Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 2 de setembro de 2025

metapsíquica | e depois



~~~ Terceiro Caso ~~~


(A Crise da Morte)

Reproduzo um último caso antigo, que extrai do livro do Doutor Wolfe: Starling Facts in Modern Spiritualism (pág. 388)*. Jim Nolan, o Espírito-guia da célebre médium Sra. Hollis, que disse e demonstrou ter sido soldado durante a Guerra de Secessão da América e haver morrido de tifo num hospital militar, responde da seguinte maneira às perguntas de um experimentador:

P. — Que impressão tiveste à tua primeira entrada no mundo espiritual?

R. — Parecia-me que despertava de um sono, com um pouco de atordoamento a mais. Já não me sentia doente e isso espantava-me grandemente. Tinha uma vaga impressão de que alguma coisa estranha se passara, todavia, não sabia definir o quê. O meu corpo encontrava-se estendido numa cama de campanha e eu o via. Dizia para mim próprio: Que estranho fenómeno! Olhei à minha volta e, vi três dos meus camaradas mortos nas trincheiras diante de Vicksburg e que eu enterrara. No entanto, ali estavam na minha presença! Olhavam a rir. Então, um dos três me saudou e disse:

— Bom-dia, Jim; também és dos nossos?

— Sou dos vossos? Que queres dizer com isso?

— Mas... que te encontras aqui, connosco, no mundo dos Espíritos. Não te apercebeste disso? É um meio onde se está bem.

Estas palavras eram muito fortes para mim. Fui tomado de violenta emoção e exclamei:

— Meu Deus! Que dizes! Estou morto?

— Não; estás mais vivo do que nunca, Jim; porém encontras-te no mundo dos Espíritos. Para te convenceres, não tens mais do que atentar no teu corpo.

Com efeito, o meu corpo jazia, inanimado, diante de mim, sobre aquela tarimba. Como, pois, contestar o facto? Pouco depois, chegaram dois homens que colocaram o meu cadáver numa prancha e o transportaram para junto de um carro; nele o meteram, subiram e à boleia partiram. Acompanhei então o carro, que parou junto de um fosso, onde o meu cadáver foi descarregado e enterrado. Fora eu o único a assistir ao meu enterro...

P. — Quais as sensações que experimentaste na crise da morte?

R. — A que se experimenta quando o sono se apodera da gente, mas deixando que ainda se possa lembrar de alguma ideia que tenha tido antes do sono. A gente, porém, não se lembra do momento exacto em que foi tomado pelo sono. É o que acontece por ocasião da morte. Mas, um pouco antes da crise fatal, a minha mentalidade se tornara muito activa; lembrei-me subitamente de todos os acontecimentos da minha vida; vi e ouvi tudo o que fizera, dissera, pensara, todas as coisas a que estivera associado. Lembrei-me até dos jogos e brincadeiras do campo militar; gozei-os, como quando deles participei.

P. — Conta-nos as tuas primeiras impressões no mundo espiritual.

R. — Ia dizer-vos que os meus bons amigos soldados já não me abandonaram, desde logo que desencarnei (morri) até ao momento em que fiz a minha entrada no mundo espiritual; lá, tinha eu os avós, os irmãos e as irmãs, que, entretanto, não me vieram receber quando desencarnei. Ao entrar no mundo espiritual, parecia-me caminhar sobre um terreno sólido e vi que ao meu encontro vinha uma velhinha, que me disse assim: — Jim, então vieste para onde estávamos?

Olhei-a atentamente e exclamei: — Ó, avozinha, és tu? — Sou eu mesma, meu querido Jim. Vem comigo.

E me levou para longe dali, para a sua morada. Uma vez lá, disse-me ser necessário que eu repousasse e dormisse. Deitei-me e dormi longamente...

P. — A morada de que falas tinha o aspecto de uma casa?

R. — Certamente. No mundo dos Espíritos, há a força do pensamento, por meio do qual se podem criar todas as comodidades desejáveis...

Esta última informação que, no caso de que se trata, remonta a setenta anos atrás, não é apenas um dos detalhes fundamentais a cujo respeito todos os Espíritos estão de acordo; é também a chave de abóbada que permite explicar, resolver, justificar todas as informações e descrições aparentemente absurdas, incríveis, ridículas, dadas pelos Espíritos que se comunicam, a propósito da vida espiritual. Em outras obras, já por mim publicadas, tive que me deter longamente sobre este tema muito importante; limitar-me-ei desta vez, pois, a nele tocar, na medida do estritamente necessário.

Esta grande verdade, que nos foi comunicada pelos Espíritos, permite resolvamos uma imensidade de questões teóricas, obscuras, determinadas pelas informações que hão dado as personalidades mediúnicas, relativamente ao meio espiritual, às formas que os Espíritos revestem, às modalidades da existência deles; todas as informações que constituem uma reprodução exacta, ainda que espiritualizada, do meio terrestre, da humanidade, das modalidades da existência neste mundo. Essa grande verdade, que resolve todos os enigmas teóricos em questão e que se funda no poder criador do pensamento no meio espiritual, é confirmada de modo impressionante por factos que se desenrolam no meio terrestre. Trata-se, com efeito, do seguinte: o pensamento e a vontade, mesmo na existência encarnada (na Terra), são susceptíveis de criar e de objectivar as formas concretas das coisas pensadas e desejadas, do mesmo modo que este fenómeno se realiza no meio espiritual, embora no meio terrestre semelhante criação não se dê senão por intermédio de alguns sensitivos especiais (médiuns). Aludo aos fenómenos de fotografia do pensamento ou de ideoplastia, fenómenos maravilhosos, aos quais consagrei recentemente um longo estudo, em que demonstrava, citando factos, a realidade incontestável e o seu desenvolvimento prodigioso.

Vemos, pois, que, já no mundo dos vivos, o pensamento e a vontade manifestam o poder de se objectivarem e concretizarem numa forma mais ou menos substancial e permanente, ainda que, na existência encarnada, isso se produza sem objectivo e unicamente com o concurso de sensitivos (médiuns) que se encontrem em condições fisiológicas mais ou menos anormais, correspondendo a estados mais ou menos adiantados de desencarnação parcial do Espírito.

Sendo assim, dever-se-ia logicamente concluir daí que, quando a desencarnação do Espírito já não estiver apenas em início e não for transitória, mas total e definitiva (na morte), só então as faculdades de que se trata chegarão a manifestar-se no seu completo desdobramento e, desta vez, normal, prática e utilmente. Ora, é precisamente o que afirmam as personalidades mediúnicas que se comunicam. Cumpre, portanto, se reconheça que as revelações transcendentais, concernentes às modalidades da existência espiritual, confirmam a posterior o que se devera logicamente inferir a priori, em consequência da descoberta de que o pensamento e a vontade são forças que possuem o poder maravilhoso de modelar e organizar, faculdades que, todavia, não se manifestam, senão de maneira esporádica e sem objectivo, no meio terrestre.

Duas palavras ainda acerca de outra circunstância, a de personalidades mediúnicas afirmarem que essas condições de existência espiritual são transitórias e se entendem exclusivamente com a esfera mais próxima do mundo terrestre, isto é, com a que se destina aos Espíritos recém-chegados. Esta circunstância não serve só para justificar inteiramente aquelas condições de existência; prova também a razão de ser providencial de tais condições.

Imagine-se, com efeito, que sensação de desolação e de desorientação não experimentariam a maior parte dos mortos se, logo depois do momento da morte, houvessem de ver-se bruscamente despojados da forma humana e lançados num meio espiritual essencialmente diverso daquele onde se lhes formaram as individualidades, a que ainda se encontram ligados por uma delicada trama de sentimentos afectivos, de paixões, de aspirações, que se não poderiam romper de súbito, sem os levar ao desespero e, onde, sobretudo, se encontra o meio doméstico que lhes é próprio, constituído por um mundo de satisfações temporais e espirituais, de todas as espécies, que contribuem cumulativamente para criar o que se chama a alegria de viver. Se imaginarmos tudo isso, teremos de reconhecer racional e providencialmente que um ciclo de existência preparatória passe entre a existência encarnada e a de Espírito puro, de maneira a conciliar a natureza, por demais terrestre, do Espírito desencarnado, com a natureza, por demais transcendental, da existência espiritual propriamente dita.

O poder criador do pensamento seria de molde a obviar maravilhosamente a este inconveniente; o Espírito, pensando numa forma humana, encontrar-se-ia de novo em forma humana; pensando em estar vestido, encontrar-se-ia coberto das vestes que, sendo tão etéreas como o seu próprio corpo, lhe pareceriam tão substanciais como as roupas terrenas. É assim que o Espírito encontraria novamente, no mundo espiritual, um meio e uma morada correspondentes aos seus hábitos terrestres, morada que lhe preparariam os seus familiares, tornados antes dele á existência espiritual. Como se há podido ver no caso que acabo de referir, é a avó do defunto que estaria encarregue de conduzir o neto à morada que o havia de receber. A este respeito, deve notar-se que, quando o Espírito Jim Nolan narra ter visto que uma velhinha vinha ao seu encontro, fora preciso subentender-se que a avó revestira temporariamente a sua antiga forma terrena, para ser reconhecida.

