Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 29 de abril de 2022

Da sombra do dogma à luz da razão ~


~ Uranografia Geral (*) 
O espaço e o tempo ~ 

| Galileu, Espírito 
(Études Uranographiques) (VI) 

Os satélites 🌈 

  Antes das massas planetárias terem atingido um grau de arrefecimento suficiente para lhes operar a solidificação, massas mais pequenas, verdadeiros glóbulos líquidos, destacaram-se de algumas no plano equatorial, plano onde a força centrifuga (i) é maior e que por virtude das mesmas leis adquiriram um movimento de translação (i) à volta do seu planeta gerador, tal como aconteceu com eles à volta do seu astro gerador. 

  Foi assim que a Terra deu nascimento à Lua, cuja massa, menos considerável, deve ter sofrido um arrefecimento mais rápido. Ora as leis e as forças que presidiram à sua separação do equador terrestre e o seu movimento de translação neste mesmo plano agiram de tal modo, que este mundo em vez de revestir a forma esferóide tomou a de globo ovóide, isto é, tendo a forma alongada de um ovo cujo centro de gravidade estaria fixado à parte inferior. 

  As condições em que se efectuou a desagregação da Lua mal lhe permitiram afastar-se da Terra e constrangeram-na a permanecer perpetuamente suspensa no seu céu como uma figura ovóide, cujas partes mais pesadas formaram a força inferior virada para a Terra e cujas partes menos densas ocuparam o topo, se designarmos com esta palavra o lado voltado para o lado oposto da Terra e elevando-se para o céu. É o que faz com que este astro nos apresente continuamente a mesma face. Pode ser comparado, para melhor se entender o seu estado geológico, a um globo de cortiça, em que a base virada para a Terra seria feita de chumbo. 

  Daí a existência de duas naturezas essencialmente diferentes na superfície do mundo lunar: uma, sem qualquer analogia possível com a nossa, pois os corpos fluidos e etéreos são-lhe desconhecidos; a outra, leve em relação à Terra, dado que todas as substâncias menos densas se transportaram para este hemisfério. A primeira, perpetuamente voltada para a Terra, sem água e sem atmosfera, a não ser por vezes nos limites deste hemisfério subterrestre, a outra, rica em fluidos, perpetuamente oposta ao nosso mundo (**)

  O número e o estado dos satélites de cada planeta variam consoante as condições especiais nas quais se formam. Alguns não deram origem a nenhum astro secundário, tais como Mercúrio, Vénus e Marte, enquanto outros formaram um ou vários, como a Terra, Júpiter, Saturno, etc. 

  Para além dos seus satélites ou luas, o planeta Saturno apresenta o fenómeno especial do anel que, visto de longe, parece envolvê-lo como que com uma branca auréola. Esta formação é para nós uma nova prova da universalidade das leis da natureza. Este anel é com efeito o resultado de uma separação que se operou nos tempos primitivos no equador de Saturno, tal como uma zona equatorial se escapou da Terra para formar o seu satélite. A diferença consiste em que o anel de Saturno se encontrava formado, em todas as suas partes, de moléculas homogéneas, provavelmente já num certo estado de condensação e, pode, desta maneira, continuar o seu movimento de rotação no mesmo sentido e num tempo mais ou menos igual ao que anima o planeta. Se um dos pontos deste anel tivesse sido mais denso do que outro, uma ou várias aglomerações de substância ter-se-iam subitamente operado e Saturno teria contado com vários satélites mais. Desde o tempo da sua formação, este anel solidificou-se assim como os outros corpos planetários. 
                                                                                                          Espírito Galileu 
/… 

(*) Este capítulo foi textualmente extraído de uma série de comunicações ditadas à Sociedade Espírita de Paris, em 1862 e 1863, sob o título de Études Uranographiques e assinado, Galileu; médium M. C. F. (N. do A.) 

(**) Esta teoria da Lua, inteiramente nova, explica através da lei de atracção, a razão pela qual este astro apresenta sempre a mesma face à Terra. Encontrando-se o seu centro de gravidade, em vez de estar no centro da esfera, num dos pontos da sua superfície e por consequência atraído para a Terra por uma força maior do que as partes mais ligeiras, a Lua produz o efeito das figuras chamadas sempre em pé, que se mantêm constantemente direitas sobre a base, enquanto os planetas, cujo centro de gravidade se encontra a igual distância da superfície, giram regularmente sobre o eixo. Os fluidos vivificadores, gasosos ou líquidos, devido à sua leveza específica, encontrar-se-iam acumulados no hemisfério superior constantemente oposto à Terra; o hemisfério inferior, o único que vemos, não os possuiria, sendo por consequência impróprio para a vida, enquanto esta reinaria no outro. Se, portanto, o hemisfério superior é habitado, os seus habitantes nunca viram a Terra, a não ser que fizessem incursões ao outro hemisfério, o que lhes seria impossível, não havendo ali as condições necessárias de vitalidade. 
Por muito racional e científica que esta teoria seja, como não pode ainda ser confirmada por qualquer observação directa, não pode ser aceite a não ser a título de hipótese e como ideia a poder servir à ciência; mas não podemos negar que seja a única, até agora, que dá uma explicação satisfatória das particularidades que este globo apresenta. (N. do A.) 


ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo VI, Uranografia Geral, O espaço e o tempo – Os satélites (de 24 a 27), 28º fragmento desta obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida. 
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites).

domingo, 17 de abril de 2022

o problema do | ser


(Quem sou... o que faço aqui... de onde vim... para onde vou...) 

a evolução do pensamento ~ 

Uma lei, já o dissemos, rege a evolução do pensamento, como a evolução física dos seres e dos mundos; a compreensão do universo, desenvolve-se com o progresso do espírito humano. 

Essa compreensão geral do universo e da vida, foi expressa de mil maneiras, sob mil formas diversas no passado. Ela é-o hoje, em termos mais amplos e sê-lo-á, sempre com mais amplitude, à medida que a humanidade for subindo, os degraus da sua ascensão. 

A Ciência, vê alargar-se sem cessar, o seu campo de exploração. Todos os dias, com auxílio dos seus poderosos instrumentos de observação e análise, descobre novos aspectos da matéria, da força e da vida; mas o que esses instrumentos verificam, já há muito tempo o espírito discernira, porque o voo do pensamento, precede sempre e excede os meios de acção da ciência positiva. Os instrumentos nada seriam sem a inteligência, a vontade que os dirige. 

A Ciência é incerta e mutável, renova-se sem cessar. Os seus métodos, teorias e cálculos, com grande custo arquitectados, desabam perante uma observação mais atenta ou uma indução mais profunda, para dar lugar a novas teorias, que não terão maior estabilidade. (i) A teoria do átomo indivisível, por exemplo, que há dois mil anos servia de base à Física e à Química, é actualmente qualificada como hipótese e puro romance pelos nossos químicos mais eminentes. 

Quantas decepções análogas não têm demonstrado, no passado, a fraqueza do espírito científico, que só chegará à realidade quando se elevar acima da miragem dos factos materiais para estudar-lhe as causas e as leis! 

Foi dessa maneira que a Ciência pôde determinar os princípios imutáveis da Lógica e das matemáticas. Não sucede o mesmo nos outros campos de investigação. Na maior parte das vezes, o sábio, para eles leva os seus preconceitos, tendências, práticas rotineiras, todos os elementos de uma individualidade acanhada, como se pode verificar no domínio dos estudos psíquicos, principalmente na França, onde até agora poucos sábios houve suficientemente corajosos e suficientemente ilustrados para seguirem a estrada já amplamente traçada pelas mais belas inteligências de outras nações. 

Não obstante, o espírito humano avança passo a passo no conhecimento do ser e do universo; o nosso saber, quanto à força e à matéria, modifica-se dia a dia; a individualidade humana revela-se com aspectos inesperados. À vista de tantos fenómenos verificados experimentalmente, em presença dos testemunhos que de toda a parte se acumulam, (ii) nenhum espírito perspicaz pode continuar a negar a realidade da outra vida, a esquivar-se às consequências e às responsabilidades que ela acarreta. 

O que dizemos da Ciência poder-se-ia, igualmente, dizer das filosofias e das religiões que se têm sucedido através dos séculos. Constituem elas outros tantos estádios ou trechos percorridos pela humanidade, ainda criança, elevando-se a planos espirituais cada vez mais vastos e que se ligam entre si. No seu encadeamento, essas crenças diversas nos aparecem como o desenvolvimento gradual do ideal divino, que o pensamento reflecte, com tanto mais brilho e pureza quanto mais delicado e perfeito se vai tornando. 

É essa a razão pela qual as crenças e os conhecimentos de um tempo ou de um meio parecem ser, para o tempo ou o meio onde reinam, a representação da verdade, tal qual a podem alcançar e compreender os homens dessa época, até que o desenvolvimento das suas faculdades e consciências os tornem capazes de perceber uma forma mais elevada, uma radiação mais intensa dessa verdade. 

