OBSESSÃO VINGADORA E PERTINAZ (III)
Para um desses redutos, onde agora sofria o duque as ásperas agruras de que
Girólamo se tornara responsável, é que ele conduziu o sobrinho, a fim de produzir na sua memória espiritual o choque
inicial do horror, por meio do qual a sincronização com a região da treva faria
o culpado começar a pagar o pesado e duro tributo da regeneração impostergável.
Inerme, descomposto, o espírito encarnado foi arrastado ao
núcleo de punição devida e, quando sentiu a atmosfera asfixiante e se pôde dar
conta do espectro que o vituperava, foi acometido de tão pungente sofrimento
que o corpo, no leito distante, traduzia a dor em gritos, estertores e agitação
penosos…
O dia marchava alto e a cidade estava em bulha crescente.
Sobressaltada pela atroada que vinha da peça do hóspede e estando a sós àquela
hora, sem sopitar o desejo que a fazia fremir, Lucrécia, a anfitriã
desassisada, resolveu afrontar os códigos da moral e experimentar o risco de
qualquer dano, correndo precípite pela recâmara, e, vendo o hóspede agónico,
avançou, audaciosa, e o despertou com agitação.
Atraído ao corpo, – sublime refúgio para os viciados e
culpados –, Girólamo ergeu-se, descorado, trémulo, a custo recobrando o
controle dos sentidos estiolados. Vencida a primeira etapa do despertamento
amargo, dando-se conta da presença da bela mulher, apressou-se em explicar o
grave incidente.
– Devo estar enfermo, – gaguejou, estremunhado. – Desde a
saída do meu solar venho sendo vítima de pesadelos incessantes. Em lucidez,
sinto-me acoimado por demónios vingadores e, agora, dormindo, sinto-me arrastado
ao inferno…
– Meu belo forasteiro
– retrucou a arisca, em leviandade imperdoável –, seu mal deve ter outra
origem…
Sorriu, generosa, provocante. Acercou-se do moço alucinado,
ainda, pelo receio e as sedas fartalhantes roçaram o corpo venal do rapaz. Dela
se desprendiam os aromas fortes, luxuriosos, então em voga. Atraente, sabia
como utilizar a arma da sensualidade. Curvando-se sobre ele, com o pretexto
aparente de enxugar-lhe o suor, levou as mãos à face vincada por olheiras, que
Girólamo apresentava, e acariciou-o. Subitamente abrasado, insensível a
qualquer sentimento de gratidão ou respeito ao lar que o acolhia, espicaçado
nos sentimentos inferiores, aos quais muito facilmente dava campo, o ardente
senense arrebatou-a e, fogoso, na volúpia de mais um cometimento sórdido,
beijou-a demorada, sofregamente.
O tempo não lhes tinha significação, nem o local, que
deveria ser sagrado, na condição de um santuário doméstico legalmente
constituído. Na paixão que os desgovernava, iam dar curso ao atentado à
dignidade, quando o moço, febril pelo desejo e lapso pelas perversões contínuas
do corpo, escutou a estrídula
gargalhada explodir dentro da cabeça.
Fulminante pelo desespero, empurrou Lucrécia sobre o leito,
segurou a cabeça com as duas mãos e chocou-a contra as pedras da parede, como
se a desejasse arrebatar. A mulher, surpreendida pelo inesperado insucesso,
recuou, amedrontada, ao fitar o moço repentinamente possuído pela demência. Horrorizada, desceu a escada, para buscar o esposo no andar térreo da habitação
nabada e explicar-lhe o desalinho do hóspede.
Informado do súbito mal-estar do companheiro, Francesco, que
se encontrava no pátio interno do palácio, subiu a escada com celeridade e pôde
impedir que o amigo enceguecido culminasse, naquele transe, numa tragédia
imprevisível.
– Talvez te tenhas perturbado com o áugure, falou-lhe,
tentando acalmá-lo. – Não te deveria ter conduzido àquele local. Estavas
agitado e talvez as informações e magias do louco te tivessem afectado.
Mandarei um servo chamar o médico e logo mais estarás pronto para enfrentar o
dia quente, para nós promissor.
Ante a naturalidade do amigo, Girólamo aquiesceu e
acalmou-se, prometendo asserenar-se.