Deter-me-ei aí, para me não estender demais nos comentários deste facto; os pontos obscuros, de importância secundária, que ficam sem solução nas considerações precedentes, serão sucessivamente assinalados e explicados, à medida que, nos casos que ainda vão ser citados, se oferecer oportunidade.

Com relação ao incidente da visão panorâmica que o Espírito Jim Nolan relata, observarei que, desta vez, o fenómeno se desdobrou sob a forma de recapitulação de lembranças, mais do que sob a de uma visão panorâmica propriamente dita. Isto, naturalmente, em nada muda os termos do problema psicológico a ser resolvido. Daí apenas resultaria que o morto, em vez de pertencer ao que se chama em linguagem psicológica ao tipo visual, pertencia ao tipo especialmente mental-auditivo.

/...

Ernesto Bozzano (1862-1943) (i)A Crise da Morte, Publicação original (1930), "La Crisi Della Morte"; Terceiro Caso. 3º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Puro aire, uma pintura de Josefina Robirosa)

sábado, 12 de julho de 2025

as vidas sucessivas | os elementos ~


Apresentação (por Hermínio C. Miranda)

  Este livro é um clássico, uma referência, na longa busca de melhor entendimento do ser humano e das leis que regem a sua interacção com as pessoas, os fenómenos e eventos que se desdobram à sua volta, mas principalmente “dentro” daquilo que nos acostumamos a chamar de mente. Em suma, a sua interacção com a vida, nisso incluído, obviamente, o universo em que vive.

  Foi a partir dele, ainda na década de 60 do século passado, que encetei os estudos que me levariam à elaboração de A Memória e o Tempo, na segunda metade da década de 70 e publicado no início dos anos 80.

  Garimpei o original francês que deu origem a esta tradução, num sebo, como de tantas outras vezes, em momento feliz, por se tratar de edição raríssima de 1911.

  Logo na primeira leitura, senti considerável impacto. Quanto mais o lia, relia e aprofundava a meditação sobre o seu conteúdo, mais impressionado ficava. Agradava-me a abordagem sensata e inteligente do autor, emoldurada por inesperada humildade intelectual de um cientista daquele porte.

  De Rochas se punha como atento e curioso pesquisador, disposto a aprender com os factos, em vez de tentar enquadrá-los em rígido contexto de modelos preconcebidos, atitude comum àquele tempo, como ainda hoje, de parte dos que não se sentem encorajados e nem preparados para mudar e, por conseguinte, a progredir galgando patamares mais elevados de conhecimento.

  A sua postura era, pois, sem preconceitos e atenta, mas aberta.

  Outra coisa: o ilustrado coronel, engenheiro e conde não pretendeu considerar as suas reflexões como última palavra a ser religiosamente acatada pelos que o lessem. Ao contrário, atribuiu ao seu trabalho a modesta condição de um conjunto de documentos preliminares para estudo da questão, ao indicar a necessidade de pesquisas mais amplas e profundas que dessem continuidade à sua tarefa.

  O seu livro, contudo, é muito mais que uma dissertação primária.

  De Rochas relata as suas experiências, oferece conclusões sobre o que testemunhou e levanta aspectos inusitados da mente para os quais ainda não dispunha de explicações que satisfizessem os seus critérios pessoais, ainda que apontando em determinada direcção. Por outras palavras, não dogmatiza.

  Ademais, ao empreender os seus estudos entre o final do século 19 e o início do século 20, não partiu de premissas propostas pelo espiritismo, cuja doutrina se encontrava, àquela época, bastante difundida ali mesmo, na França.

  De início, estranhei esse procedimento. Hoje entendo-o como opção válida e medida de prudência destinada a preservar a isenção necessária ao trabalho em que se empenhava. Se ele partisse de conceitos doutrinários espíritas, caracterizando-se como militante do movimento que se expandia, os seus estudos ficariam certamente expostos à rejeição liminar por parte das correntes intelectuais da época, dominadas por pensadores de formação nitidamente materialista ou positivista – como ocorreu e ocorreria a tantos outros mais tarde.

  Em nota de rodapé, ele explica que não cuidava especificamente de espiritismo, por entender que disso se ocupavam outros estudiosos. Sem ignorar ou negar os postulados espíritas – alude com respeito e admiração à obra de Léon Denis, por exemplo –, limitava-se a aspectos científicos que, directa ou indirectamente acabaram resultando em valioso suporte à inteligente doutrina dos espíritos.

  Realmente, ao estampar na reencarnação a marca autenticadora da ciência, o seu estudo, mesmo preliminar, como ele o entendia, legitimava a realidade espiritual, tal como figura nos livros básicos de Allan Kardec.

  Tenho insistido reiteradamente nos meus escritos em que essa realidade, fundamental ao entendimento da vida, é insusceptível de esquartejamento. Estamos aqui diante de um bloco inteiriço de conceitos solidamente colados uns nos outros.

  Em meu entender, a reencarnação é o cimento que mantém inseparáveis tais componentes. E que, demonstrada – como está há muito – a legitimidade da reencarnação, os demais aspectos exigem automática integração no modelo em que não se admite ignorar, no mínimo, a preexistência e a sobrevivência do ser à morte corporal.

  Por outro lado, de Rochas pôs em evidência relevantes aspectos colaterais, como a lei de causa e efeito e, portanto, o mecanismo da evolução do ser rumo à perfeição e, ligado a esse conceito, sublinhando-o de modo subtil, mas dramático, a verdade subjacente de um claro componente ético necessário ao funcionamento daquele mecanismo. Deixou, ainda, informações do mesmo nível de importância acerca das faculdades mediúnicas e, portanto, do intercâmbio entre “vivos” e “mortos”. Nota-se, no desenrolar das suas experiências, a presença de entidades desencarnadas, bem como a evidência de um “espaço” cósmico invisível aos nossos sentidos habituais, “onde” vivem, sofrem, amam, odeiam, aprendem e se reciclam os seres espirituais entre uma vida e a outra na Terra.

  Disto se conclui que, a despeito de não se caracterizar como texto doutrinário espírita, o seu valioso trabalho oferece firme suporte aos ensinamentos e conteúdos dos livros básicos da Codificação.

  Além disso, de Rochas deixou significativa contribuição ao estudo da própria memória, na sua interacção com o tempo. Conceitos como o de inconsciente – que começavam a emergir na época –, encontram nos seus trabalhos, tanto quanto na doutrina dos espíritos, encaixes precisos e espaço próprios, como procurei demonstrar em Alquimia da Mente.

  Que eu saiba, foi ele quem primeiro colocou de maneira transparente a possibilidade de explorações no futuro, tanto quanto no passado do ser humano. Aparentemente inconclusivas, as suas “progressões” (mergulho na memória futura) deixaram vestígios importantes de uma realidade que somente cerca de um século mais tarde seria retomada para mais profundas explorações, como se pode conferir nos escritos da doutora Helen Wambach e de outros estudiosos como Chet Snow.

  Por tudo isso, os textos de de Rochas – e este livro não é o único a solicitar a nossa atenção – merecem atenção, respeito e admiração.

  Parabéns à Lachâtre por resgatar mais este importante depoimento científico de um injusto e demorado esquecimento.
/...

Albertde RochasAs Vidas Sucessivas, Apresentação por Hermínio C. Miranda / Outubro de 2002, 4º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Albert de Rochas d'Aiglun (1837-1914), engenheiro militar francês, historiador da ciência, pesquisador de fenómenos espíritas, escritor, tradutor e administrador da Escola Politécnica de Paris) 

quinta-feira, 19 de junho de 2025

literatura do além-túmulo ~


Capítulo II

  Passo a analisar um segundo caso do mesmo género, o qual ocorreu em Itália, há vários anos. É um caso que não pode ser chamado de transição como o anterior, especialmente porque nele não se encontra a incerteza teórica proveniente do facto de não ter a personalidade comunicante se desvendado. Neste outro episódio, ao contrário, as personalidades mediúnicas declaram, explicitamente, quem são. Infelizmente, do ponto de vista demonstrativo, as modalidades nas quais se produzem aqui os ditados mediúnicos escasseiam em tal medida que este facto suscita perplexidades muito mais fortes que as do caso precedente. – O prof. Francesco Scaramuzza era director da Academia de Belas Artes de Parma, onde ensinava pintura, arte na qual atingira notável excelência.