Sob esse ponto de vista, o próprio feiticismo, apesar dos seus ritos sangrentos, tem uma explicação. É o primeiro balbuciar da alma infantil, ensaiando-se para soletrar a linguagem divina e fixando, em traços grosseiros, em formas apropriadas ao seu estado mental, a concepção vaga, confusa, rudimentar de um mundo superior. 

Paganismo representa uma concepção mais elevada, posto que mais antropomórfica. Nele os deuses são semelhantes aos homens, têm todas as suas paixões, todas as suas fraquezas; mas, agora, a noção do ideal se aperfeiçoa com a do bem. Um raio de beleza eterna vem fecundar as civilizações no berço. 

Mais acima, vem a ideia cristã, essencialmente feita de sacrifício e abnegação. O paganismo grego era a religião da Natureza radiosa; o Cristianismo é a da humanidade sofredora, religião das catacumbas, das criptas e dos túmulos, nascida na perseguição e na dor, conservando o cunho de sua origem. Reacção necessária contra a sensualidade pagã, tornar-se-á ela, pelo seu próprio exagero, impotente para vencê-la, porque, com o cepticismo, a sensualidade renascerá. 

Cristianismo, na sua origem, deve ser considerado como o maior esforço tentado pelo mundo invisível para comunicar ostensivamente com a nossa humanidade. É, segundo a expressão de F. Myers, “a primeira mensagem autêntica do Além”. Já as religiões pagãs eram ricas em fenómenos ocultos de toda a espécie e de factos de adivinhação; mas a ressurreição, isto é, as aparições do Cristo materializado, depois de ter morrido, constituem a mais poderosa manifestação de que os homens têm sido testemunhas. Foi o sinal de uma entrada em cena do mundo dos Espíritos, entrada que, nos primeiros tempos cristãos, se produziu de mil maneiras. Dissemos em outro lugar (iii) como e por que pouco a pouco foi descendo de novo o véu do Além e o silêncio se fez, salvo para alguns privilegiados: videntes, extáticos, profetas. 

Assistimos hoje a uma nova florescência do mundo invisível na História. As manifestações do Além, de passageiras e isoladas, tendem a converter-se em permanentes e universais. Entre os dois mundos desdobra-se um caminho, a princípio simples carreiro, estreita senda, mas que se alarga, melhora pouco a pouco e, que se tornará estrada larga e segura. O Cristianismo teve como ponto de partida fenómenos de natureza semelhante aos que se verificam nos nossos dias, no domínio das ciências psíquicas. É por esses factos que se revelam a influência e a acção de um mundo espiritual, verdadeira morada e pátria eterna das almas. Por meio deles se rasga um claro azul na vida infinita. Vai renascer a esperança nos corações angustiados e a humanidade vai reconciliar-se com a morte. 

As religiões têm contribuído poderosamente para a educação humana; têm oposto um freio às paixões violentas, à barbaria das idades de ferro e, gravado fortemente a noção moral no íntimo das consciências. A estética religiosa criou obras-primas em todos os domínios; teve parte activa na revelação da arte e da beleza que prossegue pelos séculos fora. A arte grega criara maravilhas; a arte cristã atingiu o sublime nas catedrais góticas que se erguem, bíblias de pedra sob o céu, com as suas altaneiras torres esculpidas, as suas naves imponentes, cheias das vibrações dos órgãos e dos cantos sagrados, as suas altas ogivas, de onde a luz desce em ondas e se derrama pelos afrescos e pelas estátuas; mas o seu papel está a terminar, visto que, actualmente, ou se copia a si mesma, ou, exausta, entra em descanso. 

O erro religioso, principalmente o católico, não pertence à ordem estética, que não engana; é de ordem lógica. Consiste em encerrar a Religião em dogmas estreitos, em moldes rígidos. Enquanto o movimento é a própria lei da vida, o Catolicismo imobilizou o pensamento, em vez de provocar-lhe o voo. 

Está na natureza do homem, exaurir todas as formas de uma ideia, ir até aos extremos, antes de prosseguir o curso normal da sua evolução. Cada verdade religiosa, afirmada por um inovador, enfraquece-se e altera-se com o tempo, por serem quase sempre incapazes, os discípulos, de se manterem à altura a que o Mestre os atraíra. Desde esse momento a doutrina torna-se uma fonte de abusos e provoca pouco a pouco um movimento contrário, no sentido do cepticismo e da negação. À fé cega, sucede a incredulidade; o materialismo, faz a sua obra e somente quando ele mostra toda a sua impotência na ordem social é que se torna possível uma renovação idealista. 

Correntes diversas – judaica, helénica, gnóstica – misturam-se e chocam-se, desde os primeiros tempos do Cristianismo, na esteira da religião nascente; declaram-se cismas. Sucedem-se rupturas, conflitos, no meio dos quais, o pensamento do Cristo se vai pouco a pouco velando e obscurecendo. 

Mostrámos (iv) quais as alterações, as acomodações sucessivas de que foi objecto a doutrina cristã na sucessão dos tempos. O verdadeiro Cristianismo, era uma lei de amor e liberdade, as igrejas fizeram dele, uma lei de temor e escravidão. Daí o se afastarem, gradualmente, da igreja os pensadores; daí o enfraquecimento do espírito religioso. 

Com a perturbação que invadiu os espíritos e as consciências, o materialismo ganhou terreno. A sua moral, que pretende foros de científica, que proclama a necessidade da luta pela vida, o desaparecimento dos fracos e a selecção dos fortes, reina hoje, quase como soberana, tanto na vida pública, quanto na vida privada. Todas as actividades se aplicam à conquista do bem-estar e dos gozos físicos. Por falta de preparação moral e de disciplina, a alma perde as suas energias; insinuam-se por toda a parte o mal-estar e a discórdia, na família e na nação. É, dizíamos, um período de crise. Não obstante as aparências, nada morre; tudo se transforma e renova. A dúvida, que assedia as almas na nossa época, prepara o caminho para as convicções de amanhã, para a fé inteligente e esclarecida, que há de reinar no futuro e estender-se a todos os povos, a todas as raças. 

Embora jovem e dividida pelas necessidades de território, de distância, de clima, a humanidade começou a ter consciência de si mesma. Acima e fora dos antagonismos políticos e religiosos, constituem-se agrupamentos de inteligências. Homens preocupados com os mesmos problemas, aguilhoados pelos mesmos cuidados, inspirados pelo Invisível, trabalham numa obra comum e procuram as mesmas soluções. Pouco a pouco vão aparecendo, fortificando-se, aumentando, os elementos de uma ciência psicológica e de uma crença universais. Um grande número de testemunhas imparciais, vê nisso o prelúdio de um movimento do pensamento, tendendo a abranger todas as sociedades da Terra. (v) 

A ideia religiosa, acaba de percorrer o seu ciclo inferior e vão-se desenhando os planos de uma espiritualidade mais elevada. Pode dizer-se que, a Religião é o esforço da humanidade para comunicar com a Essência eterna e divina. É essa a razão, pela qual haverá sempre religiões e cultos, cada vez mais liberais e conformes às leis superiores da Estética, que são a expressão da harmonia universal. O belo, nas suas regras mais elevadas, é uma lei divina e, as suas manifestações em relação com a ideia de Deus, revestirão forçosamente um carácter religioso. 

À proporção que o pensamento se vai aperfeiçoando, missionários de todas as ordens vêm provocar a renovação religiosa no seio da humanidade. Assistimos ao prelúdio de uma dessas renovações, maior e mais profunda que as precedentes. Já não tem somente homens por mandatários e intérpretes, o que tornaria a nova dispensação tão precária como as outras. São os Espíritos inspiradores, os génios do espaço, que exercem ao mesmo tempo a sua acção, em toda a superfície do Globo e em todos os domínios do pensamento. Sobre todos os pontos, aparece um novo espiritualismo. 

Imediatamente surge a pergunta: “Que és tu, ciência ou religião? Espíritos de pouco alcance, credes então que o pensamento há de seguir eternamente os carreiros abertos pelo passado?!” 

Até aqui, todos os domínios intelectuais, têm permanecido separados uns dos outros, cercados de barreiras, de muralhas – a Ciência de um lado, a Religião do outro. A Filosofia e a Metafísica, estão eriçadas de silvas impenetráveis. Quando tudo é simples, vasto e profundo, no domínio da alma como no do universo, o espírito de sistema tudo complicou, apoucou, dividiu. A Religião foi emparedada no sombrio ergástulo dos dogmas e dos mistérios; a Ciência foi enclausurada, nas mais baixas camadas da Matéria. Não é essa a verdadeira religião, nem a verdadeira ciência. Bastará, nos elevemos acima dessas classificações arbitrárias, para compreendermos que tudo se concilia e reconcilia numa visão mais alta. 

