Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 29 de maio de 2022

Diálogos de Kardec ~


§ A música celeste ~ 

Certo dia, numa reunião familiar, o chefe dessa família, lera uma passagem de O Livro dos Espíritos, concernente à música celeste. Uma de suas filhas, intérprete amadora de música, pôs-se a dizer para consigo mesma: Mas não há música no mundo invisível! Parecia-lhe isso impossível; entretanto, não partilhou o seu pensamento. Na noite do mesmo dia, escreveu ela, espontaneamente, a seguinte comunicação: 

“Esta manhã, minha filha, o teu pai te leu uma passagem de O Livro dos Espíritos. Tratava-se de música e tu aprendeste que a do céu é muito mais bela do que a da terra. Os Espíritos acham-na muito superior à vossa. Tudo isso é verdade; no entanto, dizias intimamente: Como poderia ter sido Bellini, a vir dar-me conselhos e ouvir a minha música? Foi provavelmente algum Espírito leviano e farsante. (Alusão aos conselhos que o Espírito Bellini, por vezes lhe dava sobre a música.) Enganas-te, minha filha. Quando os Espíritos tomam sob a sua protecção um encarnado, o objectivo que perseguem é fazê-lo adiantar-se. 

“Assim, Bellini já não acha bela a sua música, porque não a pode comparar à do Espaço; mas, vendo a tua aplicação e o teu amor a essa arte, se te dá conselhos, é por sincera satisfação. Ele deseja que o teu professor seja recompensado de todo o seu esforço. Achando as suas composições muito infantis, face às sublimes harmonias do mundo invisível, ele aprecia o teu talento, que se pode qualificar de grande, aí nesse mundo. Acredita, minha filha, os sons dos vossos instrumentos, as vossas mais belas vozes, não poderiam dar-vos a menor ideia da música celeste e da sua suave harmonia.” 

Passados alguns instantes, diria a jovem: “Papá, papá, vou adormecer, vou cair.” Logo se prostrou numa poltrona, ao mesmo tempo que exclamava: “Oh! papá, papá, que música deliciosa!... Desperta-me, senão eu me vou.” 

Não sabendo os assistentes, aterrorizados, como fazer para a despertar, disse ela: “Água, água.” 

Com efeito, algumas gotas de água que lhe salpicaram no rosto, deram pronto resultado. Atordoada a princípio, voltou lentamente a si, sem a mínima consciência do que acontecera. 

Ainda na mesma noite, encontrando-se a sós, o pai da moça, recebeu do Espírito S. Luís (i) a seguinte explicação: 

“Quando lias à tua filha a passagem de O Livro dos Espíritos referente à música celeste, ela se mantinha na dúvida; não compreendia que no mundo espiritual pudesse haver música. Eis por que, depois, eu lhe disse que era verdade. Não tendo conseguido persuadi-la com a minha afirmativa, Deus permitiu que, para convencer-se, ela caísse em sono sonambúlico. Então, desprendendo-se do corpo adormecido, o seu Espírito, se lançou pelo Espaço e foi admitido nas regiões etéreas, onde ficou em êxtase produzido pela impressão da harmonia celeste. Foi por isso que exclamou: 

“Que música! que música!” Sentindo-se, porém, transportada a regiões cada vez mais elevadas do mundo espiritual, pediu que a despertassem, indicando-lhes o meio de o conseguirem: com a água. 

“Tudo se faz pela vontade de Deus. O Espírito de tua filha não voltará mais a duvidar. Embora, despertado, não guarde a lembrança nítida do que se passou, o seu Espírito, sabe agora, onde está a verdade. 

“Agradecei a Deus os favores de que beneficia esta moça. Agradecei-lhe dignar-se fazer-vos conhecer cada vez mais a sua omnipotência e a sua bondade. Que as suas bênçãos se derramem sobre vós e sobre esta médiumditosa entre mil!” 

NOTA — Perguntar-se-á, talvez, que convicção pode ter resultado para aquela moça do que lhe foi dado ouvir, uma vez que de nada agora se lembra. Se, no estado de vigília, estes pormenores se lhe apagaram da memória, então, o seu Espírito, esse se recorda. Ficou-lhe uma intuição, suficiente para modificar-lhe as ideias. Ao contrário de criar-lhes oposição, ela aceitará, sem dificuldade, as explicações que lhe foram dadas, porque as compreenderá e, intuitivamente, as reconhecerá de acordo com o seu sentimento íntimo. 

O que se passou com este facto, isolado, pelo espaço durante alguns minutos, durante a breve excursão que o Espírito da moça realizou pelo mundo espiritual, é análogo ao que se dá no intervalo de uma existência à outra, quando o Espírito que encarna possui luzes sobre um assunto qualquer. Ele se apropria, sem dificuldade, de todas as ideias referentes a esse assunto, se bem que, como homem, não se recorde da maneira como as adquiriu. Ao contrário, as ideias, para cuja assimilação ainda não se encontra maduro, dificilmente lhe entram no cérebro. 

Assim se explica a facilidade com que certas pessoas assimilam as ideias espíritas. Em tais pessoas, essas ideias, nada mais fazem do que despertar as que elas já possuíam. As criaturas a que nos referimos são espíritas de nascença, como outros são poetas, músicos ou matemáticos. Logo às primeiras palavras, compreendem e não necessitam de factos materiais para se convencerem. É, não há que duvidar, um sinal de adiantamento moral e de desenvolvimento espiritual. 

Na comunicação acima se lê: “Agradecei a Deus os favores de que beneficia esta moça; que as suas bênçãos desçam sobre esta médium, ditosa entre mil!” Poder-se-ia supor que estas palavras indicam a concessão de um favor, uma preferência, um privilégio, quando o Espiritismo ensina que, sendo Deus soberanamente justo, nenhuma de suas criaturas é privilegiada e que ele não facilita o caminho mais a uns do que a outros. Sem nenhuma dúvida, a mesma senda está aberta a todos, mas nem todos a percorrem com a mesma celeridade e com os mesmos resultados; nem todos aproveitam igualmente das instruções que recebem. O Espírito da moça em questão, embora jovem como encarnado, já com certeza muito vivera e aí progredira. 

Os bons Espíritos, achando a moça dócil aos seus ensinamentos, se comprazem em instruí-la, como faz o professor ao aluno em quem descobre as boas predisposições. É nesse sentido que o médium é ditoso entre muitos outros que, para o seu adiantamento moral, nenhum fruto colhem da mediunidade de que são dotados. Não há, pois, neste caso, nem favor, nem privilégio; unicamente uma recompensa. Se o seu Espírito deixasse de ser digno dela, dentro em pouco, teria afastados de si, os seus bons Guias e se veria cercado de uma multidão de Espíritos maus. 

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ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte – Sobre as artes em geral; a sua regeneração por meio do Espiritismo – A música celeste, 20º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra

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