  Faltava-lhe, todavia, cultura literária, dado o facto de ter deixado de frequentar a escola desde a idade dos 14 anos a fim de garantir a sua subsistência. Durante a mocidade, ocupou-se, por muito tempo, de experiências de magnetismo animal, que praticara com sucesso. Tornou-se espírita quando já atingira uma idade bastante avançada e, aos 64 anos, as faculdades de médium escrevente nele se manifestaram, mas durante apenas 3 anos (1867-1869). Durante esse curto espaço de tempo, escreveu, com vertiginosa rapidez, enorme quantidade de obras poéticas de todas as espécies.

  Entre elas, relevante se faz assinalar, um volumoso poema em oitavas (29 cantos, 3.000 oitavas) intitulado Poema Sacro, assim como duas comédias em verso, das quais o espírito de Carlo Goldoni seria o autor. Essas comédias são vivas, brilhantes, muito bem concebidas e finamente urdidas, com todo o sabor da arte goldoniana.

  Outro tanto, porém, não se poderia dizer do Poema Sacroque foi ditado pelo espírito do grande poeta Ludovico Ariosto. Trata-se, nesse poema, de assuntos muito elevados, tais como a natureza de Deus, a génese do universo, a criação dos sóis e dos mundos, a origem da vida cósmica, os fins da vida, os destinos do espírito individualizado graças à passagem pela vida na carne. Encontram-se, aqui e acolá, imagens magníficas, compreensíveis, grandiosas, mas quase sempre expressas em linguagem pobre e em versos fracos e vulgares. Os conceitos cosmogónicos que aí se encontram parecem racionais e aceitáveis; eles se elevam, por vezes, a uma real altura filosófica, por exemplo, quando tratam da imanência de Deus no universo, revelando-se aos mortais sob a forma de movimento e quando se analisam o tempo e o espaço, “atributos de Deus”, pois que eles são infinitos como Deus o é, o que, passando de uma dedução à outra, leva a personalidade mediúnica comunicante a tender para uma concepção idêntica à hipótese do “Éter-Deus”. Experimenta-se quase um sentimento de tristeza, vendo-se que pensamentos filosoficamente sublimes são expressos em versos tão banais e sob uma forma tão vulgar. Entretanto os versos são justos e fáceis, as rimas quase sempre espontâneas, o que revela uma familiaridade indiscutível com a técnica do verso por parte da entidade que se comunicava. Esta se lastima, muitas vezes, de que o seu médium revista as ideias que lhe transmite sob uma forma poética descuidada, observando, porém, que não o pode impedir. É preciso reconhecer que existe um fundo de verdade nestas afirmativas da personalidade em questão, pois que elas concordam com os conhecimentos que se possuem, actualmente, sobre o assunto, graças a experiências de transmissão telepática do pensamento tendentes a demonstrar que o pensamento só pertence à mentalidade do agente, ao passo que a forma com a qual ele é revestido pertence à elaboração subconsciente do percipiente. É então necessário deduzir daí que, se, como acontece neste caso, o médium é um homem desprovido de cultura literária, ele só poderia expressar de forma empobrecida as ideias que lhe seriam transmitidas, telepaticamente, pela personalidade mediúnica de quem provém a comunicação.

  É o que se pode invocar, em favor da origem estranha ao médium, desse Poema SacroSe ele nos surpreende, isto se deve à elevação filosófica de algumas de suas partes; porém, com relação à identificação pessoal do suposto espírito que se comunicava, é preciso reconhecer que aí nada se encontra que seja de molde a reforçar, directamente, a presunção de que possa, efectivamente, tratar-se de Ariosto, salvo a beleza de algumas imagens, ainda que estejam constantemente molestadas pela vulgaridade da forma. Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer, não menos francamente, que, se se quer tudo atribuir às faculdades de elucubração artística inerentes à subconsciência do médium, fica o problema bastante obscuro e embaraçoso.

  De facto, o médium não só não tinha cultura literária, como nada conhecia de ciência e filosofia. Donde brotaria, então, a inspiração grandiosa de certas partes de seu sistema cosmogónico? Forçoso se faz não esquecer o facto surpreendente de o médium ter, em três anos apenas, além do Poema Sacro, em 29 cantos e 3.000 oitavas – um volume de 915 páginas –, escrito duas comédias em verso atribuídas a Carlo Goldoni, treze longos contos, igualmente em versos, dois cantos em estâncias de três versos, um melodrama, uma tragédia, cinco poesias cómicas assinadas pelo seu falecido tio, que escrevera, efectivamente, versos dessa espécie durante a sua vida, e, enfim, um grosso volume de poesias líricas. Trata-se de uma produção literária colossal, sempre fraca do ponto de vista da forma, porém muitas vezes boa, algumas vezes mesmo excelente, do ponto de vista da substância, imagens e profundeza de pensamento filosófico.

  De qualquer forma, concordo plenamente que não é de se parar, ulteriormente, na análise da produção mediúnica de Scaramuzza, embora não apresente dados suficientes para dela tirar deduções mais ou menos legítimas em favor de uma ou de outra das hipóteses explicativas antagónicas, que dividem o campo da metapsíquica.

  Provavelmente, nem uma nem a outra das hipóteses em questão poderia bastar para explicar essa produção literária, se a considerarmos isoladamente. Seríamos, então, levados a concluir que, nesses casos, as interferências subconscientes poderiam alternar-se, de maneira inexplicável, como irrupções fugazes de inspiração supranormal, cuja natureza ainda não está definida.

/...

Ernesto Bozzano, Literatura do Além-túmulo  Capítulo II, 3º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Les Fleurs du Lac | 1900, tempera no painel de Edgard Maxence)

terça-feira, 13 de maio de 2025

Da sombra do dogma à luz da razão ~


~ Uranografia Geral (*) 
O espaço e o tempo ~

| Galileu, Espírito
(Études Uranographiques) (XII)

A vida universal ~ 🌈

   Esta imortalidade das almas, de que o sistema do mundo físico constitui a base, pareceu imaginária aos olhos de certos pensadores de sobreaviso; qualificaram-no ironicamente de imortalidade viajante e não perceberam que só ela era verdadeira frente ao espectáculo da Criação. No entanto, é fácil fazer entender toda a sua grandeza, diria quase toda a sua perfeição.

   Que as obras de Deus sejam criadas pelo pensamento e pela inteligência; que os mundos sejam a residência dos seres que os contemplam e que descobrem sob o seu véu o poder e a sabedoria do que os formou, foi questão que deixou de ser o poder duvidosa para nós; mas se as almas que os povoam são solidárias, é o que importa saber.

   A inteligência humana, com efeito, tem dificuldade em reconhecer esses globos radiosos que cintilam no espaço como simples massas de matéria inerte e sem vida; tem dificuldade em imaginar que existem, nessas regiões longínquas, magníficos crepúsculos e noites esplêndidas, sóis fecundos e dias repletos de luz, vales e montanhas onde as múltiplas criações da natureza desenvolveram toda a sua pompa luxuriante; tem dificuldade em imaginar, digo eu, que o espectáculo divino, onde a alma se pode embeber como se da sua própria vida se tratasse, esteja despojado de existência e privado de qualquer ser com peso que o pudesse contemplar.

   Mas a esta ideia eminentemente justa da Criação é preciso acrescentar a da humanidade solidária e é nisso que consiste o mistério da eternidade futura.

   Uma mesma família humana foi criada na universalidade dos mundos e a esses mundos foram dados os elos de uma fraternidade ainda não apreciada por vós. Se estes astros que se harmonizam nos seus vastos sistemas são habitados por inteligências, não é de forma nenhuma por seres desconhecidos uns dos outros, mas sim por seres marcados na fronte pelo mesmo destino, que têm de se encontrar momentaneamente consoante as suas funções na vida e reencontrar-se segundo as suas simpatias mútuas; é a grande família dos Espíritos que povoam as terras celestes; é o grande esplendor do Espírito divino que abraça a vastidão dos céus e que permanece como tipo primitivo e final da perfeição espiritual.

   Por que estranha aberração se julgou ser preciso recusar à imortalidade as vastas regiões do éter, quando a encerravam num limite inadmissível e numa dualidade absoluta? O verdadeiro sistema do mundo deveria então anteceder a verdadeira doutrina dogmática e a ciência a teologia? Desviar-se-ia esta enquanto a sua base assentasse sobre a metafísica? A resposta está dada e mostra-nos que a nova filosofia se sentará triunfante sobre as ruínas da antiga, porque a sua base se terá elevado vitoriosa sobre erros antigos.

/…
(*) Este capítulo foi textualmente extraído de uma série de comunicações ditadas à Sociedade Espírita de Paris, em 1862 e 1863, sob o título de Études Uranographiques e assinado, Galileu; médium M. C. F. (N. do A.)


ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo VI, Uranografia Geral, O espaço e o tempo – A vida universal (de 53 a 57), 34º fragmento desta obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites).

domingo, 6 de abril de 2025

o problema do | ser


(Quem sou... o que faço aqui... de onde vim... para onde vou...)

