Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Deus na Natureza ~


A Força e a Matéria I Posição do Problema (II)

  Há umas tantas questões profundas que, no curso da vida humana, nas horas de silêncio e solidão, se nos apresentam como outros tantos pontos de interrogação, inquietantes e misteriosos.

 Tais os problemas da existência da alma, do seu futuro destino, da existência de Deus e das suas relações com a Criação.

 Vastos e imponentes problemas, estes nos envolvem e dominam em sua imensidade, pois sentimos que nos aguardam, e na ignorância deles não poderemos razoavelmente alienar um tal ou qual temor do desconhecido.

  Assim é que, já o dizia Pascal, um desses problemas – o da mortalidade da alma – é tão importante, que é preciso haver perdido toda a consciência para ficar indiferente ao conhecimento de si mesmo. O mesmo se poderá dizer quanto à existência de Deus. Quando meditamos essas verdades, ou apenas na possibilidade da sua existência, elas nos aparecem sob aspecto tão grandioso que a nós mesmos interrogamos como podem criaturas inteligentes, seres racionais, pensantes, entregar-se uma vida inteira a interesses transitórios, sem se abstraírem uma que outra vez da sua apatia para atender a essas interrogativas preciosas.

  Se é verdade, qual o temos observado, que há neste mundo homens absolutamente indiferentes, que jamais sentiram a magnitude desses problemas, menos não é que eles nos inspiram verdadeira piedade. Aqueles que, no entanto, mais agravam a brutalidade da indiferença e, de caso pensado, desdenham alçar-se ao nível destes assuntos importantes, preferindo-lhes os doces gozos da vida material, esses, – declaramo-lo em alto e bom som – nós os deixamos sem pesar, entregues à sua inércia, para considerá-los fora da esfera intelectual.

  O problema da existência de Deus é primacial a todos. Nem por outro motivo é que, contra ele, se apontam as principais, as mais possantes baterias do Materialismo que nos propomos combater. Pretende-se provar, com a ciência positiva, a inexistência de Deus e que uma tal hipótese não passa de aberração da inteligência humana. Um grande número de homens sérios, convencidos do valor desses pretensos raciocínios científicos, enfileiraram-se ao redor desses inovadores reincidentes, engrossando desmesuradamente as hostes materialistas, primeiro na Alemanha e depois na França, na Inglaterra, na Suíça e na própria Itália.

  Ora, nós não tememos dizer que, mestres ou discípulos, quantos se apoiam em testemunhos da ciência experimental para concluir que Deus não existe, cometem a mais grave inconsequência.

  Acusando-os dessa errónea, haveremos de justificar-nos, ainda que os incriminados possam, sob outro prisma, ser considerados homens eminentes e respeitáveis. De resto, é mesmo em nome da ciência experimental que vimos combatê-los.

   Deixamos de lado toda a ciência especulativa e colocamo-nos, exclusivamente, no mesmo terreno dos adversários.

   Não pensamos como Demócrito que, vazar os olhos, para evitar as seduções do mundo exterior, seja o melhor meio de cultivar frutuosamente a Filosofia e, muito pelo contrário, permanecemos firmes na esfera da observação e da experiência.

   Nessa posição, declaramos que, por um lado, não se prende imediatamente à existência de Deus, mas, por outro lado, desde que venhamos aplicar ao problema os actuais conhecimentos científicos, longe de conduzirem à negativa, afirmam eles a inteligência e sabedoria das leis da Natureza.

   A elevação para Deus, mediante o estudo científico da Natureza, nos mantém em situação equidistante dos dois extremos, isto é: – dos que negam e dos que se permitem definir, simploriamente, a causa suprema como se houveram sido admitidos ao seu concelho. Assim, com as mesmas armas, combatemos duas potências opostas: – o materialismo e a ilusão religiosa.

   Pensamos que é igualmente falso e perigoso crer num Deus infantil, quanto negar uma causa primária.

   Em vão se nos objectará não podermos afirmar a existência de uma entidade que não conhecemos. Acautelemo-nos de presunções que tais. Certo, não conhecemos Deus, mas, sem embargo, sabemos que existe. Também não conhecemos a luz e sabemos que ela irradia das alturas celestes. Tampouco, conhecemos a vida e sabemos que ela se desdobra em esplendores na superfície da Terra.

   “Longe estou de crer – dizia Goethe a Eckermann – que tenha uma exacta noção do Ser supremo. Minhas opiniões, faladas ou escritas, resumem-se nisto: Deus é incompreensível e o homem não tem a seu respeito mais que uma noção vaga e aproximativa. De resto, toda a Natureza, e nós com ela, somos de tal modo penetrados pela Divindade que dela nos sustentamos, nela vivemos, respiramos, existimos. Sofremos ou gozamos em conformidade de leis eternas, perante as quais representamos um papel activo e passivo ao mesmo tempo, quer o reconheçamos, quer não. A criança regala-se com o bolo, sem cogitar de quem o fez, o pássaro belisca a cereja, sem imaginar como a mesma se formou. Que sabemos de Deus? E que significa, em suma, essa íntima intuição que temos de um Ser supremo? Ainda mesmo que, a exemplo dos turcos, eu lhe desse cem nomes, ficaria infinitamente abaixo da verdade, tantos são os seus inumeráveis atributos... Como o Ente supremo, a que chamamos Deus, manifesta-se não só no homem como no âmbito de uma Natureza rica e potente quanto nos grandes acontecimentos mundiais, a ideia que dele se faz é, evidentemente, exígua.”

  A ideia que os antepassados formavam de Deus, em todas as épocas, sempre esteve de acordo com o grau de ciência sucessivamente adquirido pela Humanidade. Tal como o saber humano, essa ideia é variável e deve, necessariamente, progredir, pois, seja como for, cada uma das noções que constituem o património da inteligência deve seguir a par com o progresso geral, sob pena de ficar distanciada.
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Camille Flammarion, Deus na Natureza – Primeira Parte, A Força e a Matéria I - Posição do Problema 2 de 6, 6º fragmento da obra.
(imagem: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

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