Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 26 de março de 2018

agonia das religiões ~


Deus | Espírito e Matéria

Para melhor se entender a expressão Deus, em espírito e matéria, que usei no capítulo anterior, – e melhor se entender também o problema da experiência de Deus no tempo – julgo necessário tratar dos princípios da cosmogonia espírita, na qual se integra a teoria da génese e a formação do espírito. O contra-senso da afirmação bíblica de que Deus criou o mundo do nada, que tanto trabalho deu aos teólogos, é explicado na revelação espírita pela teoria da Trindade Universal. Deus, o Ser Absoluto, é a fonte de toda a Criação. Existindo essa fonte solitária, é logicamente necessário admitir-se um meio em que ela existia. Esse meio, que seria o espaço vazio, foi considerado o nada. Para tratar do Absoluto num plano relativo, como o nosso, é preciso usar expressões relativas.

A concepção espírita do mundo não admite a existência do nada. O Universo é pleno – é uma plenitude – não havendo nele nenhuma possibilidade de vácuo. Essa teoria espírita da plenitude está hoje a ser confirmada pela pesquisa científica do Cosmos. As regiões siderais que poderíamos julgar vazias mostram-se como campos de forças, carregadas de energias que escapam aos nossos sentidos. Esse pré-universo energético seria o que Buda definiu como o mundo sempre existente, que nunca foi criado. Pitágoras, na sua filosofia matemática, considerou Deus como o número 1 que desencadeou a década. O UM, número primeiro, existia imóvel e solitário no Inefável (naquilo que para nós seria o nada) e nesse caso o nada seria a imobilidade absoluta. Houve em certo momento cósmico, não se pode saber como nem porquê, um estremecimento do número 1, que assim produziu o 2 e a seguir os demais números até ao 10. Completando-se a década, tivemos o Todo, a Criação se fizera por si mesma, o Universo surgira e com ele o tempo. É claro que não dispomos de recursos para investigar as origens primeiras e, essas teorias não passam de tentativas de explicação lógica, destinadas a proporcionar-nos uma base alegórica ou hipotética para uma possível concepção do mistério da Criação.

Espiritismo sustenta a possibilidade de conhecermos a verdade a respeito, quando houvermos desenvolvido as potencialidades espirituais que nos elevarão acima da condição humana. Enquanto não chegarmos lá, essas hipóteses devem servir para mostrar-nos que dispomos de capacidade para ir além dos limites do pensamento dialéctico, além do conhecimento indutivo baseado no jogo dos contrastes.

Assim sendo, não podemos aceitar a alegoria bíblica da Criação à letra, como verdade revelada, nem contestá-la orgulhosamente com a arrogância materialista. Na posição do crente temos a ingenuidade e na posição do materialista temos a arrogância do homem, esse pedacinho de fermento pensante, como dizia o Lobo do Mar de Jack London. O espiritualismo simplório e o materialismo atrevido são os dois pólos da estupidez humana. O bom-senso, que é a regra de ouro do Espiritismo, nos livra da estupidez e oferece-nos a possibilidade de chegar à sabedoria sem muito barulho e disputas inúteis.

Partindo do pressuposto de que o mundo deve ter uma origem e aceitando a ideia de que foi criado por Deus – pois assim o afirmam todos os Espíritos Superiores que se referem a este assunto e que revelam uma sabedoria superior à nossa –, Espiritismo admite que a fonte inicial é uma inteligência cósmica. Mas porque uma inteligência e não apenas um centro de forças casualmente aglutinadas no caos primitivo? Porque o Universo se mostra organizado inteligentemente em todas as suas dimensões, até onde podemos observá-lo. Seria ilógico, absurdo, supormos que essa inteligência da estrutura universal, que se manifesta em minúcias ainda inacessíveis à pesquisa científica, desde as partículas atómicas até aos genes biológicos e aos seus códigos admiráveis, seja o resultado de um simples acaso. Nenhuma cabeça bem-pensante poderia admitir isso. A teoria espírita – teoria e não hipótese, pois que já provou a sua validade através de todas as pesquisas possíveis – pode ser resumida neste axioma doutrinário: Não há efeito inteligente sem causa inteligente e, a grandeza do efeito corresponde à grandeza da causa.

Colocando assim o problema, a sua equação torna-se clara. O Espiritismo elabora-a em termos dialécticos: a fonte inicial, Deus, existindo no meio do inefável, constituído de matéria dispersa no espaço, emite o seu pensamento criador que aglutina e estrutura a matéria. Temos assim a Trindade Universal que as religiões apresentam de maneira antropomórfica. Essa trindade não é formada de pessoas, mas de substâncias regidas por uma possível Inteligência, constituindo-se assim: Deus, Espírito e Matéria.

O espírito que a constitui não é uma entidade definida, mas o pensamento de Deus que se expande no Cosmos sobre a forma de substância. Essa substância espiritual penetra o oceano de matéria rarefeita, dispersa e, aglutina as suas partículas, estruturando-as para a formação das coisas e dos seres. Da tese espiritual e da antítese material resulta a síntese do real, do mundo criado por um poder inteligente.