Estados vibratórios da Alma – A memória

(por Léon Denis)

A vida é uma vibração imensa que enche o universo e cujo foco está em Deus. Cada alma, centelha destacada do Foco Divino, se torna, por sua vez, um foco de vibrações que hão de variar, aumentar de amplitude e intensidade, consoante o grau de elevação do ser. Esse facto pode ser verificado experimentalmente. (ii)

Toda a alma tem, pois, a sua vibração particular e diferente. O seu movimento próprio, o seu ritmo, é a representação exacta do seu poder dinâmico, do seu valor intelectual, da sua elevação moral.

Toda a beleza, toda a grandeza do universo vivo se resume na lei das vibrações harmónicas. As almas que vibram uníssonas reconhecem-se e chamam-se através do espaço. Daí as atracções, as simpatias, a amizade, o amor! Os artistas, os sensitivos, os seres delicadamente harmonizados conhecem essa lei e lhe sentem os efeitos. A alma superior é uma vibração na posse de todas as suas harmonias.

A entidade psíquica penetra com as suas vibrações todo o seu organismo fluídico, o perispírito, que é a sua forma e imagem, a reprodução exacta da sua harmonia pessoal e da sua luz; mas chegada a encarnação (i) e essas vibrações vão reduzir-se, amortecer-se debaixo do invólucro carnal (corpo). O foco interior já não poderá projectar para o exterior senão uma radiação enfraquecida, intermitente. Entretanto, no sono, no sonambulismo, no êxtase, desde que à alma se abra uma saída através do invólucro de matéria que a oprime e agrilhoa, restabelece-se imediatamente a corrente vibratória e o foco torna a adquirir toda a sua actividade. O Espírito encontra-se novamente nos seus estados anteriores de poder e liberdade. Tudo o que nele dormia desperta. As suas numerosas vidas reconstituem-se, não só com os tesouros do seu pensamento, com as reminiscências e aquisições, mas também com todas as sensações, alegrias e dores registadas no seu organismo fluídico. É essa a razão pela qual, no transe, a alma, vibrando as recordações do passado, afirma as suas existências anteriores e reata a cadeia misteriosa das suas transmigrações.

As menores particularidades da nossa vida registam-se em nós e deixam traços indeléveis. Pensamentos, desejos, paixões, actos bons ou maus, tudo se fixa, tudo se grava em nós. Durante o curso normal da vida, essas recordações acumulam-se em camadas sucessivas e as mais recentes acabam por apagar, pelo menos aparentemente, as mais antigas. Parece que esquecemos aqueles mil pormenores da nossa existência dissipada. Basta, porém, evocar, nas experiências hipnóticas (i), os tempos passados e tornar, pela vontade, a colocar o sujet numa época anterior da sua vida, na mocidade ou no estado de infância, para que essas recordações reapareçam em massa. O sujet revive o seu passado, não só com o estado de alma e associação de ideias que lhe eram peculiares nessa época, ideias às vezes bem diversas das que ele professa actualmente, com os seus gostos, hábitos, linguagem, mas também reconstituindo automaticamente toda a série dos fenómenos físicos contemporâneos daquela época. Leva-nos isso a reconhecer que há íntima correlação entre a individualidade psíquica e o estado orgânico.

Cada estado mental está associado a um estado fisiológico. A evocação de um na memória dos sujets traz imediatamente a reaparição do outro. (iii)

Dadas as flutuações constantes e a renovação integral do corpo físico em alguns anos, esse fenómeno seria incompreensível sem a intervenção do perispírito, que guarda em si, gravadas na sua substância, todas as impressões de outrora. É ele que fornece à alma a soma total dos seus estados conscientes, mesmo depois da destruição da memória cerebral. Assim o demonstram os Espíritos nas suas comunicações, visto que conservam no espaço até as menores recordações da sua existência terrestre.

Esse registo automático parece efectuar-se em forma de agrupamento, ou zonas, dentro de nós, que correspondem a outros tantos períodos da nossa vida, de maneira que, se a vontade, por meio da auto-sugestão ou da sugestão estranha, o que é a mesma coisa, pois que, como vimos, a sugestão, para ser eficaz, deve ser aceite pelo paciente e transformar-se em auto-sugestão, se a vontade, dizemos, faz reviver uma lembrança pertencente a um período qualquer do nosso passado, todos os factos de consciência que têm ligação com esse mesmo período se desenrolam imediatamente numa concatenação metódica. Gabriel Delanne comparou esses estados vibratórios com as camadas concêntricas observadas nas secções de uma árvore e que permitem se lhe calcule o número de anos.

Isso tornaria compreensíveis as variações da personalidade de que falamos. Para observadores superficiais, esses fenómenos se explicam pela dissociação da consciência. Estudados de perto e analisados, representam, pelo contrário, aspectos de uma consciência única, correspondentes a outras tantas fases de uma mesma existência. Esses aspectos revelam-se desde que o sono é bastante profundo e o desprendimento perispiritual (i) suficiente. Se se tem podido acreditar em mudanças de personalidade, é porque os estados transitórios, intermediários, faltam ou se apagam.

O desprendimento, dissemos atrás, é facilitado pela acção magnética. Os passes feitos num sensitivo relaxam pouco a pouco e desatam os laços que unem o Espírito ao corpo. A alma e a sua forma etérea saem da ganga material e essa saída constitui o fenómeno do sono. Quanto mais profunda for a hipnose, tanto mais a alma se separa e se afasta, recobrando a plenitude das suas vibrações. A vida activa concentra-se no perispírito, enquanto que a vida física fica suspensa.

A sugestão aumenta também o ritmo vibratório da alma. Cada ideia contém o que os psicólogos chamam a tendência para a acção e essa tendência transforma-se em acto pela sugestão. Esta, com efeito, não é mais do que um modo da vontade. Levada à mais alta intensidade, torna-se força motriz, alavanca que levanta e põe em movimento as potências vitais adormecidas, os sentidos psíquicos e as faculdades transcendentais.

Vê-se então produzirem-se os fenómenos da clarividência, da lucidez, do despertar da memória. Para essas manifestações se tornarem possíveis, o perispírito deve ser previamente impressionado por um abalo vibratório determinado pela sugestão. Esse abalo, acelerando o movimento rítmico, tem por efeito restabelecer a relação entre a consciência cerebral e a consciência profunda, relação que está interrompida no estado normal durante a vida física. Então as imagens e as reminiscências armazenadas no perispírito podem reanimar-se e tornar-se novamente conscientes; mas, ao despertar, a relação cessa logo, o véu torna a cair, as recordações longínquas apagam-se pouco a pouco e voltam a entrar na penumbra.

A sugestão é, pois, o processo que se deve empregar, de preferência, nessas experiências. Para reconduzir os sujets a uma época determinada do seu passado são eles adormecidos por meio de passes longitudinais, depois se lhes sugere que têm tal ou qual idade. Assim, se faz que remontem a todos os períodos da sua existência; podem obter-se fac-similes da sua letra, que variam segundo as épocas e são sempre concordantes, quando se trata das mesmas épocas evocadas no curso de diferentes sessões. Por meio de passes transversais faz-se com que voltem depois ao ponto actual, tornando a passar pelas mesmas fases.

Pode também – e nós assim o temos feito – sugerir-se ao sujet uma data determinada do seu passado, ainda o mais remoto, e fazê-lo renascer nele. Se o sujet for muito sensível, vê-se então desenrolarem-se cenas de cativante interesse com pormenores sobre o meio evocado e as personagens que nele vivem, pormenores que são às vezes susceptíveis de verificação. “Tem-se podido reconhecer – diz o Coronel de Rochas – que as recordações assim avivadas eram exactas e que os sujets tomavam sucessivamente as personalidades correspondentes à sua idade.” (iv)

Continuamos a tratar desses fenómenos, cuja análise projecta uma luz viva sobre o mistério do ser. Todos os aspectos variados da memória, a sua extinção na vida normal, o seu despertar no transe e na exteriorização, tudo se explica pela diferença dos movimentos vibratórios que ligam a alma e o seu corpo psíquico ao cérebro material. A cada mudança de estado as vibrações variam de intensidade, fazendo-se mais rápidas, à medida que a alma se desprende do corpo. As sensações são registadas no estado normal, com um mínimo de força e duração; mas a memória total subsiste no fundo do ser. Por pouco que os laços materiais se afrouxem e a alma seja restituída a si mesma, ela torna a encontrar, com o seu estado vibratório superior, a consciência de todos os aspectos da sua vida, de todas as formas físicas ou psíquicas da sua existência integral. É, como vimos, o que se pode verificar e reproduzir artificialmente no estado hipnótico. Para bem nos orientarmos no labirinto desses fenómenos é preciso não esquecer que esse estado comporta muitos graus. A cada um desses graus se vincula uma das formas da consciência e da personalidade; a cada fase do sono corresponde um estado particular da memória; o sono mais profundo faz surgir a memória mais extensa. Esta restringe-se cada vez mais, à medida que a alma reintegra o seu invólucro (corpo). Ao estado de vigília, ou acordado, corresponde a memória mais restrita, mais pobre.

