mais elevado carácter até aos fenómenos grosseiros produzidos por Espíritos atrasados. Mas estes também têm a sua utilidade, do ponto de vista dos elementos de observação e dos casos de identidade que fornecem à Ciência. 

  S. Paulo conhecia estas coisas. Assistido pela experiência, ele advertia os profetas, (iv) os seus irmãos, a fim de se conservarem em guarda contra tais ciladas. E acrescentava em consequência:

  “Os espíritos dos profetas estão sujeitos aos profetas” (1 Coríntios, XIV, 32), isto é, é preciso não aceitar cegamente as instruções dos Espíritos, mas submetê-las ao exame da razão.

  No mesmo sentido, dizia S. João:

  “Caríssimos, não acrediteis em todos os espíritos, mas provai se os espíritos são de Deus.” (I Epístola, IV, 1)

  Os “Actos dos Apóstolos” fornecem numerosas indicações acerca das relações dos discípulos de Jesus com o mundo invisível. Aí se vê como, observando as instruções dos Espíritos, (v) os apóstolos adquirem maior amplitude de visão das coisas; chegaram a já não fazer distinções entre as carnes, a suprimir a barreira que separava dos gentios os judeus, a substituir a circuncisão pelo baptismo. (vi)

  As comunicações dos cristãos com os Espíritos dos mortos eram tão frequentes nos primeiros séculos, que circulavam instruções notórias entre eles a esse respeito.

  Hermes, discípulo dos apóstolos, da mesma maneira que São Paulo, manda saudar por seu lado na sua Epístola aos Romanos (XVI, 14), indicada, no seu “Livro do Pastor”, (vii) os meios de distinguir os Espíritos bons dos maus.

  Nas linhas seguintes, escritas há mil e oitocentos anos, julgar-se-ia ter a descrição fiel das sessões de evocação, tais como, em muitos centros, se praticam nos dias hoje:

  “O espírito que vem da parte de Deus é pacífico e humilde; afasta-se de toda a malícia e de todo o desejo vão deste mundo e paira acima de todos os homens. Não responde a todos os que o interrogam, nem às pessoas em particular, porque o espírito que vem de Deus não fala ao homem quando o homem quer, mas quando Deus o permite. Quando, pois, um homem que tem um espírito de Deus vem à assembleia dos fiéis, desde que se fez à prece, o espírito toma lugar nesse homem, que fala na assembleia como Deus o quer.” (É o médium (i) falante.)

  “Ao contrário, reconhecem-se, os espíritos terrestres, frívolos, sem sabedoria e sem força, no que se agita, se levanta e toma o primeiro lugar. É importuno, tagarela e não profetiza sem remuneração. Um profeta de Deus não procede assim.”

  Os Espíritos manifestavam, então, a sua presença de mil maneiras, quer tornando-se visíveis, (viii) ou produzindo a desagregação da matéria, como o fizeram para libertar Pedro das cadeias que o prendiam e retirá-lo da prisão, (ix) quer ainda provocando casos de levitação. (x) Estes fenómenos eram, às vezes, tão impressionantes que até os mágicos se sentiam abalados, ao ponto de se converterem. (xi)

  Penetrados deste espírito de caridade e abnegação, que lhes espalhava o Cristo, os primeiros cristãos viviam na mais íntima solidariedade. “Possuíam tudo em comum” e “eram queridos de todo o povo”. (xii)

  A revelação dos Espíritos continuou muito tempo para além do período apostólico. Durante os séculos II e III, os cristãos se dirigiam directamente às almas dos mortos para decidir dos pontos da doutrina.

  S. Gregório, o taumaturgo, bispo de Neo-Cesareia, diz “ter recebido de João Evangelista, numa visão, o símbolo da fé pregado por ele na sua igreja”. (xiii)

  Orígenes, esse sábio que S. Jerónimo considerava o grande mestre da Igreja, depois dos apóstolos, fala muitas vezes, nas suas obras, da manifestação dos mortos.

  Na sua controvérsia com Celso, diz ele:

  “Não duvido de que Celso escarneça de mim; as zombarias, porém, não me impedirão de dizer que muitas pessoas têm abraçado o Cristianismo a seu pesar, tendo sido de tal modo o seu coração repentinamente transformado por algum espírito, quer numa aparição, quer em sonho, que, em lugar da aversão que nutriam pela nossa fé, adoptaram-na com amor até ao ponto de morrer por ela. Tomo Deus por testemunha da verdade do que digo; Ele sabe que eu não pretendo recomendar a doutrina de Jesus-Cristo por meio de histórias fabulosas, mas com a verdade de factos incontestáveis”. (xiv)

  O imperador Constantino era pessoalmente dotado de faculdades mediúnicas e sujeito à influência dos Espíritos. Os principais sucessos de sua vida – a sua conversão ao Cristianismo, a fundação de Bizâncio, etc. – assinalam-se por intervenções ocultas, de que se pode ter a prova nos seguintes factos que vamos buscar à narrativa do Sr. Albert de Broglie, imparcial e austero historiador, pouco inclinado ao misticismo: (xv)

  “Quando planeava apoderar-se de Roma, um impulso interior o induziu a se recomendar a algum poder sobrenatural e invocar a protecção divina, com apoio das forças humanas. Grande era, porém, o embaraço para um piedoso romano dessa época... A si mesmo ansiosamente perguntava a que Deus iria implorar a assistência. Caiu, então, em absorta meditação das vicissitudes políticas de que fora testemunha.”

  Reconhece que depositar confiança na multidão dos deuses traz infelicidade, ao passo que o seu pai Constâncio, secreto adorador do Deus único, terminara os seus dias em paz.

  “Constantino decidiu-se a suplicar ao Deus de seu pai que tivesse mão forte na sua empresa”.

  “Como resposta a essa prece teve umas visões maravilhosas, que ele próprio referia, muitos anos depois, ao historiador Eusébio, afirmando-a sob juramento e com as seguintes particularidades: Uma tarde, marchando à frente das tropas, divisou no céu, acima do sol que já declinava para o ocaso, uma cruz luminosa com esta inscrição: Com este sinal vencerás. Todo o seu exército e muitos espectadores que o rodeavam viram como ele, estupefactos, este prodígio. Ficou intrigado com o que poderia significar essa aparição. A noite o surpreendeu ainda na mesma perplexidade. Durante o sono, porém, o próprio Cristo lhe apareceu com a cruz com que fora visto no céu e lhe ordenou que mandasse fazer, por aquele modelo, um estandarte de guerra que lhe serviria de protecção nos combates. Ao alvorecer, Constantino levantou-se e transmitiu aos confidentes a revelação. Logo foram chamados ourives e o Imperador lhes deu instruções para que a cruz misteriosa fosse reproduzida em ouro e pedras preciosas.”

