Motivos de Dificuldades nas Curas (II)
Passar de um tipo de mentalidade a outro, no processo
histórico, exige enorme e persistente esforço de uma civilização. Num momento
agudo de transição como enfrentamos no nosso tempo, esse processo exige modificações
violentas que provocam medo e inquietação. O homem actual perdeu a segurança do
passado. As suas próprias certezas científicas foram substituídas por
probabilidades. Ele se recusa inconscientemente a trocar os seus mitos religiosos
por ideias racionais, mas ao mesmo tempo sente-se obrigado a trocá-los, por
força do desenvolvimento cultural e tecnológico. O antropomorfismo, que o cevou
por milénios nas ideias cómodas de um Deus semelhante a ele e o fez familiar a Deus, é para ele muito caro. Deixar esse Deus familiar pela ideia de uma
Consciência Cósmica confunde-o. Como Kardec acentuou, esse processo se torna
fácil graças à sucessão das gerações. Já podemos notar o enfraquecimento dos
mitos actuais no decorrer dos anos. Toynbee mostrou que as civilizações se apoiam
no alicerce das grandes religiões, confirmando a influência da lei de adoração no processo histórico.
Não se referiu a essa lei de kardec, mas reconheceu a sua necessidade básica
para a evolução mental e espiritual das comunidades humanas. Esse é hoje um
tema pacífico. As grandes ideologias revolucionárias, por mais brutais que
fossem, acabaram sempre por se estruturar nas formas de religiões, não podendo
vingar sem essas metamorfoses significativas. O Positivismo de Comte
desembocou, para espanto dos seus adeptos mais fiéis, na Religião da
Humanidade; os ideólogos da Revolução Francesa entronizaram a Deusa Razão na
Catedral de Notre Dame, o Marxismo converteu-se numa organização fanática de
salvacionistas, com a adoração de Marx entre a foice e o martelo, a reverência
aos ídolos sagrados da Revolução Bolchevista e a obediência servil às bulas
papais do Kremlin ressuscitado das cinzas. Mas tudo isso foi precedido de
longas e dolorosas metamorfoses conceptuais. A pretensão científica do
materialismo Dialéctico foi asfixiada pela falência da matéria no
desenvolvimento da Física Moderna. Todas essas tentativas de religiões
artificiais esboroaram-se, abrindo passagem à lógica realista e irrefutável da
concepção espírita, inteiramente livre de símbolos e mitos que favorecem o
desenvolvimento de novos formalismos e de novos mitos. Monsenhor Pisoni, expert de Espiritismo no Vaticano,
declarou recentemente à revista italiana Gente
que teve a oportunidade de receber mensagens autênticas de dois amigos
falecidos, e acrescentou que o Vaticano não condena as pesquisas espíritas. Já
chegou à cúpula do mundo católico o abalo inevitável das velhas estruturas.
Cabe-nos agora vigiar activamente, aprofundando os estudos doutrinários do
Espiritismo, para que a metamorfose conceptual em curso não arraste os
espíritas para a voragem das deturpações sincréticas. Só um esforço conjunto
dos intelectuais espíritas poderá impedir a ameaça desse novo naufrágio da
razão no misticismo formalista e mitológico dos criadores de mitos. A terapia
espírita, natural e simples, seria então sufocada por um retorno de séculos à
adoração espúria das fantasias.
Estamos num desses vórtices perigosos da história, em que os
acidentes dessa espécie são comuns, por falta de conhecimento real das
doutrinas renovadoras. Precisamos de aprofundar os estudos doutrinários, através
do esforço de pensadores espíritas suficientemente integrados na cultura actual
e empenhados no desenvolvimento da nova cultura da era cósmica.
Temos de dinamizar os nossos esforços na elaboração
consciente e esclarecida da Cultura Espírita, única realmente dotada de
capacidade para absorver os elementos válidos da cultura leiga. As culturas,
como ensina Ernst Cassirer, nascem e se desenvolvem por esse processo de
assimilação selectiva (não sincrética) da herança cultural anterior. Se os
espíritas não compreenderem essa necessidade histórica e não se prepararem para
enfrentá-las, serão os responsáveis pelo retrocesso ao misticismo obscurantista
que já nos ameaça.