O fenómeno da reconstituição artificial do passado faz-nos compreender o que se passa depois da morte, quando a alma, livre do corpo terrestre, torna a encontrar-se na presença de sua memória aumentada, memória-consciência, memória implacável que conserva a impressão de todas as suas faltas, tornando-se o seu juiz e, às vezes, o seu algoz; mas, ao mesmo tempo, o “eu” fragmentado em camadas distintas, durante a vida deste mundo, reconstitui-se na sua síntese superior e na sua magnífica unidade. Toda a experiência adquirida no decorrer dos séculos, todas as riquezas espirituais, fruto da evolução, muitas vezes latentes ou, pelo menos, amortecidas, apoucadas nesta existência, reaparecem no seu brilho e frescura para servir de base a novas aquisições. Nada se perde. Às camadas profundas do ser, juntam-se os desfalecimentos e as quedas, proclamam também os lentos e penosos esforços acumulados no decorrer das idades para constituírem essa personalidade, que irá sempre crescendo, sempre mais rica e mais bela, na feliz expansão das suas faculdades adquiridas, as suas qualidades e as suas virtudes.
/…

(ii) Os doutores Baraduc (i) e Joire construíram aparelhos registadores que permitem medir a força radiante que se escapa de cada pessoa humana e varia segundo o estado psíquico do sujet.
(iii) Essa lei é reconhecida em psicologia com o nome de Paralelismo psicofísico. Wundt (i), nas suas Léçons sur l'Ame (2ª edição, Leipzig, 1892), já dizia: “A cada facto psíquico corresponde um facto físico qualquer.” As experiências dos próprios materialistas fazem sobressair a evidência dessa lei. É assim, por exemplo, que M. Pierre Janet (i), quando faz voltar o seu sujet Rosa, a dois anos antes, no curso da sua vida actual, vê reproduzirem-se nela todos os sintomas do estado de gravidez em que se encontrava naquela época. (P. Janet, professor de psicologia na Sorbonne, L'Automatisme Psychologique, pág. 160.) Ver também os casos assinalados pelos doutores Bourru e Burot, Changements de la Personnalité, pág. 152; pelo Dr. Sollier, Des Hallucinations Autoscopiques (Bulletin de l'Institut Psychique, 1902, págs. 30 e segs.) e os relatados pelo Dr. Pitre, decano da Faculdade de Medicina de Bordéus, no seu livro Le Somnambulisme et l'Hystérie.
(iv) Annales des Sciences Psychiques, Julho de 1905, página 350.


Léon Denis, O Problema do Ser, do Destino e da Dor, Primeira Parte O Problema do Ser, VIII – Estados vibratórios da Alma – A memória, 9º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Sin título (detalhe), de uma pintura atribuída a Josefina Robirosa)

quinta-feira, 20 de março de 2025

O Homem e a Sociedade ~


Capítulo IX

A Imagem do Homem no Fenómeno Metapsíquico ~

  Na ocorrência matapsíquica chamada materialização existe algo mais do que um fenómeno: temos a imagem do homem e a face espiritual de sua individualidade. Não esqueçamos que se esse fenómeno não tivesse uma raiz que mergulha no eterno, não revelaria, como sempre o faz, uma imagem e uma face espiritual. Seria constituído apenas de representações amorfas ou na formação de figuras caprichosas, alheias à representação humana. Entretanto, no fenómeno metapsíquico, manifesta-se sempre a imagem do homem, tão real e viva, que fala, sente e ama.

  Que demiurgo caprichoso se compraz em manifestar-se nesse fenómeno, não através de loucas fantasmagorias, mas revelando-nos um homem vivo, com a sua própria imagem e natureza? A esta pergunta podemos responder que: se na materialização metapsíquica se apresenta a imagem humana, isso nos fornece a razão para repelirmos as doutrinas do materialismo e estabelecermos os lineamentos de uma biologia da alma, de uma nova concepção filosófica sobre o destino do Ser e da existência.

  O fenómeno de materialização metapsíquica representa um chamado ao sentido metafísico dos novos tempos. Omitir essa manifestação seria retardar o progresso da antropologia, de maneira que os interesses de sistemas ou de seitas não deveriam prevalecer frente a um fenómeno que tão fielmente nos revela a imagem do homem e de seu espírito. Entretanto, essa espécie de traição ao homem espiritual foi consumada pelos próprios “estudiosos” da metapsíquica, temerosos de serem considerados espíritas.

  Não obstante, fenomenologia metapsíquica exige do filósofo uma nova definição do homem, pois a sua inegável realidade nos permite afirmar que o ser humano é algo mais que um facto fisiológico. Para a filosofia espírita e o realismo metapsíquico, o homem é um dínamopsiquismo que ultrapassa a representação física do organismo, ainda que a idiossincrasia universitária, de carácter acomodatício, prefira uma metapsíquica fisiológica, como a de René Sudre. (i)

  Mas não é para isso que o fenómeno metapsíquico nos mostra o seu mundo de aparições e desaparições, esse conjunto de factos que estão revelando, com toda a clareza, que o Espírito ultrapassa os centros nervosos e que possui um mundo espiritual independente das circunvoluções cerebrais.

  Onde a metapsíquica se mostra grandiosa e comovedora é precisamente quando nos revela a imagem do homem, viva e materializada, como se regressasse de um longínquo país. É então que se evidencia, num facto supranormal que revoluciona todo o mundo conhecido da natureza, que a sua origem não é natural, como à força o querem biólogos, filósofos materialistas, e até certas correntes espiritualistas. Esquece-se que a metapsíquica nos oferece uma visão nova do homem e do Universo, apresentando-nos ainda outras conclusões metafísicas e com esta visão, o homem se nos apresenta como um poder psíquico que incide sobre a sua própria morte, para superá-la, como um ser dotado da natureza imortal. Esta superação espiritual da morte, pelo homem, é a razão fundamental do fenómeno metapsíquico; por isso, a imagem do homem está presente na sua manifestação. Não esqueçamos que a fisionomia humana não se manifesta em nenhum outro facto da natureza. Assim, se a metapsíquica no-la revela, é porque persegue algum propósito extraordinário, através do númeno que a conduz e a determina.

  William Crookes viu um espírito em carne e osso; viu um Ser quase ressuscitado, que falava com os vivos e se dava o nome de Katie King. O sábio inglês tocou a sua carne e sentiu que era viva, real e quente, o que levou o grande fisiólogo espanhol Jaume Ferran a dizer, referindo-se às materializações“Temos de confessar que estas materializações constituem o grande enigma da metapsíquica. O facto de aparecerem formas de contornos vagos, dotadas de uma luminosidade especial, que acabam por adquirir o aspecto de órgãos, membros e até de figuras humanas completas, que falam, se movimentam e respiram, exalando ácido carbónico; que têm pulsações arteriais, um coração que bate e a temperatura normal; que se desvanecem na presença dos espectadores e que, ainda quando seguradas firmemente, se esvaem sem deixar o menor vestígio; ninguém poderá negar que realmente constitui um grande mistério.” (ii)

  Crookes comprovou também que essa materialização metapsíquica tinha sangue de imortalidade, (iii) e que a imagem humana de Katie King era tão positiva e real como se não procedesse do outro mundo.

  Mas porque é que a teologia, a teosofia hindu e os sistemas espiritualistas negaram a espiritualidade e a realidade desse assombroso fenómeno? Porque é que negaram a prova da existência imortal do Espírito, quando a tiveram diante dos olhos?

  Acreditamos que a negaram porque se haviam esquecido das próprias aparições de Cristo depois da morte, essas divinas manifestações do Espírito de Jesus, que inauguraram para sempre, diante da humanidade e da história, a relação permanente entre os vivos e os mortos, como um prenúncio do que seria a ciência espírita do futuro. Assim, as ciências espirituais que não aprovam as manifestações de entidades invisíveis tornam-se superficiais e falíveis, divorciam-se das antigas modalidades do cristianismo.

  A investigação metapsíquica racionalizou a busca da imortalidade da alma. Aplicando-lhe o método científico, transformou em matéria experimental o que antes se considerava exclusivamente como sobrenatural ou pertencente à especulação teológica. Deste modo, o que se acreditava ser do domínio religioso passou para o domínio científico; consequentemente, a razão pode agora buscar uma nova fé, através dessa “teologia experimental” a que se referiu Jaume Ferran, ao tratar da obra metapsíquica do professor Charles Richet.