  Mais adiante, acerca da escolha de Bizâncio para capital do Império, refere o mesmo autor: Quando os olhos de Constantino se detiveram em Bizâncio, já não a apresentavam senão destroços de uma grande cidade. Na escolha que fez, acreditava ele não estar desamparado da intervenção divina. Dizia-se que, por uma confidência miraculosa, fora informado de que em Roma não estaria em segurança o Império. Relativamente a essa escolha, falava-se também de um sonho, etc. Filostórgio refere que:

  ...na ocasião em que ele (Constantino) traçava com a espada em punho o novo recinto da cidade, os que o acompanhavam vendo que ele se adiantava sempre, de modo a abranger uma área imensa, perguntaram-lhe respeitosamente até onde pretendia ir. – Até ao lugar em que pare quem vai adiante de mim – respondeu. (xvi)

  É provável que, sem o saber, Constantino padecesse da influência dos invisíveis, em tudo o que devia favorecer o estabelecimento da nova religião, em detrimento muitas vezes do bem do Estado e dos seus próprios interesses. O seu carácter, a sua vida íntima, não sofreram com isso nenhuma modificação. Constantino manteve-se sempre cruel e astucioso, refractário à moral evangélica, o que demonstra ter sido, em tudo, um instrumento nas mãos das eminentes Entidades cuja missão era fazer triunfar o Cristianismo.

  Sobre a questão que nos ocupa, o célebre bispo de Hipona, Santo Agostinho, não é menos afirmativo. Nas suas “Confissões” (xvii), alude aos infrutíferos esforços empenhados em deixar a vida desregrada que levava. Um dia em que rogava com fervor a Deus que o iluminasse, ouviu subitamente uma voz que repetidas vezes lhe dizia: Tolle, lege (toma, lê). Tendo-se certificado de que estas palavras não provinham de um ser vivo, ficou convencido de ser uma ordem divina, que lhe determinava abrisse as santas Escrituras e lesse a primeira passagem que sob os olhos lhe caísse. Foram exortações de S. Paulo sobre a pureza dos costumes, o que ele leu.

  Nas suas cartas menciona o mesmo autor “aparições de mortos”, indo e vindo da sua morada habitual – fazendo predições que os acontecimentos vêm mais tarde confirmar. (xviii)

  O seu tratado De cura pro mortuis, fala das manifestações dos mortos, nestes termos:

  “Os espíritos dos mortos podem ser enviados aos vivos, podem desvendar-lhes o futuro, cujo conhecimento adquiriram, quer por outros espíritos, quer pelos anjos, quer por uma revelação divina.” (xix)

  Na sua Cidade de Deus, a propósito do corpo lúcido, etéreo, aromal, que é o perispírito dos espíritas, trata das operações teúrgicas, que o tornam apropriado a comunicar com os Espíritos e os anjos e obter visões.

  S. Clemente de AlexandriaS. Gregório de Nissa no seu Discurso catequético, o próprio S. Jerónimo na sua famosa controvérsia com Vigilantius, o gaulês, pronunciam-se no mesmo sentido.

  S. Tomás de Aquino, o anjo da escola, no-lo diz o abade Poussin, professor no Seminário de Nice, na sua obra O Espiritismo perante a Igreja (1866), “comunicava-se com os habitantes do outro mundo, com mortos que o informavam do estado das almas pelas quais ele se interessava, com santos que o confortavam e lhe patenteavam os tesouros da ciência divina”. (xx)

  A Igreja, pela organização dos concílios, entendeu dever condenar as práticas espíritas, quando, de democrática e popular que era na sua origem, se tornou despótica e autoritária. Quis ser a única a possuir o privilégio das comunicações ocultas e o direito de as interpretar. Todos os leigos, está provado que mantinham relações com os mortos, foram perseguidos como feiticeiros e queimados.

  Mas este monopólio das relações com o mundo invisível, apesar dos seus julgamentos e condenações, apesar das execuções em massa, a Igreja nunca o pôde obter. Ao contrário, a partir deste momento, as mais brilhantes manifestações se produzem fora dela. A fonte das inspirações superiores, fechada para os eclesiásticos, permanece aberta para os hereges. A História atesta-o. Aí estão as vozes de Joana d'Arc, os génios familiares de Tasso e de Girolamo Cardano, os fenómenos macabros da Idade Média, produzidos por Espíritos de categoria inferior; os convulsionários de S. Médard, depois os pequenos profetas inspirados de Cavennes, Swedenborg e a sua escola. Mil outros factos ainda formam uma ininterrupta cadeia, que, desde as manifestações da mais remota antiguidade, nos conduz ao moderno Espiritualismo.

  Entretanto, em época recente, no seio da Igreja, alguns pensadores, raros, investigavam ainda o problema do invisível. Sob o título Da distinção dos Espíritos, o cardeal Bona, esse Fénelon de Itália, consagrava uma obra ao estudo das diversas categorias de Espíritos que podem manifestar-se aos homens.

  “Motivo de estranheza – diz ele – é que se pudessem encontrar homens de bom senso que tenham ousado negar em absoluto as aparições e comunicações das almas com os vivos, ou atribuí-las ao extravio da imaginação, ou ainda ao artifício dos demónios.”

  Esse cardeal não previa os anátemas dos padres católicos contra o Espiritismo. (xxi)

  Forçoso é, portanto, reconhecê-lo: os dignitários da Igreja que, do alto de sua cátedra, têm anatematizado as práticas espíritas, desnortearam completamente. Não compreendem que as manifestações das almas são uma das bases do Cristianismo, que o movimento espírita é a reprodução do movimento cristão na sua origem. Não se lembram de que negar a comunicação com os mortos, ou mesmo atribuí-la à intervenção dos demónios, é se porem em contradição com os padres da Igreja e com os próprios apóstolos. Já os sacerdotes de Jerusalém acusavam Jesus de agir sob a influência de Belzebu. A teoria do demónio fez a sua época; agora já não é admissível.

  A verdade é que o Espiritismo se encontra hoje por toda a parte, não como superstição, mas como lei fundamental da Natureza.

  Existiram sempre relações entre os homens e os Espíritos, com maior ou menor intensidade. Por este meio, continua a revelação e se propaga no mundo. Flui, através dos tempos, uma grande corrente de energia espiritual cuja fonte é o mundo invisível. Por vezes, esta corrente se ocultou na penumbra; foi encontrar-se dissimulada sob a abóbada dos templos da Índia e do Egipto, nos misteriosos santuários da Gália e da Grécia; onde só foi conhecida dos iniciados e dos sábios. Mas, também às vezes, em épocas determinadas pela vontade de Deus, surge dos lugares ocultos, reaparece em pleno dia, à vista de todos; vem oferecer à Humanidade esses tesouros, essas magnificências esquecidas, que a vêm embelezar, enriquecer, regenerar.

  É assim que as verdades superiores se revelam através dos séculos, para facilitar e estimular a evolução dos seres. Com o concurso de médiuns poderosos, se patenteiam entre nós, pela intervenção dos Espíritos geniais, que viveram na Terra e que nela sofreram pela Justiça e pelo Bem. Estes Espíritos de escol foram restituídos à vida do espaço, mas não cessaram de velar pela Humanidade e com ela se corresponder.

  Em certos momentos da História, um sopro do Alto perpassa pelo mundo; as brumas que envolviam o pensamento humano dissipam-se; as superstições, as dúvidas, as quimeras se desvanecem; as grandes leis do destino revelam-se e a verdade reaparece.

  Felizes, então, os que a sabem reconhecer e agasalhar!