A nossa ciência, posto que elementar, quando se entrega ao estudo do espaço e dos mundos, não provoca, desde logo e imediatamente, um sentimento de entusiasmo, de admiração quase religiosa? Lede as obras dos grandes astrónomos, dos matemáticos de génio. Dir-vos-ão que o universo é um prodígio de sabedoria, de harmonia, de beleza e, que já na penetração das leis superiores se realiza a união da Ciência, da Arte e da Religião, pela visão de Deus, na sua obra. Chegado a essas alturas, o estudo, converte-se em contemplação e o pensamento em prece

O Espiritualismo moderno, vai acentuar, desenvolver, essa tendência, dar-lhe um sentido mais claro e mais rigoroso. Pelo lado experimental, ainda não é mais do que uma ciência; pelo objectivo das suas investigações, penetra nas profundezas invisíveis e eleva-se até aos mananciais eternos, donde dimanam, toda a força e toda a vida. Por essa forma, une o homem ao Poder Divino e torna-se uma doutrina, uma filosofia religiosa. É, além disso, o laço que reúne, as duas humanidades. Por ele, os Espíritos prisioneiros na carne e os que estão livres, chamam e respondem uns aos outros. Entre eles, estabelece-se uma verdadeira comunhão. 

Cumpre, pois, não ver nele uma religião, no sentido restrito, no sentido actual, dessa palavra. As religiões do nosso tempo, querem dogmas e sacerdotes e, a doutrina nova não os comporta; está patente, a todos os investigadores. O espírito de livre crítica, exame e verificação preside às suas investigações. 

Os dogmas e os sacerdotes, são necessários e sê-lo-ão por muito tempo ainda, às almas jovens e tímidas, que todos os dias penetram, no círculo da vida terrestre e não se podem reger por si, nem analisar, as suas necessidades e sensações. 

O Espiritualismo moderno, dirige-se principalmente às almas desenvolvidas, aos espíritos livres e emancipados, que querem por si mesmos, encontrar a solução dos grandes problemas e, a fórmula do seu Credo. Oferece-lhes uma concepção, uma interpretação das verdades e das leis universais, baseada na experiência, na razão e no ensino dos Espíritos. Acrescentai a isso, a revelação dos deveres e das responsabilidades, única condição que dá base sólida, ao nosso instinto de justiça; depois, com a força moral, as satisfações do coração, a alegria de tornar a encontrar, pelo menos com o pensamento, algumas vezes até com a forma, (vi) os seres amados que julgávamos perdidos. À prova da sua sobrevivência, junta-se a certeza de irmos ter com eles e com eles, reviver vidas inumeráveis, vidas de ascensão, de felicidade ou de progresso. 

Assim, se esclarecem, gradualmente, os problemas mais obscuros, entreabre-se o Além; o lado divino dos seres e das coisas se revela. Pela força, desses ensinamentos, a alma humana cedo ou tarde subirá e, das alturas a que chegar, verá que tudo se liga, que as diferentes teorias, contraditórias e hostis na aparência, não são mais do que aspectos diversos, de um mesmo todo. As leis do majestoso universo, resumir-se-ão, para ela, numa lei única, numa força ao mesmo tempo inteligente e consciente, modo de pensamento e acção. Por ela encontrar-se-ão ligados, numa mesma unidade poderosa, todos os mundos, todos os seres, associados numa mesma harmonia, arrastados para um mesmo fim. 

Dia virá, em que todos os pequenos sistemas acanhados e envelhecidos, se fundirão numa vasta síntese, abrangendo todos os reinos da ideia. Ciências, filosofias, religiões, divididas hoje, reunir-se-ão na luz e será então a vida, o esplendor do espírito, o reinado do Conhecimento

Nesse acordo, magnífico, as ciências fornecerão a precisão e o método na ordem dos factos; as filosofias, o rigor das suas deduções lógicas; a Poesia, a irradiação das suas luzes e a magia das suas cores; a Religião, juntar-lhes-á as qualidades do sentimento e a noção da estética elevada. Assim, se realizará a beleza na força e na unidade do pensamento. A alma orientar-se-á para os mais altos cimos, mantendo ao mesmo tempo, o equilíbrio de relação necessário para regular a marcha paralela e ritmada da inteligência e da consciência na sua ascensão, para a conquista do bem e da verdade

/… 

(i) O Professor Charles Richet assim o reconhece: “A Ciência nunca deixou de ser uma série de erros e aproximações, elevando-se constantemente para constantemente cair com rapidez tanto maior quanto mais elevado é o seu grau de adiantamento.” (Anais das Ciências Psíquicas, Janeiro de 1905, pág. 15.)
(ii) Ver a minha obra No Invisível, (passim). 
(iii) Ver Cristianismo e Espiritismo, cap. V. 
(iv) Cristianismo e Espiritismo (1ª parte, passim). 
(v) “Sir O. Lodge, reitor da Universidade de Birmingham, membro da Academia Real, vê nos estudos psíquicos o próximo advento da nova e mais livre religião (Annales des Sciences Psychiques, Dezembro de 1905, pág. 765.) Ver também Os fenómenos psíquicos, pág. 11, de Maxwell, advogado geral na Corte de Apelação de Paris. 
(vi) Ver: No Invisível - “Aparições e materializações de Espíritos”. 


Léon Denis, O Problema do Ser, do Destino e da Dor, Primeira Parte O Problema do Ser, I A evolução do pensamento, 2º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Sin título (detalhe), de uma pintura atribuída a Josefina Robirosa

segunda-feira, 11 de abril de 2022

O Homem e a Sociedade ~


Capítulo V 

O Significado Espírita do Materialismo Dialéctico

Nos tempos actuais, o materialismo dialéctico encontra-se no auge, devido a considerar-se o seu método de conhecimento como o novo instrumento filosófico com o qual se pode interpretar a realidade histórica e, porque pode determinar uma transformação social que redunde num tipo de sociedade nova. 

Segundo os seus princípios, o homem deixa de ser uma entidade que conduz a marcha dos fenómenos sociais, para converter-se numa máquina manejada pelas forças exteriores. Deste modo, a matéria é que tem preeminência sobre o espírito, convertendo-se o Ser numa representação físico-química. Esquecemos assim que o indivíduo possui uma realidade metapsíquica, que supera em todos os sentidos o seu mundo corporal. 

Na dialéctica de Hegel, os fenómenos materiais são apenas objectivações da Ideia e, o mundo subjectivo desenvolve-se por uma lei de contradições que se opera através de uma tese, uma antítese e uma síntese. Penetrando na filosofia dialéctica de Hegel, compreenderemos, com assombro, que ela está baseada no mesmo processo da filosofia palingenésica do espiritismoGustave Geley, referindo-se a Hegel, disse: 

“Na filosofia de Hegel encontram-se nitidamente as ideias de evolução e involução. O absoluto, que não é mais do que um ideal puro, sem realidade alguma, desenvolve-se para chegar à plena consciência de si mesmo. Isto origina a evolução, que Hegel chama o porvir. O desenvolvimento opera-se em três fases ou tempos: primeiro, estado de pura virtualidade, chamado por Hegel: tesesegundo, delimitação e divisão, isto é: a antíteseterceiro, desaparecimento das delimitações e a identificação dos contrários, numa síntese superior. 

“Esta síntese, por vezes, converte-se logo no ponto de partida de um movimento análogo, que se repete até ao infinito. Tese, antítese e síntese reaparecem constantemente, em todos os momentos do desenvolvimento do Ser. Na sua evolução, o Ser realiza todos os progressos e chega, deste modo, à plena consciência de si mesmo. (1) 

A exacta interpretação que Geley faz de Hegel leva-nos a supor um grande porvir para a função ideológica que a palingenesia dialéctica desenvolverá. 

Hegel escreveu a sua Fenomenologia do Espírito afastando-se de todo o dogma. Geley, em plena actualidade, fez outro tanto com o seu extraordinário livro Do Inconsciente ao Consciente. Assim, para Geley, o Absoluto de Hegel chama-se Dinamopsiquismo e, evolui do inconsciente ao consciente; de maneira que Espírito Absoluto do filósofo alemão e o Dinamopsiquismo do metapsiquista francês se nos apresentam como uma mesma entidade metafísica, cujas três fases de tese, antítese síntese da dialéctica concordam com a trilogia espírita de nascer, morrer renascer. Como poderemos ver, o nascimento corresponderia à tese, a morte à antítese e o renascimento à síntese. 

Marx inverteu, como sabemos, o sentido original da dialéctica, acreditando demonstrar dessa maneira que o mundo material é que determina a realidade espiritual. Contudo, os fenómenos metapsíquicos dão razão à interpretação dialéctica de Hegel, demonstrando que por trás de todo o fenómeno material oculta-se um ser teleológico, que revela uma presença inteligente e espiritual. Os fenómenos de materialização e desmaterialização julgam o materialismo dialéctico de maneira terminante. Pois se o Espírito Absoluto de Hegel e o Dinamopsiquismo de Geleyem circunstâncias especiais, se materializam e desmaterializam, isso demonstra que a realidade material não é a que impulsiona o processo histórico, mas sim a Ideia ou realidade espiritual. 

