ACOSSAMENTO IRREVERSÍVEL ~
A chegada ao Palácio T., na parte superior da cidade, fez-se
seguida das homenagens dos anfitriões. Francesco e sua esposa, uma morena de
grandes olhos claros e tez bronzeada, de aparência sensual e leviana, acolheram
o visitante com reais demonstrações de cordialidade e júbilo. Por estranho
processo magnético, porém, Girólamo sentiu que a esposa do amigo experimentou a
mesma sensação de prazer que ele, ao primeiro encontro, e rejubilou-se
interiormente. Francesco conduziu-o à peça interior, em que se deveria
hospedar, e apresentou-lhe as bilhas de água fresca e a bacia de fina
porcelana, para a higiene corporal.
Sacudido pelas alegrias espontâneas do momento, Girólamo
pareceu novamente ouvir ensurdecedora gargalhada a estrugir dentro de sua
cabeça, reconhecendo a voz de Assunta assassinada, como se ela estivesse
presente. Empalideceu de inopíno e fez-se lívido.
Francesco, surpreso, inquiriu o amigo a respeito do seu
estado.
– Não é nada de assustar – asseverou o cavaliere.
– Creio que o sol causticante na viagem me fez mal. Tive um
pesadelo e, desde então, estou sendo acometido de desconhecidas sensações,
quais delírios produzidos pela maremma *,
conquanto não esteja febril. Desejava mesmo perguntar-lhe se há, na cidade,
algum ervanário que mereça uma consulta, ou algum médico, embora a minha
indiferença e quase perversão total contra os médicos…
– Sim – redarguiu o anfitrião –, sei que fora da cidade,
além da Porta Ovile, reside estranho
misto de ervanário e adivinho, que atende seleta clientela, não obstante
permaneça em silencioso abandono, entre os seus unguentos e misteres exóticos.
Nossa família consultou-o mais de uma vez, com excelentes resultados. Mas, que
teria o Conde Cherubini para interessar-se por gente desse jaez?
– Se me guarda segredo – falou, esfogueado, o nobre –,
gostaria de consultá-lo para acalmar-me a respeito de problemas graves de
família. Não ignora você a tragédia de que foi palco o solar que hoje é
propriedade minha. Não posso negar que cruéis presságios me acossam, desde que
para ali transladei residência. E desde que há alguém que se atreve a penetrar
nos meandros dos mortos, muito gostaria de inteirar-me de algumas questões que
me perturbam, a respeito do assunto.
Depois de uma pausa de demorada reflexão, Girólamo
interrogou:
– Como a ceia nestes dias de verão é sempre recuada para
horas frescas e avançadas da noite, não poderíamos ir ao encontro desse
misterioso oráculo? Seriam somente duas horas, no máximo, entre ida e volta. Se
você aprova, poderemos chamar o palafreneiro e seguiremos de carruagem até lá.
Francesco surpreendeu-se com o estado de exaltação do amigo.
Os olhos estavam arregalados e o aspeto da face traduzia profunda desesperação.
Assentindo, foram dadas ordens para que se atrelassem animais à carruagem e
minutos depois os dois moços partiam, apressados, em direção da Porta Ovile.
Sopravam os ventos campesinos do entardecer, embora o sol
ainda estivesse modorrento por sobre o longínquo crepúsculo. Vencida a Porta, os animais galoparam por mais
alguns poucos quilómetros e atingiram a habitação do sensitivo.
Foram recebidos à porta pelo estranho hierofante, que se
trajava à grega antiga. De idade avançada e plácido olhar, a cabeleira basta e
as barbas crescidas, estas desciam durando-lhe o rosto dando-lhe a feição de
venerando vulto bíblico arrancado às páginas do passado. Delicado, o intérprete
dos Espíritos convidou os moços a entrarem em pequena câmara profusamente
decorada de caratéres astrológicos e com os signos do Zodíaco, ervas perfumadas
e turibulos com fumo odorífero. Assentou-se sobre um almofadão, em cima de um
tapete envelhecido, e solicitou aos jovens que se acercassem, descalçando-se e
sentando-se, também.
Após demorada concentração, em que as têmporas apareciam
dilatadas e suando fartamente, recompôs-se, solicitando a anuência de Francesco
para ficar a sós com Girólamo, no que foi atendido.