  O organismo humano, segundo a metapsíquica, possui um dinamopsiquismo que não depende dos centros nervosos. É por isso que a velha teoria do paralelismo psicofisiológico se desmorona ante a terrível metapsíquica, pois esta revela fenómenos decisivos a respeito, que constituem verdadeira contribuição de um grande númeno espiritual, encarregado de espiritualizar o conhecimento humano. Segundo as provas metapsíquicas, o Ser é uma força divina que dirige e condiciona o seu próprio desenvolvimento orgânico e espiritual, submetendo-se para isso à maravilhosa lei dos renascimentos.

  As teorias puramente naturalistas passam assim a ocupar um lugar secundário, já que o conhecimento metapsíquico dota o homem de um novo sentido filosófico e religioso. A ideia está recobrando a sua primazia na ordem do conhecimento, mas com acento revolucionário, pois o idealismo da metapsíquica não se parece em nada com o velho idealismo escolástico. A filosofia idealista que emerge dos factos sobrenaturais vem confirmar o carácter dinâmico e revolucionário do espiritismoEm consequência, o homem metapsíquico é totalmente diferente do homem materialista, tendo possibilidades de ampliar os sentidos humanos e até mesmo de dotar a espécie de órgãos psíquicos que modificarão as actuais noções de tempo e espaço. Os cinco sentidos do homem comum poderão ser ampliados por um sexto sentido, nexo psíquico que conectará a espécie com as realidades do mundo espiritual.

  De acordo com a filosofia espírita, a imagem do homem mudará, porque tudo está destinado a renovar-se. Deus não deu à criatura humana uma imagem definitiva, mas uma face espiritual que se irá transformando com a evolução. Porque o Ser é uma entidade que avança para a imagem de Deus, através do grande processo palingenésico a que está sujeito, adentrando-se cada vez mais no Divino Plano do Universo.

  À luz da filosofia espírita podemos dizer que a metapsíquica é a ciência dos fenómenos espirituais. Por esta ciência da Alma, como a chamaram Ernesto Bozzano e Charles Richet, a humanidade conhecerá a verdadeira senda espiritual que deve percorrer. Mas isto só acontecerá quando cessarem as rivalidades religiosas e ideológicas. Então se reconhecerá, para o bem da espécie, que no fenómeno metapsíquico está presente à imagem do homem desencarnado e que o espiritismo será o traço de união entre o materialismo e o espiritualismo clássicos.

  O espiritualismo kardecista guarda esse elo perdido, o nexo que reconciliará o pensamento materialista com o espiritualista. A tese de Gustave Geley, que sustenta não haver matéria sem espírito, nem espírito sem matéria, mostra-nos o enlace do elemento material com o elemento espiritual. Reconhecido o fenómeno metapsíquico como uma manifestação da substância ectoplásmica, será fácil compreender que matéria e espírito “são duas realidades que se conjugam, já que o desenvolvimento espiritual e físico resulta da união entre o corpo e a ideia. Assim se reconhecerá que não existe materialismo nem espiritualismo puros. Ambos os sistemas participarão reciprocamente dos seus respectivos elementos e o que antes os separava, agora os aproximará, demonstrando que o materialismo possui valores para o espiritualismo e o espiritualismo valores para o materialismo. (iv)

  A metapsíquica contribuirá enormemente para esta inter-relação de ambos os sistemas, devido à realidade biológica e espiritual revelada pelos seus fenómenos de materialização, que vieram confirmar a tese de que uma essência una anima e movimenta a vida de todo o Universo. (v)

/...
(i) A posição metapsíquica de Sudre, vigorosamente refutada por Ernesto Bozzano, renova-se actualmente na parapsicologia, Os próprios trabalhos de Sudre estão sendo reeditados, no interesse de refutar as conclusões extrafísicas de Rhine. (Nota de J.H. Pires).
(ii) Do prólogo ao Tratado de Metapsíquica, de Charles Richet, edição espanhola.
(iii) “Sangue de imortalidade”, expressão vigorosa com que o autor se refere à natureza humana do fenómeno. (Nota de J.H. Pires).
(iv) Kardec afirmou que o espiritismo e as ciências devem avançar juntos, porque tratam respectivamente dos dois aspectos fundamentais do Universo: o espírito e a matéria. (Ver a introdução de O Livro dos Espíritos e A Génese) Léon Denis, em O Génio Céltico e o Mundo Invisível, declara que o espiritismo avança para a realização da síntese do conhecimento, reunindo o saber espiritual e o material. Mariotti reafirma essa tese epistemológica da filosofia espírita. (Nota de J.H. Pires).
(v) A metapsíquica é considerada pelo autor como uma espécie de campo científico do espiritismo, uma zona intermediária em que o biológico e o anímico se encontram, dando lugar às manifestações ectoplásmicas que sintetizam espírito e matéria. (Nota de J.H. Pires).


Humberto MariottiO Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, Do Materialismo Histórico a uma Dialéctica do Espírito, 1ª PARTE O NÚMENO ESPIRITUAL NOS FENÓMENOS SOCIAIS, Capítulo IX A Imagem do Homem no Fenómeno Metapsíquico, 14º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Alrededores de la ciudad paranóico-crítica: tarde al borde de la historia europea
1936, Salvador Dali).

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Deus na Natureza ~


~ O Destino dos Seres e das Coisas ~
~ Plano da Natureza ~ O Instinto e a Inteligência ~
(I)

  A construção lenta e progressiva dos seres e a formação das espécies duradouras estabelecem a presença permanente da causa criadora e proclamam, de forma eloquente, a sua sabedoria e inteligência.

  Se deixarmos, agora, de lado a organização do indivíduo, para estudarmos a da família, penetraremos nos mistérios do instinto e, ainda aí, encontraremos o plano do Criador brilhantemente caracterizado.

  Muito se há discutido sobre a alma animal, depois que DescartesLeibnitz e, a seguir, Reaniur se deram ao trabalho de observar in natura, directamente, a vida e costumes dos animais. É, sobretudo, pela observação directa que nos podemos instruir acerca da preciosa faculdade das espécies vivas, que lhes assegura a conservação e, basta constatar os sinais evidentes desta lei universal, para lhe aferir o valor, sob o ponto de vista dos desígnios da Criação.

  Antes de tudo, convém distinguir inteligência e instinto. Os animais possuem uma e o outro como faculdades bem distintas. Com a primeira pensam, reflectem, compreendem, decidem, recordam, adquirem experiência, amam, odeiam, julgam, por processos análogos aos da inteligência humana; com a segunda, operam obedecendo a uma impulsão íntima, sem apreensão, sem conhecimento, inconscientes do motivo e do resultado dos seus actos. Fixemos alguns exemplos, para melhor definir esses caracteres.

  Eis como nos fala Buffon de um orangotango ainda novo, por ele observado: – “Vi-o dar a mão para conduzir as pessoas que o visitavam e passear com elas como se estivesse convencido do seu papel; vi-o sentar-se à mesa, pegar um guardanapo, limpar os lábios, utilizar-se da colher e do garfo, encher o copo e tocá-lo noutro, quando a isso convidado; vi-o ir buscar uma chávena, pôr-lhe o açúcar e o chá, aguardando que este esfriasse para então o beber. Tudo isso, sem outra instigação que a palavra e a mímica do seu dono e, algumas vezes, por si mesmo. Não fazia mal a quem quer que fosse; mostrava-se mesmo circunspecto e na atitude de quem pedisse carinho, etc.”

  O Sr. Flourens diz que havia no Jardim Zoológico um orangotango notável pela inteligência: meigo, amante de carícias, principalmente das crianças, com elas brincava procurando imitar tudo quanto via, etc. Assim é que, sabia manejar a chave do seu compartimento, enfiando-a na fechadura e abrindo a porta. Se acontecia pendurarem a chave na chaminé, lá trepava por meio de uma corda presa ao tecto e que lhe servia comummente de balanço. Certa vez, deram um nó na corda, para fazê-la mais curta e, ele o desatou imediatamente. Tal como o de Buffon, não revelava a impaciência e petulância próprias da espécie, antes tinha um ar tristonho, passos lentos e gestos comedidos.

  O professor foi visitá-lo um dia, acompanhado por um ilustre ancião, que era também um observador sagaz e profundo.

  Um trajo algo esquisito, os passos lentos e vacilantes, o busto arqueado do visitante, logo despertaram a atenção do símio. Prestou-se ele, complacente, a tudo o que se lhe exigiu, mas, de olho sempre atento no objecto de sua curiosidade. Quando nos íamos retirar e ele mais se aproximou do novo visitante, tirou-lhe delicada e maliciosamente a bengala e, fingindo apoiar-se nela, curvado e vagaroso, deu uma volta ao compartimento, como procurando imitar o meu velho amigo.

  Depois, por si mesmo restituiu-lhe a bengala. É evidente que ele também sabia observar...