Chegamos assim à conclusão de que o determinismo histórico está movimentado por uma causalidade espiritual, cujo motor psíquico é a parte fundamental do Ser. 

Tratamos, em seguida, de interpretar a lei materialista dialéctica de negação da negação, que, segundo a filosofia espírita, corresponde ao processo de evolução da involução. 

Com efeito, quando o materialismo dialéctico afirma que as coisas são processos materiais, que se transformam e se desenvolvem, não faz outra coisa senão mostrar-nos um processo dialéctico espiritual, porque, se as coisas são processos, estes confirmam a tese palingenésica do Ser, quando nos explica que é um factor psíquico o determinante da evolução da involução (no materialismo dialéctico: negação da negação). 

Mas antes de prosseguir, façamos algumas breves reflexões sobre esta teoria, chamada negação da negação pela filosofia Materialista dialéctica. 

Para o espiritismo, é o conceito de negação que redunda na desordem, no caos, na morte e no nada. De maneira terminante, a negação não é mais do que a base ideológica do existencialismo ateu. Se tudo isto implica o conceito de negação o materialismo dialéctico nunca poderá falar de uma verdadeira negação de negação, por lhe faltar uma ideologia transcendental, que dê sentido e finalidade à existência e ao Universo. 

A sua interpretação da história sempre se faz no conceito de negação, já que a sua própria ideologia é uma consequência da negação de toda a teleologia espiritual do homem e do mundo. Nenhuma ideia ou sistema que não aceite o espírito, como o expõe a filosofia espírita, poderá aspirar a uma posição verdadeira ao conceito de negação, visto que este não é mais do que um encontro com o nada. (2) 

A negação é uma propriedade do Nada e, uma real negação da negação só poderá efectuar-se sobre o fundamento da vida eterna e da concepção de um homem infinito. Então, destruir negação nas coisas é trabalho do espiritualismo espírita e, não do materialismo dialéctico, assente sobre a ideia do nada e da morte definitiva do indivíduo, isto é, sobre o conceito de negação, dentro do qual cabem todas as formas ideológicas que se opõem à vida e à evolução palingenésica. 

Se, como afirma a dialéctica materialista, todas as coisas são processos, necessariamente a identidade e coesão das mesmas para que se mantenham, devem corresponder a um númeno psíquico, já que não pode; haver processo se não houver antes harmonia no formal. Consequentemente, a matéria, para estar submetida a processos, deve ser conduzida por algo e, esse algo não é mais do que o Espírito Absoluto de Hegel ou o Dinamopsiquismo de Geley

O materialismo dialéctico silencia a este respeito. Não explica nada sobre esse factor essencial, que mantém o processo formal das coisas. E, é aqui, que a realidade do fenómeno metapsíquico se impõe e, por ele fica demonstrado que o Universo é o que Geley chama Dinamopsiquismo Essencial. É este facto que renova a filosofia idealista por meio do perispírito, órgão psíquico do espírito, através do qual o Absoluto de Hegel deixa de ser um puro ideal sem realidade nenhuma, como dizia Geley ao apreciar a dialéctica hegeliana. 

Se todas as coisas são processos, como afirma o materialismo dialéctico, o próprio homem resultará um dinamopsiquismo individual, cuja natureza o revelará como um ser palingenésico. É aqui que se nos apresenta o processo dialéctico de tese, antítese e síntese, concordando admiravelmente com a trilogia espírita de nascer, morrer renascer, verdadeiro fundamento da negação da negação, ampliada pela tese palingenésica de evolução da involução. 

/… 

(1) Geley, Ensaio de Revista Geral e de Interpretação Sintética do Espiritismo. 
(2) Título de um livro de Helmut Kuhn. 


Humberto Mariotti (i)O Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, Do Materialismo Histórico a uma Dialéctica do Espírito, 1ª PARTE O NÚMENO ESPIRITUAL NOS FENÓMENOS SOCIAIS, Capítulo V – O Significado Espírita do Materialismo Dialéctico (1 de 3), 8º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Alrededores de la ciudad paranóico-crítica: tarde al borde de la historia europea | 1936, Salvador Dali)

domingo, 3 de abril de 2022

Deus na Natureza ~


~ a vontade do homem ~ 
(II) 

  Os factos a seguir, de ordem geral ou particular e, as considerações que eles sugerem, oferecemo-los aos que repetem com Moleschott (i), Büchner (i) e o seu rancho, que o homem segue os seus pendores e a reflexão nada vale à face das inclinações e tendências, sejam elas naturais ou adquiridas. 

  Sábios, literatos, artistas, todos quantos se votam ao apostolado das mais transcendentes verdades e todos quantos se enobreceram pelas virtudes do coração, jamais saíram privativamente de uma classe ou de uma carreira da hierarquia social. Ao contrário, saíram indiferentemente das oficinas, como da lavoura, da cabana, como do palácio. E os mais humildes atingiram, por vezes, os postos mais culminantes, vencendo dificuldades aparentemente insuperáveis, que lhes atravancavam o caminho. Em muitos casos, parece que essas dificuldades foram os seus melhores auxiliares, obrigando-os a empregar todo o esforço possível no trabalho perseverante e, assim vivificando faculdades que, de outra forma, poderiam permanecer adormecidas. 

  O exemplo de obstáculos assim transpostos, os triunfos assim alcançados, são tão numerosos que justificam, quase inteiramente, este provérbio: com boa vontade tudo se consegue. 

  Grande número dos que mais se distinguiram na Ciência nasceram em condições sociais tidas como incapazes de proporcionar talentos, particularmente científicos. Em lugar das combinações químicas do hidrogénio e do fósforo, em lugar dos efeitos da electricidade e dos nervos, temos para apresentar estes grandes caracteres, que, do fundo das camadas sociais mais problemáticas, se elevaram aos pináculos da Ciência, a saber: Copérnico, filho de um padeiro polaco; Galileu, perseguido por amor à verdade; Képler, filho de um taberneiro e caixeiro de taberna, por sua vez, sempre atormentado com a sua miséria pecuniária; d’Alembert, enjeitado e encontrado certa noite invernosa pela mulher de um vidraceiro nas escadas de uma igreja; Newton, filho de um pequeno proprietário de Granthan; Laplace, filho de um pobre camponês de Beaumont, perto de Honfleur; W. Herschell, organista de Halifax; Arago, devendo toda a sua glória à perseverança no estudo desde jovem; Ampère, pesquisador solitário; Humphry Davy, criado de um farmacêutico; Faraday, encadernador; Franklin, aprendiz de tipógrafo; Diderot, filho de um cutileiro; Cuvier, Geoffroy Saint-Hilaire e cem outros; o físico Hautefeuille, filho de um padeiro de Orleães; Gassendi, pobre camponês dos Baixos-Alpes; o mineralogista Hüy, filho de um tecelão; Buffon, que exigia, para se levantar e combater a preguiça, que o acordassem a jactos de água fria (a sua saúde, mau grado ao que dizem os nossos adversários, para nada lhe serviu e os seus maiores trabalhos foram realizados no decurso de longa e cruel enfermidade); o químico Vauquelin, aldeão de Saint-André d’Hébertot (Calvados), que, depois de auxiliar de farmácia, chega a Paris de saco às costas, com um franco na algibeira. 

  Em que o azoto e o fósforo entravam na secreção da vontade destes sábios ilustres e, de que maneira o carbono se comportou para os levar ao fastígio da projecção intelectual? Mau grado às circunstâncias desfavoráveis com que tiveram de lutar no início da vida, estes homens eminentes alcançaram, apenas pelo exercício de suas faculdades, uma reputação sólida e duradoura, qual lhes não granjeariam todos os tesouros da Terra. 

  De nossa parte, citaremos agora os cirurgiões John Hunter, Ambroise Paré e Dupuytren, nascidos de condições humildes. 

  Conta-se que Dupuytren, quando no colégio da Mancha, ocupava com outro colega um quarto que tinha por todo o seu mobiliário três cadeiras, uma mesa e uma espécie de cama, na qual os dois se alternavam para descansar. Tão exíguos eram os seus recursos, que, muitas vezes, passavam a pão e água. Dupuytren começava o trabalho às 4 horas da manhã e nós sabemos, hoje, que ele foi o maior cirurgião do seu tempo. Citaremos, ainda, Joseph Fourrier, filho de um alfaiate de Auxerre e o naturalista Conrad Gessner, filho de um pobre curtidor de Zürich. Citaremos ainda: Pedro Ramas, Shakespeare, Voltaire, Rousseau, Moliére, Beaumarchais, grandes obreiros do pensamento, que derrubaram, exclusivamente com a sua força mental, as barreiras que as castas sociais opunham ao vulgo. 