/…
(ii) Apocalipse, XIX, 10.
(iii) Idem.
(iv) Denominavam-se então os médiuns profetas.
(v) Na versão grega dos Evangelhos e dos Actos, a palavra espírito está muitas vezes isolada. S. Jerónimo acrescentou-lhe a de santo; e foram os tradutores franceses da Vulgata que daí fizeram o Espírito-Santo, (Ver Bellemare "Espírita e Cristão", págs. 270 e segs.
(vi) Actos dos Apóstolos, X, 10-16, 28, 29, 44-48; XVI, 6-10; XXI, 4; Ep. Romanos - XIV, 14,1 Cor. - XII e XIV. - Ver nota complementar nº 6 ( link para aceder à nota).
(vii) Este "Livro do Pastor" era lido nas igrejas, como o são actualmente os Evangelhos e as Epístolas, até ao século V. São Clemente de Alexandria e Orígenes a ele se referem com respeito. Figura no mais antigo catálogo dos livros canónicos recebidos pela Igreja Romana e foi publicado por Caio em 220.
(viii) Actos, XII, 55, 56; IX, 10, 12; XVI, 9 etc.
(ix) Actos, XII, 7-10. Ver também v. 19 e XVI, 26.
(x) Ibid., VIII, 39, 40.
(xi) Actos, VIII. 9-13.
(xii) Ibid., II, 44-47; IV, 32-36.
(xiii) Resumo da história eclesiástica, pelo abade Racine. São Gregório de Nissa, na sua Vida de São Gregório, o taumaturgo, refere essa visão. Ver Obras de São Gregório de Nissa, edição de 1638, t. III, págs. 545 e 546.
(xiv) Orígenes, edição beneditina de 1733, t. I, págs. 361 e 362.
(xv) Alb. de Broglie, A Igreja e o Império romano no século quarto, t. I, págs. 214 e seguintes.
(xvi) Filostórgio, II, 9. Ver A Igreja e o Império Romano no século quarto, por Alb de Broglie, t. II, pá.g. 153.
(xvii) Confissões, livro. VIII, cap. XII.
(xviii) Carta a Evodius. Ep. CLIX. edição dos Beneditinos, t. 11, col. 562, e De cura pro mortuis, t. VI, col. 523.
(xix) De cura pro mortuis, edição beneditina, t. VI, col. 527.
(xx) Lê-se na Suma (1, qu. 89, 8 2.m): “o espírito (anima separata) pode aparecer aos vivos”.
(xxi) Ver nota complementar nº 6 ( link para aceder à nota).


Léon Denis (1846-1927) (i)Cristianismo e Espiritismo, Título Original em Francês; Léon Denis - Christianisme et Spiritisme, Librairie des Sciences Psychiques, Paris (1898). – Relações com os Espíritos dos Mortos, 5 (II de II), 7º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel)

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Hippolyte Léon Denisard Rivail


Uma Noite Esquecida ou 
a Feiticeira Manouza
(Milésima segunda noite dos contos árabes) 

~~ Ditado pelo Espírito Frédéric Soulié
(Terceiro e último artigo)

Prefácio da Revue Spirite. (repetição)

No corrente ano de 1856, as experiências de manifestações espíritas que se realizavam em casa do Sr. B... (*), na rua Lamartine, atraíram uma assistência selecta e numerosa. Eram mais ou menos sérios os Espíritos que se manifestavam neste círculo; alguns disseram coisas de admirável sabedoria e notável profundidade, como se pode julgar por O Livro dos Espíritos, que ali fora começado e em grande parte realizado. Outros eram menos sérios; o seu humor jovial prestava-se de bom grado a piadas, mas daquelas que jamais se afastavam das conveniências. Nesse número se encontrava Frédéric Soulié, que veio espontaneamente, sem haver sido evocado, e cujas visitas inesperadas eram sempre um passatempo agradável para os membros deste círculo. A sua conversa era espirituosa, fina, mordaz, coerente e nunca desmentiu o autor das Mémoires du diable; aliás, nunca se deixou envolver pela lisonja; quando lhe dirigiam algumas perguntas um tanto mais espinhosas de filosofia, confessava francamente a sua incapacidade para resolvê-las, dizendo que ainda se encontrava bastante ligado à matéria e que preferia as coisas alegres às sérias.

médium que lhe servia de intérprete era a Srta. Caroline B..., uma das filhas do dono da casa, do género exclusivamente passivo e que não tinha a menor consciência do que escrevia, podendo rir-se e conversar como bem lhe aprouvesse, o que fazia com prazer, enquanto a sua mão se movimentava sobre o papel. Durante muito tempo o meio mecânico empregado foi o da cesta de bico(**) Mais tarde a médium serviu-se da psicografia (i) directa.

Perguntarão, certamente, que provas possuímos de que o Espírito comunicante era o de Frédéric Soulié e não um outro qualquer. Não nos cabe tratar aqui da questão da identidade dos Espíritos; diremos somente que a de Soulié se revelou por detalhes de tal forma numerosos que não podem escapar a uma observação atenta. Muitas vezes uma palavra, um gesto, um facto pessoal referido vinham confirmar que se tratava dele mesmo; por diversas vezes deixou a sua assinatura, que foi confrontada com as originais. Um dia pediram-lhe que desse o seu retrato e a médium, que não sabe desenhar, e que nem mesmo nunca o tinha visto, fez um esboço de uma semelhança extraordinária.

Ninguém da reunião havia tido relações com ele quando vivia; por que, então, vinha sem ter sido evocado? É que se tinha ligado a um dos assistentes, sem nunca ter revelado o motivo; só aparecia quando essa pessoa se encontrava presente; entrava com ela e com ela se ia embora, de sorte que, quando não estava presente, ela também não vinha e, coisa bizarra! quando Soulié estava lá era difícil, ou mesmo impossível, haver comunicações de outros Espíritos; o próprio Espírito familiar da casa cedia-lhe o lugar, dizendo, por delicadeza, que deveria fazer as honras da casa.

Um dia anunciou que nos daria um romance à sua maneira e, realmente, algum tempo depois começou uma narrativa cujo início era muito promissor. O assunto relacionava-se com os druidas e a cena passava-se na Armórica, ao tempo da dominação romana; infelizmente, parece que se apavorou diante da tarefa que havia empreendido, porquanto – é preciso que se diga  – o trabalho assíduo nunca foi o seu forte, confessando que encontrava mais satisfação na vida preguiçosa. Depois de haver ditado algumas páginas, abandonou o romance mas disse que escreveria outro, que lhe daria menos trabalho. Foi então que escreveu o conto cuja publicação iniciamos. Mais de trinta pessoas assistiram a essa produção e podem atestar-lhe a origem. Não a damos absolutamente como obra de elevado alcance filosófico, mas como curiosa amostra de um trabalho de grande fôlego obtido dos Espíritos. Notar-se-á como tudo nele tem sequência, como tudo se encadeia com uma arte admirável. O que há de mais extraordinário é que esse relato foi retomado em cinco ou seis ocasiões diferentes e, muitas vezes, após interrupções de duas ou três semanas. Ora, de cada vez que recomeçava, o assunto continuava como se tivesse sido escrito de um sorvo, sem rasuras, sem aditamentos, e sem que houvesse necessidade de lembrar o que antes já fora relatado. Nós o damos, tal qual saiu do lápis da médium, sem nada haver mudado, nem no estilo, nem nas ideias e nem no encadeamento dos factos. Algumas repetições de palavras e pequenos senão de ortografia foram percebidos, tendo o próprio Soulié nos encarregado de os corrigir, dizendo que nos assistiria nesse mister. Quando tudo estava terminado ele quis rever o conjunto, ao qual fez apenas algumas rectificações sem importância, autorizando a sua publicação como bem o entendêssemos e cedendo, com satisfação, os direitos de autor. Todavia, julgamos por bem não o inserir na Revista sem o consentimento formal do seu amigo póstumo, a quem pertencia de direito, porque foi graças à sua presença e à sua solicitação que nos tornamos devedores dessa produção de além-túmulo. O título foi dado pelo próprio Espírito Frédéric Soulié.
A. K.