Não podia, porém, compreender o que se passava. Sempre
pudera dominar os impulsos nos momentos oportunos, dissimulando os estados
íntimos, mesmo quando comandado por emoções violentas. Até ali era tido por
cidadão honrado e nobre respeitado. O seu título aureolava-o de prestígio e,
como cavaleiro, caminhava em
destaque ao lado das personalidades de preeminência da cidade. Deveria estar
enlouquecendo e a providência de chamar o médico parecia-lhe acertada.
Aguardara aquele momento, reflexionava, para viver intensamente a vida nocturna
de Siena, nos dias da Festa, e aquela enfermidade parecia disposta a impedi-lo.
Não procurára os sogros por desejar que a sua presença passasse despercebida.
Planejava visitá-los após o prazer exacerbado, quando já estivesse de retorno,
defendendo, com esse acto, a retaguarda. No entanto…
Pudesse, porém, o leviano ver além da barreira orgânica e
enxergaria, contraído e carrancudo, o duque
di Bicci, irreconhecível na sua deformação exterior, agressivo, tendo Assunta a
debater-se nas suas mãos poderosas, enquanto blasfemava, vingador, insaciável,
desforçando-se naquela que ajudara o amante a arrojá-lo no couto da amargura.
As expressões mais sórdidas, que escapavam dos lábios contorcidos de Assunta,
traduziam a fúria de que se via possuída e o superlativo desejo de vingança que
a vergastava, a alucinava. Ameaçava o antigo companheiro, em ímpar agonia. Desejando
libertar-se, entrou, também, em agressão, mas, impotente para tanto, por ser
responsável consciente pelos delitos de que agora se tornava vítima, renhiu
demoradamente e desmaiou nas garras poderosas que a lancinavam…
Chegando o médico, este surpreendeu-se com a palidez do
cliente. Fez-lhe um exame superficial, como era comum na época, e
prescreveu-lhe vários duches, aplicando-lhes uma rápida sangria
descongestionante e mais alguns medicamentos, cujas fórmulas elaborou. Sugeriu
repouso, depois do que poderia tomar um bom cálice de vinho…
Os sorrisos varreram a preocupação, encerrando a gravidade
da doença.
O dia transcorreu morno e activo. Saindo a pé com Francesco,
para ligeiras visitas a amigos, ambos retornaram cedo ao palácio, afim de
retemperaram as forças para o baile-de-máscaras que o duque di Médici preparara para aquela noite, em homenagem às comemorações
do dia imediato.
Os convites distribuídos anteriormente foram dirigidos a
mais de duzentos ruidosos senenses e visitantes, empolgados com os
surpreendentes prazeres que os aguardavam.
O Palácio Médici, em situação privilegiada da cidade, era
uma imensa fortaleza, no acme de uma colina, entre árvores vetustas e cercado
de largo fosso, que resguardava os jardins exóticos, de rosas variadas,
protegido pela Viale dei Mille.
A construção, erguida por Cosme I (Médici), é vetusta e
sobranceira, donde se tem a visão da cidade engalanada.
Os salões da herdade seriam abertos, na oportunidade, ao
grande público, para uma alucinante festa de prazer, das que a fizeram célebre
noutros tempos. Já não desfrutando do mesmo prestígio do passado, desde a
anexação da Toscana à Áustria, os Médici entregavam-se ao gozo, recuperando em
dissipação o que perderam em destaque político. As autoridades governamentais,
por motivos óbvios, receberam convite especial, com o justo destaque que a sua
condição impunha. Ao lado das comemorações programadas para o dia imediato. Não
apenas a nobreza e os convidados especiais, mas o povo também, que normalmente
se comprimia nos arredores, foi convocado podendo adentrar-se pelos jardins, ao
ensejo abertos a todos, para ver o desfile da grandeza e do luxo, enquanto nos
seus lares escasseavam o pão e a paz…
Conquanto Girólamo fosse considerado persona-non-grata no Palácio Médici, por motivos compreensíveis, a
instâncias de Francesco e da esposa, que receberam honrosa solicitação,
resolveu participar, desde que seria um baile de máscaras, em que se poderia
ocultar o carácter sórdido da aparência social, na dissimulação pelo disfarce.
Lucrécia, abalada e ansiosa, ante o estado do homem
cobiçado, com quem não pudera consumar a leviandade, gastou o dia nos aprestos
superficiais para o baile.
/…
VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 7. OBSESSÃO VINGADORA E PERTINAZ 3 de 4, 24º fragmento da obra. Texto mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem: L’âme de la forêt _1898, tempera e
folha de ouro sobre painel de Edgar Maxence)