  Fácil nos seria exarar infinitos exemplos deste quilate. Em todos os ramos da actividade humana – Ciências, Belas-Artes, Literatura, Comércio, Indústria – eles são tão numerosos que chegam a dificultar a escolha entre tantos homens notáveis cujo êxito lhes adveio somente do trabalho e do esforço paciente (ii). Basta, por exemplo, lançar um olhar nos domínios da Geografia e assinalar entre os grandes descobridores Cristóvão Colombo, filho de um cardador de Génova; Cock, caixeiro de uma loja no Yorkshire e, Livingstone, operário de uma fiação de tecidos perto de Glaacow. Entre os papas, Gregório VII nasceu de um carpinteiro, Sixto V de um pastor e, Adriano VI de um pobre canoeiro. Na sua juventude, paupérrimo, Adriano, que na impossibilidade de comprar uma vela, preparava as lições ao relento, aproveitando a iluminação pública. Ninguém vislumbra em tudo isto a influência do oxigénio. 

  Não é senão pelo exercício autónomo de suas faculdades que uma criatura pode adquirir o saber e a experiência que, reunidos, produzem a sabedoria. E, qual dizia Franklin, é tão pueril esperar a posse desses bens sem esforço e sem trabalho quanto o seria contar com uma colheita em terreno sem lavra nem semeadura. 

  Dois irmãos, provindos do mesmo Casal, podem receber a mesma educação, ter a mesma liberdade de acção, viverem juntos, nutrirem-se do mesmo ar e dos mesmos alimentos e nada impedirá que um se torne ilustre e o outro fique na mediocridade. A quanta gente se poderiam endereçar estas palavras do velho bispo de Lincoln ao irmão, homem indolente, que lhe pedia fizesse dele um grande homem: – “certo, se a tua charrua se partir posso mandar consertá-la e, se te morrer um boi posso comprar-te outro; mas não posso fazer de ti um grande homem, uma vez que lavrador te encontrei e sou obrigado a deixar-te como tal”. 

  Riquezas e bem-estar não são indispensáveis ao desenvolvimento das altas faculdades humanas, pois, se assim fora, não haveria no mundo e, de todos os tempos, notabilidades desabrochadas das mais ínfimas camadas sociais. A química alimentar nada tem que ver com a produção intelectual. 

  Longe de ser um mal, a pobreza, quando provida de energia e iniciativa pessoal, pode transformar-se em benefício, uma vez que faz sentir ao homem a necessidade de lutar com o mundo, onde, a despeito dos que compram o bem-estar a preços degradantes, também há confiança, justiça e triunfo para os valorosos e honestos. A fortuna há mesmo, muitas vezes, prejudicado os seus privilegiados. Em compensação, encontramos exemplos favoráveis à nossa tese, entre aqueles que, inspirados pela fé ou ciosos da felicidade do seu próximo, renunciaram, voluntariamente, aos gozos mundanos, aos poderes e honras da Terra, descendo de sua posição culminante para dedicar-se à beneficência e instrução das massas. 

  “O mundo é escravo da energia, dizia Alexis de Tocqueville, nem houve fase de vida na qual pudéssemos conceber o repouso; a luta interior e, mais ainda a exterior, é necessária e tanto maioritariamente necessária quanto mais envelhecemos. Comparo o homem a um viajante que caminha, sem parar, para uma região cada vez mais fria e que, quanto mais avança, mais precisa de se agitar. A grande enfermidade da alma é o frio e para combater esse mal temível é preciso, não só manter activo o espírito pelo trabalho, mas também pelo contacto com os seus semelhantes e com os negócios temporais.” 

  Estas palavras, justificou-as o seu autor com o exemplo pessoal. 

  Em plena actividade, ei-lo que perde a vista e, depois, a saúde, mas não perde nunca o amor à verdade. Ainda quando combalido ao ponto de ser carregado ao colo como uma criança, a sua indómita coragem não o abandona. Completamente cego e inválido, nem por isso termina a sua carreira literária, justificando-a com estas nobres palavras bem dignas de serem contrapostas à hipótese materialista. “Se, como me apraz acreditar, o interesse da Ciência se inclui no número dos grandes interesses nacionais, eu dei ao meu país o que lhe dá o soldado mutilado no campo de batalha. 

  “Seja qual for o destino dos meus trabalhos, também espero que este exemplo não fique perdido. Quereria eu que ele servisse para combater essa debilidade moral, que é a doença da nova geração; que pudesse reconduzir ao caminho recto da vida alguma dessas almas enervadas que se lamentam de lhes faltar a fé, sem saberem onde procurá-la e, que, procurando por toda a parte, em parte nenhuma encontram objecto de culto e devotamento. 

  “Por que dizer, com tanto amargor, que não há ar para todos os pulmões, emprego para todas as inteligências? Não temos aí o estudo sério e calmo? Não haverá nele um refúgio, uma esperança, uma carreira ao alcance de todos nós? Com ele, atravessamos os dias aziagos sem lhes sentir o peso. Com ele construímos o destino, usamos nobremente a vida. Eis o que faço e voltaria a fazê-lo ainda, se houvesse de recomeçar a marcha, a fim de reencontrar-me justo onde me encontro. Cego e sofredor. Posso dar um testemunho que, penso, não será suspeito: o de haver no mundo algo melhor e mais valioso que os gozos materiais que a fortuna e até a saúde: – o devotamento à Ciência.” 

  Preferimos sentimentos que tais à química da inteligência. Estendemo-nos confiadamente nestes exemplos porque, acima de tudo, dão testemunho do verdadeiro carácter do homem superior e da absurdidade dos materialistas que ousam reduzir esse carácter a simples função da matéria, a uma disposição natural do cérebro. Não queremos concluir o protesto sem falar em Bernard Palissy, homem cuja vida vale por um protesto formal à hipótese dos nossos adversários. 

  Lembremos, em primeiro lugar, que Palissy nasceu em 1510, sendo seu pai um pobre vidraceiro da Capela Biron. Não pôde, assim, receber a menor instrução; não teve, qual confessava ele próprio, “outro livro além do céu e da terra, que a toda a gente é dado ler e entender”. Aos vinte e oito anos, paupérrimo, instalou-se numa choupana, em Saintes, como agrimensor e pintor de vidros. Casado e pai de filhos cuja subsistência se lhe tornava impossível, concebeu a ideia fixa de fabricar loiça vidrada e imitar Luca della Robbia. Na impossibilidade de viajar pela Itália para aprender a técnica, houve de resignar-se a investigar, tateante, no ambiente acanhado em que se encontrava. 

  Depois de muito conjecturar sobre as matérias que entravam na composição do esmalte, fez demoradas experiências e acabou reunindo as substâncias que lhe pareceram adequadas. Comprou potes de barro comum, partiu-os e recobriu os fragmentos com as massas que preparava, submetendo-as ao forno para tal fim construído. As tentativas falhavam e o que só conseguia era potes partidos, com grande prejuízo de carvão, de substâncias químicas, além de tempo e trabalho. 

   Afrontando as lamentações da esposa, o choro dos filhos e a ironia dos vizinhos, nem assim desanimava. A sua companheira não se conformava em ver assim dissipar-se em fumo os já minguados recursos domésticos. Contudo, haveria de submeter-se, uma vez que o marido estava empolgado por uma ideia que ninguém e nada no mundo lhe desvaneceria. 

  As experiências prosseguiam por meses e anos. Descontente com o primeiro forno, construiu outro fora de casa. Neste, queimou outra lenha, desperdiçou outras drogas e potes, perdeu tanto tempo e dinheiro que acabou caindo em extrema miséria. No entanto, persistiu. Em obstinação cruel! 

  Não podendo já acender o seu forno, levava o material a uma fábrica distante mais de meia dúzia de quilómetros e o fracasso continuava. Desapontado, mas não desenganado, resolve, então, construir um forno para vidro, perto de casa. E o fez ele mesmo, com as próprias mãos. Conduzia da cerâmica, às costas, o tijolo; ajustava-o, esboçava-o; era pedreiro, carregador, ceramista, tudo! Ao fim de um ano, ei-lo com o seu novo forno e os vasos preparados para uma nova experiência. Apesar do esgotamento quase absoluto dos seus recursos, conseguira acumular grandes reservas de lenha. Acendeu o forno, recomeçou o trabalho, não perdia de vista a tarefa, um minuto que fosse. Dia e noite a postos, vigilante, ei-lo a meter lenha, a graduar o fogo e, contudo, o esmalte não derretia. Pela segunda vez vinha o Sol surpreendê-lo na faina e a esposa lhe trazia o parco almoço. Nada no mundo o tiraria da boca do seu forno, no qual, desesperado, lançava a lenha acumulada. O Sol recolhia-se e o nosso homem não. Pálido, desfigurado, barba crescida, sobreexcitado sim, mas heróico, indefesso junto ao forno, para ver quando o esmalte se fundiria. Um, dois, seis dias, enfim, transcorreram sem alteração. O invicto Palissy continuava a trabalhar, a vigiar, mau grado o desmoronamento de suas esperanças. 