Uma Noite Esquecida
(Terceiro e último artigo)

Observação – Os algarismos romanos indicam as interrupções que ocorreram no ditado. Frequentemente, não era retomado senão depois de duas ou três semanas e, apesar disso, como já fizemos observar anteriormente, o relato desenvolve-se como se tivesse sido escrito de um só fôlego; e isso não constitui uma das características menos curiosas desta produção de além-túmulo. O estilo é correcto e perfeitamente apropriado ao assunto. Repetimos, para aqueles que poderiam ver no ditado uma coisa fútil, que não o consideramos como obra filosófica, mas como de estudo. Para o estudioso, nada é inútil: ele sabe aproveitar-se de tudo para aprofundar a ciência espírita que estuda.

VII

– Levantai, disse-lhe Noureddin e, segui-me. Nazara lançou-se em pranto a seus pés, implorando graça. – Nenhuma piedade para semelhante falta, disse o pretenso Sultão; preparai-vos para morrer. Noureddin sofria muito por lhe falar desse modo, mas não julgou haver chegado o momento para se dar a conhecer.

Vendo que era impossível dobrá-lo, Nazara seguiu-o trémula. Voltaram aos aposentos; ali Noureddin disse a Nazara que se vestisse convenientemente. Depois, terminada a toalete e sem outras explicações, disse-lhe que iriam, ele e Ozana – o anão – conduzi-la a um subúrbio de Bagdá, onde ela encontraria o que merecia. Cobriram-se com grandes mantos para não serem reconhecidos e saíram do palácio. Mas, oh! terror! Mal transpuseram as portas transformaram-se aos olhos de Nazara. Não eram o Sultão e Ozana, nem os vendedores de roupas, mas o próprio Noureddin e Tanaple. Ficaram tão assombrados, principalmente Nazara, de se encontrarem tão perto da casa do Sultão, que apressaram o passo, com medo de serem reconhecidos.

Logo que entraram em casa de Noureddin, esta foi cercada por uma multidão de homens, de escravos e de tropas, enviada pelo Sultão para os prender.

Ao primeiro ruído, Noureddin, Nazara e o anão refugiaram-se nos aposentos mais retirados do palácio. Lá, disse-lhes o anão que não se amedrontassem e que havia somente uma coisa a fazer para não serem presos: enfiar na boca o dedo mínimo da mão esquerda e assobiar três vezes; que Nazara devia fazer o mesmo e instantaneamente se tornariam invisíveis a quantos quisessem apoderar-se deles.

Continuando o ruído a aumentar de maneira alarmante, Nazara e Noureddin seguiram o conselho de Tanaple; quando os soldados penetraram o aposento encontraram-no vazio, retirando-se depois de pesquisas minuciosas. Então o anão disse a Noureddin que fizesse o contrário do que haviam feito, isto é, enfiassem na boca o dedo mínimo da mão direita e assobiassem três vezes; eles o fizeram e logo se converteram no que eram antes.

Em seguida o anão os advertiu de que não se encontravam em segurança naquela casa, devendo deixá-la por algum tempo até que se apaziguasse a cólera do Sultão. Em razão disso, ofereceu-se para levá-los ao seu palácio subterrâneo, onde estariam mais à vontade, enquanto seriam providenciados os meios a fim de que, sem receio, pudessem retornar a Bagdá e, dentro das melhores condições possíveis.

VIII

Noureddin hesitava, mas Nazara tanto pediu que ele acabou consentindo. O anão lhes disse que fossem ao jardim e chupassem uma laranja, com o rosto voltado para o nascente; então, seriam transportados sem o perceberem. Fizeram um ar de dúvida que Tanaple não compreendia, depois de tudo o que houvera feito por eles.

Tendo descido ao jardim e chupado a laranja como lhes fora indicado, viram-se subitamente elevados a uma altura prodigiosa; depois experimentaram um forte abalo e um grande frio, sentindo que desciam a grande velocidade. Nada perceberam durante o trajecto; porém, quando tomaram consciência da situação encontravam-se num subterrâneo, dentro de magnífico palácio iluminado por mais de vinte mil velas.

Deixemos os nossos amantes no seu palácio subterrâneo e voltemos ao nosso pequeno anão, que havíamos deixado em casa de Noureddin. Sabeis que o Sultão tinha enviado soldados para se apoderarem dos fugitivos. Depois de haver explorado os recantos mais recônditos da habitação, assim como os jardins e, nada encontrando, viram-se forçados a retornar e prestar contas ao Sultão de suas buscas infrutíferas.

Tanaple os havia acompanhado em todo o percurso do caminho; olhava-os com malícia e de vez em quando indagava quanto o Sultão pagaria a quem lhe trouxesse os dois fugitivos. – Se o Sultão, acrescentava, estiver disposto a me conceder uma hora de audiência, dir-lhe-ei alguma coisa que o tranquilizará e ele ficará satisfeito por se desembaraçar de uma mulher como Nazara, que possui um mau génio e que faria descer sobre ele todas as desgraças possíveis, caso lá permanecesse por mais algumas luas. O chefe dos eunucos prometeu dar o seu recado e transmitir-lhe a resposta do Sultão.

Mal haviam retornado ao palácio o chefe dos negros veio dizer-lhe que o seu senhor o esperava, prevenindo-o, porém, de que seria empalado, caso sustentasse imposturas.

O nosso pequeno monstro apressou-se em dirigir-se à casa do Sultão. Chegando diante desse homem duro e severo, como de hábito inclinou-se três vezes perante os príncipes de Bagdá.

– Que tens a dizer-me? Perguntou o Sultão. Sabes o que te aguarda se não disseres a verdade. Fala, eu te escuto.

“Grande Espírito, celeste Lua, tríade de Sóis, não direi senão a verdade. Nazara é filha da fada negra e do Génio da Grande Serpente dos Infernos. A sua presença em tua casa acarretaria todas as pragas imagináveis: chuva de serpentes, eclipse solar, lua azul impedindo os amores nocturnos. Enfim, todos os teus desejos seriam contrariados e as tuas mulheres envelheceriam antes mesmo que se passasse uma lua. Poderei dar-te uma prova do que digo; sei onde se encontra Nazara; se quiseres, irei buscá-la e poderás convencer-te. Só há um meio de evitar essas desgraças: é dá-la a Noureddin. Noureddin também não é o que pensas; ele é filho da feiticeira Manouza e do génio do Rochedo de Diamante. Se os casares, em sinal de reconhecimento Manouza te protegerá; se recusares... Pobre príncipe! eu te lamento. Experimenta; depois decidirás.

Sultão ouviu muito calmo o discurso de Tanaple, mas logo em seguida convocou uma tropa de homens armados, ordenando aprisionar o monstrinho até que um acontecimento viesse convencê-lo do que acabara de ouvir.

Eu julgava – disse Tanaple – que estivesse a tratar com um grande príncipe, mas vejo que me enganei. Deixo aos génios o cuidado de vingar os seus filhos. Dito isto, seguiu os que vieram para o prender.