Kardec insistiu na necessidade de nos firmarmos na razão
para não recairmos nos delírios da imaginação excitada pelo impulso de
sublimação que levou os clérigos de todos os tempos a se julgarem privilegiados
de Deus e agraciados pela sabedoria infusa do teologismo. A imaginação, como
observara Descartes, leva-nos a romper os limites do possível. Nada mais
apropriado para transformar e acelerar de repente os passos cautelosos na
disparada quixotesca. Por isso, o campo do paranormal oferece mais dificuldades
para a pesquisa científica do que o dos fenómenos físicos. Myers advertiu que a
mente subliminar se destina à vida espiritual e não à material, que corresponde
às exigências imediatistas do mundo sensorial. Kardec esquivou-se ao uso dos
processos da vidência e do desprendimento mediúnico para a investigação do
plano espiritual, preferindo obter informações dos espíritos, sempre que
controláveis, para atingir a verdade sobre o outro mundo. Alegava que os que
vivem naquele mundo estão mais aptos a nos fornecer dados sobre ele. O espírito
encarnado está condicionado ao nosso plano, mas o desencarnado condiciona-se ao
outro. Cabe à razão humana, através de pesquisas adequadas – hoje comuns nas
ciências do extra-físico – verificar as possibilidades lógicas das informações
e proceder às verificações necessárias à comprovação dos dados oferecidos pelos
informantes.
Kardec considerou importante, como um dos meios de controle
dessas informações do Além, o critério do consenso universal. Excluía assim os
perigos da opinião individual. Qualquer revelação de um espírito teria de
passar pelo teste inicial do consenso. Se outras comunicações semelhantes se
verificassem por outros médiuns em outros locais, na mesma ocasião, esse
consenso dava – desde que os médiuns não se conhecessem e residissem distantes
uns dos outros – uma suposição de veracidade. Mas só as comprovações
experimentais poderiam legitimá-las. As suas pesquisas eram árduas e minuciosas,
mas os resultados foram tão positivos que nenhum dos princípios por ele estabelecidos
foi abalado pela evolução científica dos nossos dias. Pelo contrário,
permanecem como antecipações de solução para problemas com que lutam ainda os
pesquisadores actuais. Por exemplo: a sua afirmação de que o corpo espiritual é
semimaterial, aplica-se hoje ao corpo bioplásmico, que é formado de plasma físico,
mistura de partículas atómicas, em que se inserem elementos extra-físicos. O
próprio ectoplasma, que Ímoda, Richet e Fontenai, em pesquisas conjuntas, com a
mediunidade de Linda Gazzera, na Itália, verificaram ser tridimensional,
revela-se hoje, nas pesquisas russas da Universidade de Kirov, como energias do
perispírito. Confirma-se assim a validade das pesquisas de Crawford em Belfast,
tantas vezes ridicularizadas sem nenhuma contraprova experimental. As alavancas
de Crawford, reveladas por ele como pseudópodos de massa leitosa ou jactos de
energia radiante, que movimentavam objectos à distância, sem contacto, foram
definidas em Kirov como emissões de energias plásmicas emitidas pelo médium
para produzir efeitos materiais à distância. As pesquisas de Schrenk-Notzing,
em Berlim, provaram que a massa ectoplasmática retorna ao corpo do médium,
sendo reabsorvida como o são também as energias. As três dimensões do
ectoplasma são: a visível, em forma leitosa, que produz formas de membros
humanos e até mesmo materializações completas de espíritos de mortos; a
visível, em forma de fluido esbranquiçado; e a invisível, que se pode perceber
pelo tacto como uma espécie de teias de aranha finíssimas e levemente
pegajosas. Zöllner, na Universidade de Leipzig, provou o poder explosivo do
ectoplasma, mesmo invisível. Nos casos de cura, o ectoplasma tem funções ainda
não suficientemente definidas, mas já evidenciadas em numerosas oportunidades.
Fisiologistas famosos, como Geley e Richet, entenderam que pode actuar na
recuperação de tecidos gastos ou acidentados.
As dificuldades de cura decorrem geralmente de implicações
cármicas dos pacientes, de deficiências mediúnicas e de falta de conhecimento
do problema pelos dirigentes de sessões. O apego emocional dos pacientes aos
seus obsessores, por afinidades temperamentais, é um dos mais graves entraves
do processo terapêutico. Os médicos espíritas podem controlar a cura e estimular
os pacientes, bem como os médiuns doadores de energias ectoplásmicas. Por isso
é sempre aconselhável a presença e participação de médicos conhecedores do
problema em todos os tratamentos pela terapia espírita. Alegar que a
participação médica torna suspeitos os resultados é simplesmente provar
desconhecimento do assunto.
/…
José Herculano Pires, Ciência Espírita e
suas implicações terapêuticas, Motivos de Dificuldades nas Curas 2 de
2, 14º fragmento da obra.
(imagem: O peregrino sobre o mar de névoa,
por Caspar
David Friedrich)
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