  O esmalte não se fundiu.... Pôs-se, então, a contrair dívidas, a comprar novos vasos, mais lenha... 

  Os potes devidamente revestidos e cuidadosamente colocados no forno, ainda mais uma vez se acendeu o fogo. Era a última tentativa do desespero. Ele fez um braseiro enorme e, não obstante a alta temperatura, nada conseguiu. A lenha já escasseava. Como alimentar, até ao fim, aquele fogaréu infernal? Olhou em volta, os seus olhos incidiram na cerca do jardim, madeira enxuta, facilmente combustível. Que poderia valer aquela cerca comparada com a experiência cujo êxito dependeria, talvez, de algumas toras mais? As cercas foram arrancadas, lançadas na fornalha. Sacrifício inútil! 

  Ainda não seria desta vez... Mas dez minutos de calor – quem sabe – e tudo estaria conseguido... Lenha, portanto, mais lenha e só lenha, a qualquer preço, eis o que precisava! Que ardessem os móveis, contanto que não perdesse aquela experiência. Estrondo horrível se ouviu em toda a sua casa, logo seguido dos gritos da mulher e dos filhos, já agora temerosos de que o homem houvesse enlouquecido. Ei-lo que chega, sobraçando destroços de mesas e cadeiras! A fornalha tudo recebe, tudo devora. Não se funde o esmalte, ainda assim? Chega a vez dos soalhos... A família, diante disso, foge espavorida e vai pelas ruas a gritar que o seu chefe enlouquecera. A essa altura, o inventor encontrava-se absolutamente exausto, gasto de tantas lutas, jejuns, vigílias, sobressaltos. 

  Endividado e a coberto do ridículo, dir-se-ia presa de um desastre irreparável. E, contudo, acabara por descobrir o segredo, a última provisão de calor derretera o esmalte. Os vasos de barro escuro lá estavam transformados em loiça branca, que ele deveria realmente achar belíssima. Doravante, podia afrontar com paciência todos os remoques, ultrajes e recriminações. O homem de génio, graças à tenacidade na sua inspiração, acabava de colher a palma da vitória. Arrancara um segredo à Natureza e podia com mais calma aguardar os proventos da sua descoberta. 

  E não foi senão ao fim de dezasseis anos de labor assíduo e penosas experiências, que, isolado, aprendendo consigo, sem a ajuda de todos, pôde colher o fruto do seu esforço. Não tardou, porém, dada a sua independência de ideias em matéria religiosa, fosse denunciado e visse invadida e depredada a sua oficina por uma turba ignara e fanática, de conivência com as autoridades. E enquanto assim lhe destroçavam toda uma cerâmica preciosa, era ele preso e conduzido a Bordéus, onde aguardaria o cadafalso ou a fogueira. Salvou-lhe a vida o Condestável de Montmorency, não – diga-se – em atenção às suas crenças religiosas, mas às suas faianças. 

  Dali, foi a Paris, onde o chamaram os trabalhos encomendados pelo Condestável e pela Rainha-mãe, hospedando-se nas Tulherias, enquanto duraram esses trabalhos. Mas, a guerra incessante que movia os adeptos da Astrologia, da Alquimia e da bruxaria, acarretou-lhe uma nova denúncia como herético. Novamente preso, ficou cinco anos na Bastilha e ali morreu, em 1589, com a idade de oitenta anos. Assim acabou e assim foi recompensado o inventor da loiça esmaltada e das figulinas (iii)

  Diante deste magnífico exemplo de coragem e perseverança – não da coragem proveniente de uma exaltação nervosa, qual a produzem a cólera, o medo, o cheiro da pólvora, a música marcial, visto que nestes casos espontâneos os adversários poderiam alegar a sensação – mas, de uma energia que se desdobra por dezasseis anos afrontando todos os reveses; de uma vontade que ultrapassa todos os obstáculos como que avassalando o corpo e as afeições do sangue. Diante destes exemplos, dizemos, diante de todas as glórias da nossa espécie pensante; diante de todas estas chamas que se consumiram para brilharem na posteridade das gerações; diante dos anseios cordiais da Humanidade e diante dos testemunhos da sua própria consciência, com que direito se vem averbar de ilusão a vontade e de subsequente a força moral? 

  Com que direito ousam negar a energia independente e o carácter predominante destas almas de rija têmpera? A que pretexto reduzem a potência destes corações a estados fisiológicos, quando não a circunstâncias fortuitas? E como se leva a fantasia a estabelecer como princípio que “as nossas resoluções variam com o barómetro”? 

  Objectar-se-á que o benemérito ceramista, cujo perfil acabamos de traçar, representa uma excepção no seio da Humanidade? Mas, uma tal evasiva só poderá provir da ignorância e carência de observação. Nomes mais ilustres que o de Palissy fulguram por aí a outros títulos e nos quais admiramos a mesma obstinação e firmeza. 

/… 
(ii) Ver Flammarion – Les Heros du Travail, discurso Inaugural da Associação Politécnica do Alto Marne, (1866) e conferência pronunciada no Asilo Imperial de Vincenes. Compreende-se que não possamos aqui chamar a atenção para esses factos importantes e antepô-los simplesmente às fantasias materialistas. 
(iii) Este relato é parcialmente extraído de Self-help, edição de A. Talandier. Muitos outros tipos poderíamos apresentar como expoentes da independência e poder da vontade. Alongamo-nos sobre a vida de Palissy, por ser um exemplo dos mais eloquentes que contradizem a teoria adversa. 


Camille Flammarion, Deus na Natureza, Terceira Parte; (3) A Vontade do Homem (2 de 6), 28º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva)_1895, pintura de James Jebusa Shannon)  

terça-feira, 22 de março de 2022

o grande desconhecido ~


O Problema das Mistificações 

(I de II) 

Durante um século tudo se fez para reduzir o Espiritismo a um caso de truques e malabarismos. A Igreja insistia na tese diabólica. E os cientistas que se atreviam a enfrentar a questão com seriedade eram ridicularizados, ameaçados e perseguidos. Criou-se o preconceito negativo da doutrina e uma imagem falsa de Kardec. Todos os grandes médiuns (i), inclusive Daniel Douglas Home, que nunca foi espírita, eram sistematicamente caluniados. Cientistas eminentes, como Charles RichetWilliam CrookesFriederich ZöllnerRussel WallaceSchrenck-Notzing e tantos outros, incontestáveis luminares da Ciência, foram submetidos a ataques ferozes. Em 1935 Richet morria e os inimigos da verdade, cevados nos proventos da mentira, proclamaram por toda a parte que, com o grande fisiologista francês, Prémio Nobel de Medicina, morrera também a Metapsíquica, a goécia (i) moderna, ciência monstruosa de profanação dos túmulos. Não sabiam os espertalhões que, antes de morrer, a Metapsíquica já se havia reencarnado na Universidade de Duke (i) (EUA) em novo corpo e com o novo nome de Parapsicologia. Os Profs. Joseph Banks Rhine (americano) e William McDougall (inglês) eram os fundadores dessa nova escola científica de pesquisa dos fenómenos espíritas. Com recursos técnicos de pesquisa, aplicando o método quantitativo sob controlo estatístico dos resultados, a Parapsicologia rompeu, em dez anos de lutas e trabalhos exaustivos, todas as barreiras dos preconceitos, da ignorância e dos interesses subalternos e se impôs ao reconhecimento universitário mundial, conseguindo mesmo furar a cortina de ferro do materialismo soviético e despertar o mais vivo interesse na URSS e em toda a sua órbita de influência. 

Diante dessa vitória esmagadora, os adversários mudaram de táctica e passaram também a tratar do assunto para reduzi-lo aos mínimos efeitos possíveis. O problema das fraudes e mistificações (i) morreu por si mesmo, perante as novas possibilidades de controlo absoluto das pesquisas. Esta última filha do Espiritismo, a Parapsicologia, tornou-se disputada por todos como se não tivesse a menor ligação e o mínimo laço de família com a Astronáutica, que se interessou pelos seus poderes e a tivesse transformado em sua valiosa auxiliar na conquista do Cosmos. A Física, ditadora das Ciências (segundo Rhine)confirmou a veracidade das suas proposições audaciosas, descobriu a antimatéria e com ela um novo espaço que se abria para o Outro Mundo. Os russos descobriram o corpo bioplásmico da sobrevivência do homem à morte e as investigações sobre a reencarnação tomaram conta do mundo científico. – Já não é possível negar a verdade espírita. Onde estão os trapaceiros que atavam panos às pernas das mesas e fotografavam essa ridicularia para explicar as famosas mesas girantes (i) como o truque mais grosseiro e indigno que se possa imaginar? Para onde fugiram os teóricos e os fantasmas de papelão e das alucinações visuais? Tudo isso se tornou tão ridículo, perante as evidências científicas da verdade, que hoje somente os pregadores religiosos de arrabalde e os pastores-camelôs (i) da salvação ainda se atrevem a gritar, perante as assembleias de fanáticos, que o Espiritismo é um instrumento do Diabo. 