IX

Tanaple estava na prisão apenas há algumas horas quando o Sol se cobriu de uma nuvem sombria, como se um véu quisesse roubá-lo à Terra; depois ouviu-se um grande estrondo e, de uma montanha situada na entrada da cidade, saiu um gigante armado, dirigindo-se para o palácio do Sultão.

Não direi que o Sultão tivesse ficado muito calmo; longe disso. Tremia como uma folha de laranjeira açoitada por Éolo. À aproximação do gigante mandou fechar todas as portas, ordenando aos soldados que ficassem de prontidão e armas à mão para defender o seu príncipe. Mas, oh! estupefacção! À chegada do gigante todas as portas se abriram, como se mão invisível as impelissem; depois, gravemente, o gigante avançou para o Sultão, sem fazer nenhum sinal ou dizer uma só palavra. À sua vista, o Sultão caiu de joelhos e suplicou ao gigante que o poupasse e dissesse o que exigia.

“Príncipe! – disse o gigante – não digo muita coisa da primeira vez; apenas te advirto. Faze o que Tanaple te aconselhou e te asseguramos a nossa protecção; de contrário, sofrerás o castigo de tua obstinação.” Dito isso, retirou-se.

A princípio o Sultão ficou aterrorizado; porém, refazendo-se do susto um quarto de hora mais tarde e, longe de seguir os conselhos de Tanaple, mandou publicar um édito em que prometia uma magnífica recompensa a quem o pusesse no rasto dos fugitivos; depois mandou postar soldados às portas do palácio e da cidade, esperando pacientemente. Mas a sua paciência não durou muito ou, pelo menos, não lhe deixou tempo de prová-la. A partir do segundo dia surgiu às portas da cidade um exército que parecia ter saído das entranhas da Terra; os soldados vestiam peles de toupeira, tinham como escudos cascos de tartaruga e usavam clavas feitas de lascas de rochedos.

À sua aproximação os guardas quiseram opor-lhes resistência, mas o aspecto formidável do exército logo os fez baixar as armas; abriram as portas sem nada dizer, sem romper as suas filas e a tropa inimiga marchou solenemente para o palácio. O Sultão quis resistir à entrada nos seus aposentos, mas, para sua grande surpresa, os guardas adormeceram e as portas se abriram por si mesmas. Depois o chefe do exército avançou com passo grave até aos pés do Sultão e disse-lhe:

“Vim para dizer-te que Tanaple, percebendo a tua teimosia, enviou-nos para procurar-te; em vez de ser o Sultão de um povo que não sabes governar, vamos conduzir-te ao seio das toupeiras; tu mesmo te tornarás uma delas e serás um Sultão domesticado. Vê já se isso te convém ou se preferes fazer o que te ordenou Tanaple; concedo-te dez minutos para reflectir.”

X

Sultão teria preferido resistir; mas, para sua felicidade, após alguns momentos de reflexão concordou com aquilo que lhe exigiam; queria impor apenas uma condição: que os fugitivos deixassem o seu reino. Prometeram-lhe o que pedia e, no mesmo momento, sem saber de que lado nem como, o exército desapareceu a seus olhos.

Agora que a sorte dos nossos amantes estava completamente assegurada, voltemos a eles. Sabeis que os havíamos deixado no palácio subterrâneo.

Depois de alguns minutos, deslumbrados e encantados pelo aspecto das maravilhas que os cercavam, quiseram visitar o palácio e os seus arredores. Viram jardins encantadores. E, coisa estranha! ali viam quase tão claramente quanto a céu aberto. Aproximaram-se do palácio: todas as portas estavam abertas e havia preparativos como para uma grande festa. À porta encontrava-se uma dama em magnífica toalete. Ao princípio os nossos fugitivos não a reconheceram; porém, aproximando-se mais, viram Manouza, a feiticeira, completamente transformada; já não era aquela velha mulher, suja e decrépita e, sim uma senhora de certa idade, ainda bela e de porte elegante.

“Noureddin – disse ela – eu te prometi auxílio e assistência. Hoje vou cumprir a minha promessa; os teus males chegam ao fim e vais receber o prémio de tua perseverança: Nazara será tua esposa; além disso, dou-te este palácio e nele habitarás. Serás o rei de um povo bravo e reconhecido; eles são dignos de ti, como tu és digno de reinar sobre eles.”

A estas palavras ouviu-se uma música harmoniosa; de todos os lados surgiu uma multidão inumerável de homens e mulheres em trajes de festa; à sua frente grandes senhores e grandes damas vinham prostrar-se aos pés de Noureddin. Ofereceram-lhe uma coroa de ouro cravejada de diamantes e disseram que o reconheciam como o seu rei; que o trono lhe pertencia como herança paterna; e que estavam enfeitiçados há quatrocentos anos pela vontade de magos perversos e esse feitiço só deveria terminar com a presença de Noureddin. Em seguida fizeram um grande discurso sobre as suas e as virtudes de Nazara.

Então Manouza lhe disse: Sois feliz, nada mais tenho a fazer aqui. Se algum dia precisardes de mim, batei na estátua que está no meio do vosso jardim e virei no mesmo instante. Depois desapareceu.

Noureddin e Nazara quiseram retê-la por mais tempo, a fim de agradecer-lhe toda a bondade para com eles. Depois de alguns momentos de conversa voltaram aos seus súbditos. As festas e os regozijos duraram oito dias. O seu reino foi longo e feliz; viveram milhares de anos e posso até mesmo dizer que vivem ainda. Só que o seu país jamais foi encontrado ou, melhor dizendo, nunca se tornou bem conhecido.

FIM

Observação – Chamamos a atenção dos nossos leitores para as observações que antecederam este conto, nos números de novembro de 1858 e janeiro de 1859.

Allan Kardec

/…

(*) N. do T.: Referência ao Sr. Baudin, cujas filhas adolescentes, Caroline e Julie Baudin, foram as primeiras médiuns que concorreram para o trabalho de Allan Kardec. Vide Obras Póstumas – 2ª Parte – A minha iniciação no Espiritismo.
(**) N. do T.: Esse processo, bastante primitivo, está descrito na 2ª Parte – capítulo XIII, item 154, de O Livro dos Médiuns.


Allan Kardec (i), aliás, Hippolyte Léon Denisard Rivail, Uma Noite Esquecida ou a Feiticeira Manouza, Milésima segunda noite dos contos árabes, Ditado pelo Espírito Frédéric Soulié; – Prefácio da Revue Spirite (repetição), Jornal de Estudos Psicológicos, Paris, Novembro de 1858; – Uma Noite Esquecida (Terceiro e último artigo), Fevereiro de 1859, 20º fragmento da Revista objecto do presente titulo desta publicação. 
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