  Cuvier, por sua vez, observou factos não menos curiosos. O seu orangotango se divertia trepando as árvores e nelas permanecendo encarapitado. Um dia, fizeram menção de lá o irem buscar e ele logo se pôs a sacudir a árvore, assim procedendo sempre que tentavam apanhá-lo. “De qualquer modo – diz Cuvier – que consideremos este acto, não será possível negá-lo como resultante de uma combinação de ideias, para reconhecer que o animal possui a faculdade de generalizar.

  De facto, o orangotango, aqui, concluía de si para outrem: mais de uma vez, o abalo violento dos corpos, em que se apoiara, tê-lo-ia espavorido, levando-o a concluir que este mesmo medo atingiria a outrem, ou – para melhor dizer com Cuvier – “de uma circunstância particular ele fazia uma regra geral”.

  Flourens cita o exemplo de um curioso indício de inteligência, observado no Jardim Zoológico. Julgado excessivo o número de ursos lá existentes, foi resolvida a eliminação de dois exemplares. O veneno seria o ácido prússico, ministrado em pequenos bolos. À vista dos bolos, os animais logo se ergueram nas patas traseiras, abrindo a boca, na qual conseguiram atirar alguns bolos. Entretanto, logo rejeitaram o manjar e se puseram em fuga. Dir-se-ia que não seriam mais tentados a tocar na iguaria e, contudo, ei-los a empurrar com as patas os bolos para dentro do tanque e, depois de muito revolverem a água, iam comendo os bolos, à medida que o veneno se evaporava. Em o fazerem assim, impunemente demonstraram uma sagacidade que lhes granjeou a revogação da sentença.

  Plutarco afirma ter visto um cão atirar pedrinhas dentro de uma talha, não completamente cheia de óleo, admirando-se de como o cão pudesse induzir que o peso das pedras haveria de fazer subir e transbordar o conteúdo.

  Buffon escreveu belas páginas sobre a inteligência do cão, mas não lhe interpretou o alto valor. Há, nos fastos da espécie canina, exemplos de inteligência, habilidade raciocínio, julgamento, e também de afeição, devotamento, bondade e reconhecimento, dignos de serem apontados como modelo a uma grande parte do género humano.

  Poder-se-ia escrever uma série de volumes e nem assim se esgotaria o acervo de factos comprobatórios da inteligência animal, notadamente do cão. De resto, os adversários estão connosco em admitir estes factos. Citemos aqui o exemplo interessante de uma deliberação de andorinha, contado pelo autor de Força e Matéria. Um casal de andorinhas tinha começado a construir o ninho na cumeeira de uma casa. Um dia, entra por lá um bando de companheiras e travam longa discussão pela posse do ninho. Reunidas no forro da casa e não longe do ninho disputado, fizeram uma algazarra infernal. Depois de algum tempo, enquanto algumas andorinhas se destacavam para inspeccionar o ninho, se dissolveu a assembleia e o resultado foi o casal abandonar o ninho começado, entrando logo a construir outro em lugar quiçá mais adequado.”

  Um facto ainda mais notável veio à baila recentemente. Nos arredores de uma granja de Weddendorg, perto de Magdebourg, as cegonhas, após sério debate, julgaram uma companheira adúltera. Mataram-na às bicadas e atiraram-na fora do ninho (*).

  Agassiz, mais que ninguém, exalta as faculdades intelectuais dos animais. Depois de mostrar as dificuldades que ainda não permitem estabelecer uma comparação científica entre instintos e faculdades humanas e animais, emite ele as seguintes ideias: – “O desenvolvimento das paixões é tão extenso no animal quanto no homem e, eu me encontraria seriamente embaraçado para lhes apreender diferenças específicas, naturais, ainda que as haja e, grandes, no graduamento das manifestações e na forma de expressão. Ao demais, a gradação das faculdades morais entre os animais e o homem é tão imperceptível, que, recusar aos primeiros um certo sentimento de responsabilidade e consciência fora, certo, exagerar a diferença. Além disso, há neles, limitadas às suas respectivas capacidades, individualidades tão definidas como no homem. Os criadores de cavalos, os guardadores de animais, pastores, etc., aí estão para confirmá-lo.

  E aí temos argumentos dos mais fortes a favor da existência de um princípio imaterial em todos os animais análogo ao que, por excelência e faculdades superiores, coloca o homem em plano eminente. A maior parte dos argumentos filosóficos em prol da imortalidade do homem aplica-se, igualmente, à indestrutibilidade desse princípio nos outros seres vivos (**).

  Quem se atreveria hoje a pôr em dúvida a inteligência animal? Só um tímido espírito de sistema, temeroso das consequências desta verdade, em relação a umas tantas crenças, pode fechar os olhos à evidência. A nós, cumpria-nos constatar, antes de tudo, esta verdade, a fim de mais livremente podermos falar do instinto e derrocar a argumentação dos que presumem que o instinto não existe.

  Há, certamente, uma grande diferença entre actos instintivos e actos racionais. Não que esses dois caracteres da força viva se encontrem isolados (nada o está na Natureza), mas por não se encontrarem na mesma graduação e não se poderem confundir. Não devemos insistir, maioritariamente aqui, a respeito dos factos de ordem intelectual. Vamos, porém, compará-los aos factos inerentes ao domínio do instinto e que revelam existir uma providência universal presidindo à vida em geral e que não explicam de modo algum, pela instrução, o raciocínio ou o julgamento nos animais em que se deparam.

  Chama-se instinto ao conjunto das directivas que impelem o animal, obedecendo a uma necessidade constante. O instinto é inato, actua à revelia da instrução, inexperiente e invariavelmente e, não realiza progresso algum. É em tudo a antítese da inteligência. Tanto mais notáveis são os fenómenos do instinto quanto mais se afirmam inteiramente involuntários. “Não podemos fazer uma ideia nítida do instinto – dizia Georges Cuvier – senão admitindo que os animais sejam submetidos a imagens ou sensações inatas constantes, que os obrigam a proceder como levados por sensações acidentais. É uma espécie de sonho ou visão que os persegue incessante e, em tudo que se reporta ao instinto, podemos julgar os animais assim uma espécie de sonâmbulos.”

  Frédéric Cuvier consagrou parte da vida a descobrir a linha que separa o instinto da inteligência. Pode dizer-se, sem paradoxo, que não há linhas divisórias na Natureza. Aqui, porém, não se trata de metafísica. Contentemo-nos, assim, em ouvir o que diz o Sr. Flourens, das laboriosas observações do esforçado naturalista.

  O castor é um mamífero da ordem dos roedores, isto é, da ordem menos inteligente, e, contudo, possui um instinto maravilhoso, qual o de construir uma cabana sobre a água, com calçadas e diques e, tudo à mercê de uma indústria que demandaria inteligência elevadíssima, se de inteligência dependesse.

  O essencial, portanto, fora provar essa independência e foi isso o que fez F. Cuvier. Com castores muito novos, educados longe de seus pares e, por conseguinte, nada havendo com eles ou deles aprendido. Esses castores, assim isolados, solitários, postos numa jaula expressamente destinada à experiência e de forma a dispensá-los do seu trabalho peculiar construtivo, não se cobriram de o realizar, impelidos por uma força maquinal cega, ou seja um puro instinto.

  A mais completa antítese separa o instinto da inteligência. No instinto tudo é cego, necessário, invariável; na inteligência é tudo elevado, condicional, modificável. O castor que constrói uma cabana, o pássaro que constrói um ninho, só o fazem por instinto. O cão e o cavalo, que chegam a compreender o sentido de algumas palavras e nos obedecem, o fazem por inteligência.

  No instinto é tudo inato: o castor constrói sem haver aprendido. Dir-se-ia que o faz por uma fatalidade, dirigido por uma força constante e incoercível.

  Na inteligência é tudo resultado da experiência e da instrução: o cão obedece quando ensinado. E aí tudo é livre, o cão obedece porque quer.

  Finalmente, tudo no instinto é particular; essa indústria admirável que o castor utiliza ao construir a cabana não pode ele utilizá-la senão com esse fim; ao passo que, na inteligência, tudo se generaliza, uma vez que essa mesma maleabilidade de atenção e de concepção do cavalo e do cachorro pode aproveitar-lhes para fazer diversas coisas.