Mas infelizmente os próprios espíritas inscientes se incumbiram (muitos deles travestidos de cientistas desconhecidos), de atiçar o fogo morto das velhas mistificações, tentando criar um antiespiritismo de orientação materialista-mecabicista (i), carregado de contradições internas e de todas as incongruências características de amadores sem formação. Ao mesmo tempo, extrovertendo as contradições internas, surgiram de mistura com o cientificismo (i) insolente – que considerava Kardec superado e as suas teorias empoeiradas – brotavam do chão, como as heresias do tempo de Tertuliano, estranhas florações de concepção arcaicas, mais velhas que o Reino de Sabá, eivadas de alucinações, loucura varrida e cheiro a enxofre. O Espiritismo regredia, nas mãos dos falsários, uns ingénuos e os outros vaidosos, às pretensões da alquimia medieval. Foi nessa fermentação espúria que explodiu a adulteração, elaborada em segredo e à porta fechada, como os assassinatos a punhal nos templos de Veneza. 

Procuramos dar a este episódio as cores necessárias, com as expressões e as comparações mais adequadas, porque ele é de grande importância na História do Espiritismo, o que vale dizer: na História da Evolução espiritual da Terra. O atentado a Kardec e a Jesus, à Doutrina Espírita e à Verdade Evangélica estava consumado. E nos trinta mil exemplares de O Evangelho Segundo o Espiritismo, que a Federação do Estado vendeu à larga por todo o Brasil, sob o prestígio do seu nome e do seu passado saíram impressos, para que todos lessem e aplaudissem, os esquemas do vandalismo planeado e já iniciado, que abrangiam toda a obra gigantesca da Codificação. E não houve nenhuma erupção vulcânica no meio espírita, contra essa insolência sem limites, a não ser a de um grupo pequenino e pobre. No silêncio mortal que se fez, por todo o Brasil, o único rumor sinistro era o do Véu do Templo, que se rasgava sozinho de alto a baixo, no salão vazio da antiga dignidade espírita. 

Tudo isso resulta das mistificações, não as ingénuas, tolas as mistificações das sessões de materialização, a que se dava tanta importância no passado e que hoje só podem acontecer entre criaturas desactualizadas e incapazes de tratar do assunto. As mistificações realmente perigosas são as doutrinárias e, estas procedem sempre de um conluio de homens e espíritos. Muitas Casas Espíritas começaram a deteriorar-se quando se entregaram à orientação de supostos mestres espirituais. Daí por diante, numa sequência natural, encheram-se de doutrinas próprias, chegando algumas a retirar dos seus cursos as obras de Kardec, fundando escolas meio igrejeiras e meio esotéricas, instituindo-se uma ginástica de passes classificados e manobrados ao estilo das antigas escolas magnéticas, criando ordens especiais do tipo de congregações marianas, chegando ao cúmulo de declarar em artigos de jornais que a sua linha doutrinária não era ortodoxa, mas heterodoxa. Isto queria, dizer que não seguiam a doutrina certa de Kardec, mas uma mistura de doutrinas espiritualistas. Todo o trabalho de Kardec, superando o espiritualismo infuso e confuso do passado para estabelecer uma linha racional de espiritualidade superior, ia por água abaixo. E ninguém percebia isso, aplaudindo aqueles que não conseguiram entender Kardec e por isso passando sobre ele afastavam a sua obra como empecilho, estorvo de velharia secular. Foi o teste inexorável da miséria cultural dos espíritas, do seu completo desconhecimento da doutrina e da sua falta de orientação histórica e filosófica. Nunca os espíritos mistificadores encontraram campo mais vasto, fecundo e propício à deformação total da Doutrina Espírita, para afastá-la da Terra justamente nesta hora grave e aguda de transição por que passamos. 

O problema das mistificações é permanente nos mundos inferiores, como o nosso. As criaturas incultas e grosseiras formam a maioria da população destes mundos. É evidente que a população desencarnada, espiritual, que sobrevive nas esferas circundantes ao planeta é da mesma natureza. Lá, como cá, enxameiam os espíritos vaidosos, sistemáticos (como advertiu Kardec), empenhados em passar as suas ideias aos homens. As ligações por afinidade formam os complôs de homens e espíritos que se julgam capazes de ensinar verdades absolutas. Basta a arrogância visível, embora disfarçada, às vezes, em falsa humildade, para mostrar aos observadores sensatos a que ordem e grau da escala espírita pertencem estas criaturas em conluio. Dos descuidados nada se pode esperar. Deixam-se levar facilmente e servem de instrumentos dóceis a todos os mistificadores. É contra isso que temos de lutar, sustentando firmemente a Obra de Kardec, que na verdade é o cumprimento da promessa do Consolador, a obra do Espírito de Verdade. Esse é um dos pontos-chave da doutrina. Quem não o compreender e não meditar sobre ele estará sempre sujeito a servir de instrumento aos mistificadores do além e do aquém. Restabelecer os ensinamentos do Cristo na sua pureza é a função do Espiritismo. Só a Doutrina Espírita tem condições para isso. Porque a revelação espiritual, confirmada pelas pesquisas e os estudos de Kardec, nos mostram que o Cristo não veio fundar uma religião, mas estabelecer os fundamentos de uma nova civilização. O seu ensino apresenta de forma sintética as três coordenadas doutrinárias: Ciência, Filosofia e Religião, que Kardec desenvolveu, sob a assistência constante do Espírito de Verdade. Há uma tese do Dr. Canuto de Abreu que contraria esta verdade histórica, suficientemente provada nas comunicações inseridas nas Obras Póstumas de Kardec e demonstrada ao longo de toda a sua obra. Os estudiosos têm de se prevenir contra estas ciladas da enorme e tumultuada bibliografia espírita. Por sinal que esta tese já vem marcada pelos seus absurdos e a sua incongruência. 

Vejamos bem a mecânica do processo histórico para podermos compreender a questão. Oliver Lodge e Léon Denis sustentaram veementemente a tese de Kardec, que nos apresenta o Espiritismo como uma síntese conceptual de toda a realidade. Isso quer dizer que a doutrina abrange na sua concepção toda a realidade acessível ao conhecimento humano. As conquistas actuais da Ciência e da Filosofia e as reformas em curso nas igrejas dão inteira razão a esta interpretação do Espiritismo. Coloquemos o problema num esquema esclarecedor, para tornar mais claros cada um dos seus aspectos: 

a) O conhecimento da realidade processa-se no contacto do homem com o mundo. Dos tempos primitivos à Civilização o homem luta sem cessar para dominar a Natureza. Esse domínio só é possível pela descoberta das leis naturais. Mas essa descoberta exige do homem a luta contra si mesmo. Porque o homem é um espírito condicionado pela encarnação num corpo de percepções animais. O homem está sujeito ao sensório, ou seja, à rede dos seus sentidos físicos que sofre o impacto de uma realidade externa e estranha à sua natureza íntima. Os sentidos lhe dão a percepção das coisas, mas ele elabora essa percepção na sua mente, sob a influência de lembranças espirituais (a reminiscência platónica do mundo das ideias) e ao formar no seu espírito os conceitos da realidade, pelo processo de abstracção, ele desenvolve o seu poder imaginativo. Os conceitos são imagens mentais de coisas e seres concretos, mas a essas imagens misturam-se os elementos provenientes dos desejos e anseios do homem. A realidade do homem é diferente da realidade natural concreta, como Descartes demonstrou que a imaginação avança para além da razão. Nesses avanços surgem as deformações do real e a falsificação do conhecimento. Todas as teologias sofreram desse mal e toda a cultura religiosa do mundo se desligou da realidade. As igrejas, as ordens espiritualistas, as irmandades secretas se impregnaram de elementos ilusórios, de pressupostos considerados como verdades fundamentais e assim por diante. A cultura mitológica do tempo de Jesus, que abrangia até mesmo o Judaísmo, aparentemente infenso ao mito, mas de facto envolvido numa mitologia grosseira, estava desligada da realidade, flutuando entre o mundo do espírito e o mundo da matéria. Javé, o Deus de Israel, assemelhava-se ao Zeus grego e ao Júpiter Romano na sua ira, no proteccionismo exclusivo de um povo, no gosto pelas homenagens e as reverências, no prazer de aspirar as carnes assadas e na volúpia pelo sangue de animais e dos homens. 