sábado, 26 de outubro de 2024

metapsíquica | e depois


~~~ Segundo Caso ~~~

(A Crise da Morte)

Tiro este segundo facto do volume De MorganFrom Matter to Spirit (i(pág. 149). (*) A personalidade mediúnica do Doutor Horace Abraham Ackley descreve, nestes termos, a maneira como o seu Espírito se separou do organismo somático:

Como acontece em muito elevado número de humanos, o meu espírito não se libertou facilmente do corpo. Eu sentia que me desprendia gradualmente dos laços orgânicos, mas encontrava-me em condições pouco lúcidas de existência, afigurando-se-me que sonhava. Sentia a minha personalidade como que dividida em muitas partes, que, todavia, permaneciam ligadas por um laço indissolúvel. Quando o organismo corpóreo deixou de funcionar, pode o meu espírito despojar-se dele inteiramente. Pareceu-me então que as partes destacadas da minha personalidade se reuniam numa só. Senti-me, ao mesmo tempo, levantado acima do meu cadáver, a pequena distância dele, donde eu via distintamente as pessoas que me cercavam o corpo.

Não saberia dizer por que poder cheguei a me desprender e a me elevar no ar. Depois desse acontecimento, suponho ter passado por um período bastante longo em estado de inconsciência, ou de sono (o que, aliás, acontece frequentemente, se bem que isso não sucede em todos os casos); deduzo-o do facto que, quando tornei a ver o meu cadáver, estava ele em estado de adiantada decomposição.

Logo que voltei a mim, todos os acontecimentos da minha vida desfilaram aos meus olhos, como que em panorama; eram visões vivas, muito reais, em dimensões naturais, como se o meu passado se tivesse tornado o presente. Revi todo o meu passado, tendo compreendido o último episódio: o da minha desencarnação. A visão passou diante de mim com tal rapidez, que quase não tive tempo de reflectir, tendo ficado como que arrebatado por um turbilhão de emoções. A visão, em seguida, desapareceu com a mesma instantaneidade com que se mostrara; as meditações sobre o passado e o futuro, provocaram vivo interesse em mim pelas condições actuais.

Eu ouvira dizer aos espíritas que os Espíritos desencarnados eram acolhidos no mundo espiritual pelos seus parentes, ou pelos seus Espíritos-guardiães. Não vendo ninguém perto de mim, conclui que os espíritas se tinham enganado. Mas, logo que este pensamento me atravessou o espírito, vi dois Espíritos que me eram desconhecidos e para os quais me senti atraído por um sentimento de afinidade. Soube que tinham sido homens muito instruídos e inteligentes, mas que, como eu, não haviam cogitado em desenvolver em si os princípios elevados da espiritualidade. Chamaram-me pelo meu nome, sem que eu o tivesse pronunciado, e me acolheram com uma familiaridade tão benévola, que me senti agradavelmente reconfortado. Com eles deixei o meio onde desencarnara e onde me conservara até àquele momento. Pareceu-me nebulosa a paisagem que atravessei; mas dentro dessa meia obscuridade, fui conduzido a um lugar onde vi reunidos numerosos Espíritos, entre os quais muitos havia que eu conhecera em vida e que tinham morrido há algum tempo...

Notarei que no último parágrafo do episódio precedente se encontra um outro o dos detalhes secundários habituais, que se diferenciam mais ou menos nas descrições de tantos Espíritos que se comunicam. Este detalhe encontrará a sua razão de ser nas condições espirituais, bem pouco evolvidas, do defunto autor da mensagem. Geralmente, nas de revelações transcendentais, lê-se que os Espíritos dos mortos entram num meio mais ou menos radioso, onde são acolhidos pelos Espíritos dos seus parentes. Aqui se vê, ao contrário, que o Espírito comunicante se encontrou num meio nubloso, onde foi acolhida amistosamente por dois Espíritos que lhe eram desconhecidos, mas que guardavam afinidade com ele, do ponto de vista das condições espirituais. É fácil de julgar que este aparente desacordo entre as primeiras impressões deste Espírito desencarnado e outras muito mais frequentes dependa da circunstância de que, como ele próprio diz, se descuidara em vida em desenvolver em si o elemento espiritual e que os Espíritos que lhe foram ao encontro se encontravam nas mesmas condições. Daí resultou que, pela lei de afinidade, um meio de luz não se adaptava às condições transitórias, mas obscurecidas, dos seus Espíritos.

De outro ponto de vista, notarei que, também no episódio em apreço, o Espírito que se comunica afirma ter sofrido a prova da visão panorâmica do seu passado, prova que, neste caso, em vez de se desenrolar espontaneamente, em consequência de uma superexcitação sui generis das faculdades mnemónicas (superexcitação produzida pela crise da agonia, ao que dizem as psicologistas), pareceria antes provocada pelos guias espirituais, com o fim de predispor o Espírito recém-chegado a uma espécie de exame de consciência.

Esta interpretação do fenómeno ressaltará muito mais claramente de alguns dos casos que se vão seguir.

Notarei, finalmente, que este caso, ocorrido em 1857, já contém a narração de um incidente interessante de bilocação no leito de morte, seguido do fenómeno consistente na situação que durante algum tempo o Espírito desencarnado se manteve, pairando por cima do cadáver. Frequentes incidentes análogos encontrar-se-ão nas comunicações da mesma natureza; com mais frequência ainda, são sensitivos que, assistindo à morte de alguém, os descreverão segundo o que perceberam. As obras espiritualistas estão cheias de episódios deste género, a começar pelos que foram descritos pelo famoso vidente Andrew Jackson Davis e pelo juiz Edmonds, até aos que chegaram ao Rev. William Stainton Moses e à governante inglesa (enfermeira diplomada) Mrs. Joy Snell (i), que tem vindo a assistir à produção de fenómenos desta espécie desde há vinte anos. Ora, quem não vê que o facto das afirmações de videntes, concordantes de modo admirável com o que narram os próprios Espíritas desencarnados, tem inegável importância, uma vez que se confirmam mutuamente? E também, com relação a esta ordem de incidentes, é muito comum que o médium escrevente, ou o sensitivo vidente, estejam na mais completa ignorância acerca da existência de tais fenómenos e da maneira pela qual se produzem no leito de morte. E como o caso com que acabamos de ocupar-nos remonta a 1857, isto é, aos começos do movimento espírita, tudo contribui para que se suponha que nesta circunstância o médium e os assistentes ignoravam tudo o que concerne aos fenómenos de bilocação em geral e, sobretudo, à maneira como se dão com os moribundos.

/...

(*) From Matter to Spirit (Da Matéria ao Espírito), uma obra escrita por Sophia Elizabeth De Morgan (1809–1892) foi esposa do matemático e lógico Augustus De Morgan e mãe do célebre ceramista William De Morgan. Neste livro, publicado em 1863, De Morgan, escrevendo como 'CD' – com um prefácio de seu marido assinado como 'AB' – reconhece que supostas manifestações espirituais enfrentaram muitas críticas e cepticismo, mas argumenta que era um fenómeno pouco compreendido que merecia mais investigação. Ela passou uma década nesta pesquisa e se concentrou no papel dos médiuns, pessoas que se acreditava comunicarem-se com o mundo espiritual. Ela foi auxiliada nisso pela chegada de um médium que viveu com a família De Morgan durante seis anos. Os seus capítulos também examinam em profundidade o processo de morrer e as ideias sobre a vida depois da morte. Um relato em primeira mão do mundo espiritualista do século XIX, este livro fornece um vislumbre fascinante do cenário religioso em mudança da Grã-Bretanha à época. Adenda desta publicação.