  Distinção que se impunha, esta. Na história da Natureza importa reconhecer em cada qual o que lhe pertence e exactamente o que lhe pertence, sem restrição sistemática, sem prevenção tendenciosa. Descartes e Buffon (este contraditório, às vezes) negam aos animais qualquer partícula de inteligência. Condillac e G. Leroy, ao contrário, chegam a conceder-lhes operações intelectuais das mais elevadas. É um erro duplo. Os animais não são plantas nem são homens. Weinband não tem razão em pretender que isso que designamos como instinto não passa de “indolência do espírito para livrar-se dos penosos esforços que o estado da alma animal reclama”. Não a tem, tampouco, Sachus, quando adita que “não há necessidade imediata, resultante da organização intelectual, nem pendores cegos e arbitrários que impulsem os animais”. Não hesitamos em reconhecer que esta questão, como todos os grandes problemas da Natureza, é difícil de resolver. Pensamos que, no seu estudo, como de resto noutras questões sucede, o homem se tem protegido mais com palavras que com ideias. Quando não se compreende o acto inteligente de um animal, é comum ligar-se ao embaraço, utilizando a palavra instinto, assim como um véu lançado ao objecto que se quer examinar; mas, à parte este processo ilusório, restam factos que não são certamente resultado de reflexão, nem de julgamento. Em vão o Sr. Darwin, e com ele Lamarck, afirmam que o instinto é um hábito hereditário. Esta explicação não transfere o instinto para os domínios da inteligência e, ainda menos, para os domínios do materialismo puro. Tampouco está demonstrado seja o instinto um hábito hereditário. Consideremos essas borboletas que vivem no ar e que, chegando à terceira fase da sua maravilhosa existência, se entreabrem aos beijos da luz e aos eflúvios do amor.

  Célere, depositarão em círculos concêntricos minúsculos ovos brancos, sobre talos ou folhas. Esses ovos não vingarão antes da próxima estação, quando surgem as pequenas lagartas e, isso depois de transcorridos muitos dias, quando as borboletas já dormem na poeira o sono da morte. Que voz teria ensinado a estas novas borboletas que as futuras lagartas, ao desovarem, hão de encontrar tal ou tal alimentação? Quem lhes aponta os talos e as folhas em que hajam de depositar os seus ovos? Os pais? Mas, se os não conhecem? Será, então, das folhas e talos que lhes advém a memória?

  Que memória, porém, se elas viveram três existências após essa época longínqua e substituíram os alimentos inferiores pelo manjar delicado das corolas olentes? Eis aqui, porém, outras espécies que protestam, ainda mais vivamente, contra as explicações humanas. Os necróforos (nome lúgubre) morrem imediatamente após a postura e as gerações jamais se conhecem. Nenhum ser desta espécie viu a mãe nem verá os filhos e, contudo, as mães têm grande cuidado em dispor cadáveres ao lado dos ovos, para que aos filhos não falte alimento logo ao nascer. Em que parte aprenderam esses necróforos que os seus ovos contêm germe de insectos que em tudo se lhes assemelham? Há outras espécies nas quais o regime alimentar é inteiramente oposto, para a larva e para o insecto. Nos pompilídeos as mães são herbívoras e os filhos carnívoros. Em fazerem a postura sobre cadáveres, contrariam os próprios hábitos. E aqui não colhe admitir o acaso, nem o hábito lentamente adquirido. Qualquer espécie que aberrasse desta lei não poderia subsistir, visto que os rebentos morreriam de fome logo após o nascimento. A estes insectos podemos juntar os odíneros e os sphex. As larvas destes últimos são carnívoras e o ninho precisa ser provido de carne fresca. Para preencher essa condição, a fêmea que vai desovar busca uma presa conveniente, tendo o cuidado de não a matar, limitando-se a feri-la de paralisia irremediável. Coloca, depois, sobre cada ovo um certo número desses enfermos incapazes de se defenderem da larva que os há de devorar, mas com vida bastante para que o corpo não se corrompa. Em algumas famílias acresce o cuidado pela alimentação da presa, até à eclosão da larva.

  Os nossos elementos de argumentação, neste particular, são tão numerosos que seria impossível reuni-los a todos. Limitamo-nos, assim, a citar alguns exemplos, convidando o leitor a tirar da letra o espírito. Entre estes exemplos, incluamos o da abelha xilófaga, com a qual o Sr. Milne-Edwards entreteve recentemente, na Sorbonne, a curiosidade dos seus ouvintes.

  Essa abelha que vemos adejar na Primavera, que vive solitária e pouco sobrevive à postura, não viu nunca os genitores e não viverá o tempo suficiente para assistir ao nascimento das pequeninas larvas vermiformes, desprovidas de patas e incapazes, não só de se protegerem, como de angariar alimento. E, contudo, elas precisam permanecer em repouso cerca de um ano, numa habitação bem fechada, sob pena de se extinguir a espécie.

  Como, então, supor que a abelha gestante, antes de pôr o primeiro ovo, tenha podido adivinhar as necessidades da prole futura e o que deve fazer para lhe assegurar o bem-estar? Tivesse ela em partilha a inteligência humana e, nada soubera a tal respeito, visto que todo o raciocínio requer premissas. Este insecto, que nada pôde aprender, tudo prepara e opera sem hesitação, como se o futuro lhe estivera devassado e uma previdência racional a norteasse. Apenas lhe despontam as asas e logo a xilófaga trata de preparar a casa dos filhos. Com as mandíbulas, broca um tronco de madeira exposto ao Sol, escava uma longa galeria e vai depois buscar, longe, no pólen das flores, o néctar açucarado. É o cibo do recém-nascido e que lhe há de bastar, o “quantum satis”, para bem-viver até à Primavera próxima.

  Uma vez provida a despensa, aí deposita o ovo e ei-la amalgamando com terra a serragem prudentemente guardada e fazendo como que uma argamassa, de maneira que o leito dessa primeira cela se transforme em tecto de uma segunda despensa e berço da larva a nascer de outro ovo. Assim se constrói um edifício de alguns andares, no qual cada alojamento recolhe um ovo e servirá, mais tarde, à larva desse ovo.

  “Admira – diz Edwards – como diante de factos tão significativos e numerosos ainda haja quem nos venha dizer que todas as maravilhas da Natureza não passam de obras do acaso ou, então, de consequências das propriedades gerais da matéria; desta Natureza que faz a substância da pedra como da madeira e que os instintos da abelha, assim como as mais altas expressões da genialidade humana, não são mais que resultado de um jogo de forças físicas ou químicas, as mesmas que determinam o congelamento da água, a combustão do carvão e a queda dos corpos... Essas hipóteses balofas, ou melhor, essas aberrações do espírito, que se mascaram, às vezes, com o nome de ciência positiva, só podem ser repelidas pela verdadeira Ciência. O naturalista não poderia acreditá-lo.

  “Por pouco que penetremos num desses obscuros redutos onde se esconde o débil insecto, nele ouvimos distintamente a voz da Providência ditando às criaturas a sua conduta diária.”

  Em todas as províncias da vida – acrescentamos nós – a mão do Criador inteligente e previdente se revela aos olhos que sabem verdadeiramente ver. E sempre que a dúvida nos perturbe, nada melhor se nos impõe que o estudo acurado da Natureza, porquanto todos os que tiverem consigo o sentimento do belo e do verdadeiro, perante o espectáculo maravilhoso da Criação, logo terão dissipadas as nuvens qual floração de luz.

/…
(*) Temos numerosos documentos comprobatórios da inteligência dos animais. Aqui, porém, não nos podemos alongar no assunto. Ao exemplo precedente, acrescentemos que a dar crédito a uns tantos barqueiros ingleses, chamados “panters”, os patos selvagens fazem reuniões parlamentares e votam. Estes, como todos os animais, têm expressões próprias para traduzir alegria, dor, fome, amor, medo, ciúme, etc. Esses termos variam, conforme as espécies. Antes da revoada matinal, uma discussão muito viva se empenha durante dez a vinte minutos, e só depois de assente uma resolução é que se opera a debandada. Conta-se, também, que uma ave, tombada num choque, apelou a seu modo para uma outra, que, procurando alentá-la, ficou a seu lado por uma hora mais ou menos, até que a outra morresse. Segundo E. W. Gruner, os gansos têm inflexões e tonalidades vocais muito variadas. O cão alegre late de modo muito diverso de quando está raivoso. A linguagem mímica e sónica dos insectos (abelhas, formigas, escaravelhos, etc.), por meio das antenas e movimentos de asas, é, como sabemos, muito rica e variada. Não iremos ao extremo de os traduzir em francês com Dupont de Nemours, mas a verdade é que se não pode negar que os animais se permutem nas suas impressões. Eles têm mesmo, sobre nós, o privilégio de compreender as nossas palavras, ao passo que nós não compreendemos as suas. Mais: compreendem-se em qualquer latitude, ao passo que um francês não compreende um alemão, nem um chinês.
(**) Contribuitions to the Natural History of the United States of North America volume 1 – 1ª parte.

(Referências: – Leis que presidem à conservação das espécies. – Faculdades instintivas especiais. – Não se explica o instinto pela suposição de hábitos hereditários. – Distinção fundamental entre os factos instintivos e os racionais. – Desígnio nas obras da Natureza. – Ordem geral e as harmonias universais. – Qual a distinção geral do mundo? – Magnitude do problema. – Insuficiência da razão humana.)


Camille Flammarion, Deus na Natureza, Quarta Parte (4); O Destino dos Seres e das Coisas, (2) Plano da Natureza, O Instinto e a Inteligência (1 de 3), 34º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva) 1895, pintura de James Jebusa Shannon)