b) Talvez a única vantagem de Israel sobre os povos da época fosse precisamente a desvantagem do seu excessivo sociocentrismo, o egoísmo racista que atravessou os milénios e se conservou até mesmo na diáspora com a dureza do lendário diamante-Schamil com que Moisés teria escrito na pedra as tábuas da lei. Porque foi dessa centralização do ego que nasceu a possibilidade do aparecimento da primeira nação monoteísta do mundo. Javé não tinha condições, com o seu exclusivismo racista, para se transformar no Deus Único, mas o povo judeu aceitou-o como tal porque isso agradava às suas pretensões de superioridade. O deusinho intrigante e até mesmo alcoviteiro das tribos hebraicas, raivoso, parcial e contraditório, que punia com a lepra os que censuravam o seu amado Moisés e que após o Decálogo autoriza o seu protegido a realizar a bárbara matança do Sinai e revelava um espírito rancoroso de chefe tribal e um exibicionismo arrogante no tracto com os povos estranhos. Ao mesmo tempo, não dispunha de forças para impedir os assaltos de povos mais fortes e aguerridos aos seus pupilos que os egípcios e os babilónios, assírios e romanos conquistavam e submetiam à escravidão. Apesar disso, o povo judeu mostrou-se capaz de enfrentar todas as derrotas e decepções sem perder a confiança no seu Deus. Essa virtude estóica e essa fidelidade interesseira, aumentada por um proteccionismo escandaloso e, a coragem e tenacidade que demonstravam em todas as circunstâncias, deram a Javé uma posição excepcional. Não foi Deus, nesse caso, quem salvou o homem, mas o homem-judeu quem salvou o deusinho fanfarrão que lhe deu a Terra de Canaã, numa doação injusta, ilegal e bárbara, em que os beneficiados tiveram de conquistar o seu presente com batalhas alucinadas. Verdadeiro presente grego, que custou sacrifícios e perdas irreparáveis aos judeus ludibriados. Na verdade, Javé não deu nada, pois foram Moisés e Josué os conquistadores de uma nação tradicional, de estrutura feudal e uma cultura desenvolvida. Uma conquista militar longamente preparada nos quarenta anos de expectativa angustiosa no pequeno deserto do Sinai, com assaltos e pilhagens dos povos vizinhos. A destruição de Canaã foi um dos mais bárbaros genocídios da História. E sobre a terra ensanguentada, juncada de cadáveres, o povo ludibriado construiu os seus monumentos ao deus truculento, erguendo-lhe o Templo de Jerusalém com aras especiais para os sacrifícios de animais que Javé não podia comer, mas de cuja fumaça se alimentava aspirando-a pelas suas narinas divinais. 

Durante dois milénios se considerou o nascimento de Jesus em Israel como uma confirmação da grandeza de Javé. Mas essa grandeza era apenas uma fantasia, pois nem do ponto de vista humano, à luz dos sentimentos de justiça e dos princípios éticos se poderia ressaltar um só gesto de grandeza na atitude brutal de Javé. Hoje, à luz dos princípios espíritas, podemos compreender esta verdade assustadora, marcada a fogo nas páginas da própria Bíblia: 

c) Javé não era mais do que o espírito orientador do clã arrogante e ganancioso de AbraãoIsaac e Jacob na velha cidade mesopotâmica de Ur. Um guia espiritual de inferioridade inegável, deus guerreiro como os de Atenas e Roma, que se serviu da mediunidade espantosa de Moisés e dos Anciãos no deserto para se materializar entre aventureiros rudes e ignorantes, nas fumaradas de ectoplasma que envolviam em nuvens assustadoras a tenda do deserto. Nessas manifestações então inexplicáveis, Javé falava cara a cara com o seu Servo Moisés, dando-lhe o prestígio necessário para a consecução dos seus planos de conquista sanguinária. As pesquisas contemporâneas e actuais sobre esses fenómenos mediúnicos desvendaram o mistério. Os estudos de Max Freedom Long e André Lang, entre as tribos selvagens da Polinésia, revelavam o emprego de mana ou orenda, forças mágicas que Richet explicou racional e cientificamente como emanações orgânicas do corpo do médium e os russos provaram recentemente serem constituídas por um plasma físico formado de partículas atómicas livres. Javé, o Deus Supremo e Único, servia-se apenas dos elementos mágicos empregados pelos povos primitivos nos seus contactos com os espíritos. Esse mesmo elemento, que na sua expansão manifesta cheiro da ozona (i), foi considerado nas manifestações diabólicas da Idade Média como explosões de enxofre. Friederich Zöllner demonstrou, na Universidade de Upsala (Alemanha) que esse elemento, o ectoplasma, pode produzir explosões violentas, raios e relâmpagos, causando destruições como o poder da dinamite. Estas provas científicas modernas podem também explicar as manifestações ígneas assustadoras do Monte Sinai, no momento em que Moisés falava com Javé e este lhe aparecia em forma de silva ardente, segundo o Génese. 

Diante destas verificações, compreende-se a preferência de Jesus por Israel. E o maior milagre de Jesus apresenta-se como sendo a utilização do povo judeu, acostumado a essas manifestações mediúnicas, para o desenvolvimento da sua missão mediúnica de implantação na Terra da concepção do Deus único no plano social, transformando Javé numa imagem alegórica de Deus. A unicidade e universalidade dessa concepção foi obra exclusiva de Jesus, que viu a possibilidade de fazer de Israel o centro de expansão do Monoteísmo, que negou ao mesmo tempo o orgulho sociocêntrico de Israel e a multiplicidade dos deuses mitológicos. Daí as contradições profundas e insanáveis entre o Deus iracundo da Bíblia e o Deus ético, justo, providencial e universalmente paternal dos Evangelhos. A fusão absurda destes deuses antagónicos no Cristianismo explica-se pela incompreensão inicial e a deformação posterior dos ensinamentos de Jesus, através das lutas brutais e sanguinárias entre as seitas cristãs dos primeiros tempos. Os homens recebiam as palavras do Messias na medida das suas posições contraditórias. As condições do tempo eram propícias ao fanatismo e à História imparcial; escrita por pesquisadores universitários independentes, revela-nos o panorama de paixões exacerbadas, no meio de interesses políticos e sociais os mais diversos, que levavam facções violentas aos mais hediondos crimes. O Cristianismo que chegou aos nossos dias, através das igrejas cristãs do Ocidente e do Oriente, é a herança trágica das profanações. Os textos evangélicos falam por si mesmos, particularmente nas epístolas de Paulo e do Livro de Actos dos Apóstolos, do que foram as dissensões no próprio meio apostólico. Nem mesmo a Ressurreição de Cristo, que Paulo explicou de maneira clara e lapidar, chegou a ser compreendida. O culto pneumático, da manifestação dos espíritos, foi suprimido; a simplicidade livre das assembleias cristãs foi injectada de elementos complexos dos cultos religiosos pagãos e judeus; a comunhão memorial do Cristo com os discípulos através do pão e do vinho – praticada nas ceias cristãs e bem antes nos cultos canaanitas – foi transformada em sacramento sofisticado pela magia da transubstanciação; expressões evidentemente alegóricas que se tornaram em dogmas indiscutíveis, motivando morticínios de estarrecer. 

A comparação singela e tocante encerrada na expressão Cordeiro de Deus, referente aos sacrifícios de cordeiros nos altares do Templo para purificação de pecados, foi transformada em mistério sagrado que acobertou muitos crimes nefandos; a ressurreição no corpo espiritual tornou-se ressurreição absurda no corpo carnal, pela maneira como Tomé, o apóstolo dissidente, tocou as chagas de Cristo manifestado mediunicamente, acreditando tocar no corpo material já sepultado; Maria transformou-se numa das muitas virgens mães da Antiguidade de que trata Saint-Yves num livro excomungado; José passou de pai a padrasto numa posição equívoca e Deus perdeu novamente a sua unidade para se dividir no mistério de três pessoas distintas e um só Deus verdadeiro. Só por milagre a definição de JoãoDeus é Amor sobreviveu a esse terremoto com a pureza ingénua de uma flor nos destroços. Nem se compreende que isso tenha sido possível no meio do entrançado de garras e caudas peludas, cheirando a enxofre, que lutavam para escurecer o Céu e ensanguentar a terra. Os erros dos copistas, as adulterações conscientes dos intérpretes sectários, as substituições ingénuas de reformistas ignorantes passaram à margem dessa definição de Deus sem atingi-la. O mais espantoso é que essas interferências criminosas não cessaram até hoje. As pretensas actualizações de linguagem dos velhos textos prosseguem nos nossos dias, com as edições deformadas da Bíblia pelas instituições guardiãs da sua pureza. Criou-se o dogma da Palavra de Deus para o velho livro judaico, digno de respeito histórico, mas as vestais dos textos preferem as palavras dos homens, mutilando, distorcendo, aleijando o verbo divino em cada nova tiragem da Bíblia. Se Deus falou, os homens o corrigem, porque Deus ainda não aprendeu a sujeitar-se aos caprichos formalistas das igrejas. Pois mesmo com essa permanência inquietante da censura humana, as definições de Jogo ainda não foram mascaradas. 

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José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, XVIII – O Problema das Mistificações, (I de II), 20º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, acrílico de Costa Brites)