Ernesto Bozzano (1862-1943) (i)A Crise da Morte, Publicação original (1930), "La Crisi Della Morte"; Segundo Caso. 2º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Puro aire, uma pintura de Josefina Robirosa)

sábado, 5 de outubro de 2024

as vidas sucessivas | os elementos ~


~~ Crenças antigas e conceitos modernos ~
(Victor Hugo)

  Eis como Arsène Houssaye relata a resposta que Victor Hugo deu a ateus em 1866:

  “Quem nos diz – recomeçou o poeta – que não me reencontro através dos séculos? Shakespeare escreveu: A vida é um conto de fadas que se lê pela segunda vez.

  Ele poderia ter dito: “pela milésima vez!”, pois não há século em que eu não veja passar a minha sombra.

  Vós não credes nas materializações que se movem (isto é, nas reencarnações) sob o pretexto de que não vos lembrais de nada de vossas existências anteriores. Porém, como é que as recordações dos séculos dissipados permaneceriam impressas em vós, quando mal vos recordais das mil e uma cenas de vossa vida presente? Desde 1802, houve em mim dez Victor Hugo! Acreditas, pois, que me recordo de todas as suas acções e de todos os seus pensamentos?

  Quando eu tiver atravessado a tumba para reencontrar uma outra luz, todos esses Victor Hugo ser-me-ão um pouco estranhos, porém será sempre a mesma alma!

  Sinto em mim – diz-lhes ele ainda – toda uma vida nova, toda uma vida futura. Sou como a floresta que várias vezes foi abatida: os jovens rebentos são cada vez mais fortes e vivazes. Subo, subo em direcção ao infinito! Tudo é radiante diante de mim. A terra me dá a sua seiva generosa, porém o céu ilumina-me com os reflexos dos mundos entrevistos!

  Dizeis que a alma é apenas a expressão das forças corporais. Então, porque é que a minha alma está mais luminosa quando as forças corporais vão em breve abandonar-me? O inverno encontra-se sobre a minha cabeça, porém a primavera eterna está na minha alma! Respiro a esta hora os lilases, as violetas e as rosas como aos vinte anos!

  Quanto mais me aproximo do fim, mais ouço à minha volta as imortais sinfonias dos mundos que me chamam! É maravilhoso e, é simples.

  Há todo um meio século que escrevo o meu pensamento em prosa e em verso: história, filosofia, drama, romance, lenda, sátira, ode, canção, etc.; tudo tentei; porém sinto que não disse a milésima parte do que se encontra em mim. Quando eu me deitar na tumba, não direi como tantos outros: terminei a minha jornada. Não, pois a minha jornada recomeçará no dia seguinte de manhã. A tumba não é um beco sem saída, é uma avenida; ela se fecha no crepúsculo e reabre ao alvorecer!”

Destinos da alma

O homem tem sedes insaciadas;
Em seu passado vertiginoso
Sente reviver outras vidas,
Conta os nós de sua alma.

Procura no fundo das sombrias cúpulas
Sob que forma resplandeceu,
Ouve seus próprios fantasmas,
Que atrás de si lhe falam.

O homem é o único ponto da criação
Em que, para permanecer livre tornando-se melhor,
A alma deve esquecer sua vida anterior.
Ele diz: Morrer é conhecer;
Procuramos a saída tacteando;
Eu era, eu sou, eu devo ser,
A sombra é uma escada, subamos. (*)

(*) Nota do tradutor – Para que pudéssemos ser fiéis ao conteúdo do texto original e aos termos utilizados pelo poeta, obrigamo-nos a prejudicar toda a melodia e as rimas dos versos, pois, para mantê-los, precisaríamos mudar a estrutura das frases e as palavras, o que fatalmente mudaria em parte o sentido do texto original. Preferimos, portanto, traduzi-lo quase que literalmente. Eis a seguir, no entanto, o texto original, com toda a sua beleza quanto à forma como ao conteúdo:

« Des destinées de l’âme / L’homme a des soifs inassouvies; / Dans son passé vertigineux / Il sent revivre d’autres vies, / De son âme il compte de noeuds, / Il cherche au found des sombres dômes / Sous quelle forme il a lui, / Il entend ses propres fantômes / Qui lui parlent derrière lui. / L’homme est l’unique poit de la création / Où, pour demeurer libre en se faisant meilleure, / L’âme doive oublier sa vie anterieure. / Il se dit: Mourir c’est connaítre; / Nous cherchons l’issue à tátons; / J’étais, je suis, je dois être, / L’ombre est une échelle, montons.»

/...


Albert de RochasAs Vidas Sucessivas, Primeira Parte – Crenças antigas e conceitos modernos (Victor Hugo), 3º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Albert de Rochas d'Aiglun (1837-1914), engenheiro militar francês, historiador da ciência, pesquisador de fenómenos espíritas, escritor, tradutor e administrador da Escola Politécnica de Paris)

terça-feira, 17 de setembro de 2024

literatura do além-túmulo ~


Capítulo I

  Entre as numerosas formas que revestem as manifestações mediúnicas de natureza inteligente, não nos devemos esquecer das que consistem na produção de obras literárias, às vezes bem volumosas, ditadas psicograficamente por entidades que dizem ser espíritos de mortos.

  Há necessidade de notar que grande número dessas produções mediúnicas não resiste a uma análise crítica, mesmo a mais superficial, de tal modo é evidente serem apenas o produto de uma elaboração onírico-subconsciente, de natureza grosseira e mais ou menos incoerente, com personalizações sonambúlicas que se formaram por sugestão ou auto-sugestão.

  Essas personificações devem, em toda a parte, nesses casos, ter origem nos recursos do talento e da instrução própria às personalidades conscientes de que provêm, com a consequência de que as obras literárias dos supostos espíritos que julgam comunicar-se são, algumas vezes, tão rudimentares, que traem a sua origem, sem que se possa ter a menor dúvida a esse respeito.

  Não é menos verdade que, ao lado dos pseudo-médiuns, se encontram médiuns autênticos, por intermédio dos quais se obtêm, às vezes, obras literárias de grande mérito, que levam a uma reflexão séria e não podem ser atribuídas a uma elaboração subconsciente da cultura geral, muito limitada, que se reconhece nos médiuns que, materialmente, as escreveram. É então necessário deduzir logicamente daí que essas produções provenham de intervenções estranhas aos médiuns, tanto mais se se consideram não somente as provas que se deduzem da forma, estilo, técnica individual da obra literária e também da identificação de escrita, como outras provas não menos importantes.

  Essas provas consistem, sobretudo, em indicações pessoais ignoradas de todos os assistentes e das quais se verifica, em seguida, a veracidade; em citações não menos verídicas e desconhecidas de todos, com referência a elementos históricos, geográficos, topográficos, filológicos, de natureza complexa e quase sempre rara, enfim, em descrições minuciosas, coloridas e vivas, de meios e costumes referentes a povos bem antigos, circunstâncias que não poderiam ser esquecidas pela hipótese cómoda da emergência subconsciente de noções adquiridas e, em seguida, esquecidas (criptomnesia).

  Proponho-me, neste estudo, analisar as principais manifestações desse género, principalmente porque foram obtidos, ultimamente, ditados mediúnicos que revestem alto valor teórico, num sentido nitidamente espírita.

  O que se obteve, no passado, nessa categoria de manifestações, só tem rara importância teórica; de qualquer forma, não me absterei de dizer algumas palavras a seu respeito.