De imediato, falou ao moço intrigado e medrica:
– Vejo sombras
vingadoras que o ameaçam. Sua vida está em grave perigo. Ouço choros convulsos
de crianças indefesas que suas mãos assassinaram…
– Mentiroso! – trovejou o consulente, dominado de ira
singular.
– Você não me atemoriza nem me intimida. Estou acostumado às
ameaças dos que se encontram julgados ao remorso e dos que temem a verdade.
Você sabe que não são mentiras nem infâmias, quanto lhe digo. Vejo e ouço, como você mesmo tem ouvido,
as vozes clamando por justiça e suplicando punição contra o criminoso que lhes
roubou a vida… Por que, meu filho? Por que investiu contra a vida daqueles que
eram os filhos do seu benfeitor? Onde você colocou a Justiça Divina? Não sabe
que a vida do próximo é património sagrado da Divindade?...
Repentinamente, o ancião se tornou muito lívido e, com a
boca retorcida em rito cruel, enunciou com voz inesquecível, pelo tom de
sarcasmo e ameaça:
– Não escaparás à Justiça, bandido! Trouxe-te até aqui para
que me ouvisses em lucidez. Não poderás dizer que estás sonhando ou em delírio.
Ouvirás minha voz onde estejas, causticando-te o cérebro até despertar a tua
consciência nefanda. Sigo-te os passos desde a hora do crime, como a sombra
acompanha o corpo onde este se encontre. Não te permitirei respirar o ar da
paz, como não facultaste aos meus filhos e a Lúcia aspirarem o oxigénio da
sobrevivência. Usarei da mesma técnica de que utilizaste: impiedade e
segurança! Agora possuis o que um dia seria teu, por outro processo, e que a
tua precipitação roubou. Desgraçaste os outros, e doravante sentirás as mãos tingidas de sangue… do sangue das tuas vítimas, de Assunta, que te odeia tanto
quanto eu. Também ela aqui está.
Girólamo desejou evadir-se do local abafado. As ervas,
ardendo no incensório, e a fumaça, ondulante na peça quadrada, pareciam ao
criminoso, estupidificado, fantasmas dos a quem trucidara, que se
corporificavam. Tinha a sensação de enlouquecer.
Caído, em contrações dolorosas, o oráculo continuava a
falar, sôfrego, odiento:
– Sou o duque di
Bicci, homocida nefasto, que a morte libertou para a vida e a justiça. É tarde
para que voltes atrás. Já não podes recuar… Apareceu-me a tua tia e rogou-me
piedade para ti. Eu, que tanto a tenho amado, sofri-lhe a reprovação à minha
conduta. Por ela, recebi-te no meu lar, apesar de jamais ter por ti nutrido
compaixão ou simpatia; dei-te o meu amparo legal; tornei-te “filho” e,
peçonhento, voltas-te contra o colo que te amamentou… como poderia perdoar-te?
Nunca, nunca! Não te concederei o lenitivo da trégua, a fim de que as tuas
forças não se removam, nem se refaçam as tuas energias. Impedirei que sigas o
caminho que trilhas. Possuis tudo o que antes era meu de outrem; não
experimentarás, todavia, uma posse maior: a da paz! Ouvirás sempre minha voz,
até à hora em que te arrebatarei para cá,
tomando-te aos meus cuidados. Rolarão séculos de horror sobre nós dois. Nunca,
ouve-me: nunca terás o meu perdão. Desgraçado, infeliz criminoso! Recebe,
agora, o fruto ácido da tua rapina…
Uma gargalhada em espasmos doloridos ecoou na sala abafada.
O ancião estremeceu e silenciou, dominado por ignota inconsciência.
O moço, vencido em toda a pusilanimidade, queria chamar o
amigo, rogar socorro; não o conseguiu. Parecia chumbado ao solo, aparvalhado,
imóvel, com as têmporas dilatadas, a respiração descompassada, com suores
álgidos.
Aqueles minutos pareciam não ter fim. Marmóreo, o oráculo
jazia estendido sobre o tapete, respirando com dificuldade, arquejante…
/…
* Maremmas
toscana – impaludismo, febres…
VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO,
6 ACOSSAMENTO IRREVERSÍVEL (fragmento 4 de 5 texto mediúnico recebido
por DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem: L’âme de la forêt _1898,
pintura de Edgar
Maxence)