  Começo por um caso de transição referente a uma célebre obra literária. Tudo o que se pode dizer a seu respeito é que não é fácil considerar se as modalidades, pelas quais veio à luz, devem ser atribuídas a intervenções estranhas à médium ou bem a um estado de superexcitação psíquica, bastante frequente nas “crises de inspiração”, às quais são sujeitas as mentalidades geniais. Em todo o caso, trata-se de um facto interessante e instrutivo, dadas a notoriedade da autora e a influência considerável que a obra literária em questão exerceu sobre acontecimentos históricos e sociais de uma grande nação.

  Quero referir-me à célebre escritora sra. Harriet Beecher-Stowe e ao seu bem conhecido romance A Cabana do Pai Tomás, o qual muito contribuiu para a abolição da escravatura nos Estados Unidos da América.

  O meio familiar em que viveu Harriet Beecher-Stowe pode ser considerado como favorável a intervenções espirituais.

O prof. James Robertson assim fala na Light (1904, pág. 338):

  “O marido, prof. Stowe, era médium vidente. Ele viu muitas vezes, à sua volta, fantasmas de defuntos, de maneira tão nítida e natural que por vezes lhe era difícil discernir os espíritos “encarnados” dos “desencarnados”.”

  Quanto à sra. Beecher-Stowe, ela era também grande sensitiva, “sujeita a crises frequentes de depressão nervosa com fases de ausência psíquica”. Ela acolhera com entusiasmo o movimento espírita que se iniciara na América, havia alguns anos.

Relativamente ao seu grande romance A Cabana do Pai Tomás, extraio da Light (1898, pág. 96) as seguintes informações:

  “A sra. Howard, amiga íntima da sra. Beecher-Stowe, forneceu essas curiosas indicações relativamente às modalidades nas quais o famoso romance foi escrito. As duas amigas estavam em viagem e pararam em Hartford para passarem a noite em casa da sra. Perkins, irmã da sra. Stowe. Elas dormiram no mesmo quarto. A sra. Howard despiu-se imediatamente e ficou, do seu leito, observando a sua amiga ocupada em pentear, automaticamente, os seus cabelos anelados, deixando transparecer no seu rosto intensa concentração mental. Nesse ponto, a narradora continua assim:

Finalmente Harriet pareceu sair desse estado e disse-me:

– Recebi, esta manhã, cartas de meu irmão Henry que se mostra bastante preocupado a meu respeito. Ele teme que todos esses elogios, que toda esta notoriedade que se criou em torno do meu nome, produzam o efeito de provocar em mim uma chama de orgulho que possa prejudicar a minha alma de cristã.

Dizendo isto, pousou o pente, exclamando:

  – O meu irmão é, incontestavelmente, uma bela alma, porém ele não se preocuparia tanto com esse caso se soubesse que esse livro não foi escrito por mim.

  – Como – perguntei eu, estupefacta –, não foi você quem escreveu A Cabana do Pai Tomás?

  – Não – respondeu ela –, não fiz outra coisa senão tomar nota do que via.

  – Que está a dizer? Então você nunca foi aos Estados do Sul?

  – É verdade, todas as cenas do meu romance, uma a seguir à outra, se me desenrolaram diante dos olhos e eu descrevi o que via.

Perguntei ainda:

  – Pelo menos você regulou a sequência dos acontecimentos.

  – De modo nenhum – respondeu-me ela –; a sua filha Annie me censura por ter feito morrer Evangelina. Ora, isso não foi por minha culpa; não podia impedi-lo. Senti-o mais do que todos os leitores; foi como se a morte tivesse atingido uma pessoa da minha família. Quando a morte de Evangelina se deu, fiquei tão abatida que não pude retomar a pena por mais de duas semanas.

Perguntei-lhe então:

  – E sabia que o pobre pai Tomás devia, por sua vez, morrer?

  – Sim – respondeu-me ela –, isso eu o sabia desde o princípio, porém ignorava de que morte iria morrer. Quando cheguei a esse ponto do romance, não tive mais visões durante algum tempo.”

Em outro número da mesma revista, (1918, pág. 325), relatou-se o seguinte episódio sobre o mesmo assunto:

“Certa tarde, a sra. Beecher-Stowe passeava sozinha, como de hábito, no parque. O capitão X. viu-a, aproximou-se dela e, descobrindo-se respeitosamente, disse-lhe: Na minha mocidade, li também com intensa emoção A Cabana do Pai Tomás. Permiti-me apertar a mão da autora do célebre romance. A escritora, septuagenária, estendeu-lhe a mão, notando, entretanto, vivamente:

  – Não fui eu quem o escreveu.

  – Como, não foi a senhora? – perguntou o capitão, surpreso –. Quem o escreveu então?

  Ela respondeu:

  – Deus o escreveu. Foi Ele quem ma ditou.”

  Na primeira das duas passagens acima, que acabo de citar, nota-se uma emergência espontânea da subconsciência da autora, consistindo em visões cinematográficas que traçam a acção do romance, o que oferece grandes analogias com as modalidades da cerebração donde saíram romances de outros autores de génio, tais como Dickens e Balzac. Estes últimos, por sua vez, viam desfilar, subjectivamente, as cenas e os personagens que tinham imaginado. A diferença entre as suas visões e as da sra. Beecher-Stowe parece, então, consistir nesta última circunstância: eles assistiam ao desenvolvimento de acontecimentos que a sua imaginação consciente tinha criado, ao passo que a sra. Beecher-Stowe assistia, passivamente, ao desenrolar de eventos que não tinha criado e que estavam, muitas vezes, em oposição absoluta à sua vontade, pois que, por ela, não teria feito morrer duas santas personagens do seu romance.

  Esta circunstância é importante e parece fazer distinguir as visões subjectivas, comuns aos escritores de génio, das tidas pela sra. Beecher-Stowe, da mesma maneira que as “objectivações de tipos”, estereotipadas e automatizadas, que se obtêm pela sugestão hipnótica, não apresentam nada de comum com as personalidades mediúnicas, independentes e livres, que se manifestam por intermédio de verdadeiros médiuns.

  A presunção de que não se tratava de visões puramente subjectivas adquire mais eficácia ainda graças à segunda das duas passagens já citadas, na qual a sra. Beecher-Stowe declara, explicitamente, ter transcrito o seu romance como ele lhe fora ditado, o que prova que a célebre autora era médium escrevente, circunstância que se encontra confirmada por factos assinalados na sua biografia, segundo os quais ela era sujeita a “fases de ausência psíquica” que eram, com toda a verosimilhança, estados superficiais de transe.

  De outro ponto de vista, faço notar que a exclamação da sra. Beecher-Stowe: “Deus o escreveu”, subentende que o ditado mediúnico se realizou sob forma anónima, isto é, que o agente espiritual operante ocultava a própria individualidade, limitando-se, ao que parece, a cumprir na Terra a missão de que se encarregara: a de contribuir, eficazmente, graças a uma narrativa emocionante e pungente, para a obra humanitária da redenção de uma raça oprimida.

  Julguei poder tirar do caso a conclusão de que venho de narrar. Todavia, não insisto nela, considerando que estas induções não são suficientes para concluir a favor da origem realmente espírita do romance em questão.

  É necessário, todavia, notar que as bases sobre as quais repousam as induções a favor de uma explicação puramente subjectiva dos estados da alma por que passou a autora, quando trabalhava no seu grande romance, parecem bem mais fracas, quando são analisadas, que as da interpretação espírita dos mesmos factos.

/...

Ernesto Bozzano, Literatura do Além-túmulo, Capítulo I – A Cabana do Pai Tomás, de Harriet Beecher-Stowe. 2º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Les Fleurs du Lac | 1900, tempera no painel de Edgard Maxence)