Qual a razão de ser, o objectivo, a finalidade e o sentido da Criação? Espiritismo admite que não podemos conhecer tudo isso no nosso actual estágio de desenvolvimento, mas podemos, através da nossa inteligência humana, indagar, perquirir, pesquisar e chegar a resultados logicamente possíveis. Os dados científicos da Geologia, por exemplo, mostram-nos a Terra como o resultado de um longo processo de formação, no qual é evidente a intenção de atingir um tipo de perfeição em todas as coisas e todos os seres. As formas imprecisas e grotescas das primeiras idades do planeta se vão aprimorando ao longo do tempo, numa sucessão nítida de fases de elaboração caprichosa. Os dados da Antropologia revelam-nos o aperfeiçoamento do homem nas civilizações sucessivas, a partir das selvas. Os dados da Psicologia desvendam-nos os anseios da alma humana, na busca incessante de transcendência, de superação do seu condicionamento orgânico-material. Os dados da Estética revelam-nos o anseio de belezaperfeição e equilíbrio que rege o desenvolvimento individual e colectivo, o indivíduo e a espécie.

Gustave Geley, no seu livro Do Inconsciente ao Consciente, propõe-nos uma visão dialéctica do mundo em que as coisas se transformam em seres e estes avançam em direcção à consciência. É a mesma visão da teoria dialéctica de HegelOliver Lodge considera o homem actual como um processo em desenvolvimento. O Existencialismo, nas suas várias escolas, encara o homem como um projecto, um vector que se lança na existência em busca da transcendência. Para Sartre, o homem frustra-se nessa busca e se nadifica na morte, se reduz ao nada. Para Heidegger, o homem realiza-se no trajecto existencial e se completa na morte. Para Jaspers, o homem consegue transcender-se em dois sentidos: o horizontal, na relação social, e o vertical, na busca de Deus. Para Léon Denis, todo o processo de transformação se explica por esta frase genial: A alma dorme na pedra, sonha no vegetal, agita-se no animal e acorda no homem. Para Kardec, a transcendência humana leva-nos ao plano da angelitude, pois os anjos nada mais são do que espíritos que superaram as condições inferiores da humanidade.

Temos assim o Universo, com a multiplicidade dos seus mundos rolantes no espaço sideral, dos seus sóis e das suas galáxias, como um fluxo permanente de forças em transformação incessante, objectivando a formação dos seres e a elevação destes a condições divinas. Só a hipótese de Sartre admite a inutilidade como finalidade universal.

Os Espíritos Superiores, nas suas comunicações, desmentem e rejeitam essa hipótese negativa, sustentando a natureza teleológica do Universo. Consideram a Criação como um gigantesco processo que só pode ser definido corno o fiat na sua fase inicial, quando a Mente Suprema emite o seu pensamento para unir essa emanação do seu espírito à matéria dispersa. Depois desse instante criador desencadeia-se o tempo e é nele que o processo criador vai desenvolver-se lentamente através dos milénios. E a superioridade desses Espíritos não é avaliada por medidas ou métodos místicos, mas por verificações racionais. Os Espíritos Superiores não ensinam apenas através de ideias, mas também de factos. Provam, através da produção dos fenómenos paranormais, que possuem uma ciência muito superior à nossa, um conhecimento do espírito e da matéria que estamos longe de atingir e uma compreensão de Deus que supera em muito as nossas interpretações antropomórficas da Inteligência Criadora. Além disso, as suas previsões se confirmam de maneira rigorosa, demonstrando que possuem recursos de futurologia muito mais avançados e seguros que os nossos. As suas proposições são ainda relacionadas com os nossos conhecimentos, completando-se na medida em que o nosso adiantamento permita que nos falem a respeito sem provocar dúvidas ou confusões na nossa mente.

A relação de Deus com o Universo não é apresentada em termos de mistério, mas de realidade verificável. Na Terra, o homem representa o ponto culminante do processo evolutivo. A criação do homem à imagem e semelhança de Deus explica-se em termos espirituais. Porque o homem é o único ser terreno que possui mente criadora, pensamento produtivo e contínuo, psiquismo refinado e complexo, capacidade de percepção e de intuição que lhe permitem penetrar na essência das coisas, ultrapassando a aparência ilusória. Feito assim, como um reflexo da divindade, o homem liga-se a Deus não apenas pelos laços do acto criador, mas também por afinidade psíquica e espiritual. É um herdeiro de Deus e co-herdeiro de Cristo, como escreveu Paulo, que se prepara para entrar na herança do futuro.

A relação de Deus com o homem começa, portanto, muito antes que ele se defina como criatura humana. Desde o momento em que o pensamento de Deus se une à matéria para modelá-la e, nas fases subsequentes, em que espírito e matéria se fundem nas formas substanciais de que tratou Aristóteles, a relação de Deus com o homem desenvolve-se em progressão constante. Quando se estrutura a consciência humana no ser em evolução, a marca de Deus ali está presente, na lei de adoração que é o sentimento inato de sua filiação divina e se manifestará no sentimento religioso, base de todas as experiências religiosas da Humanidade. Temos de dividir o conceito da experiência de Deus, em que tanto se apoiam as religiões formalistas, em dois tipos bem definidos de experiência: a de Deus, que começa no fiat, como elemento ontogenético (elemento constitutivo da própria génese do homem) e a religiosa, que corresponde às tentativas de uma tomada de consciência de Deus através de formulações religiosas por meio de rituais, instituição de igrejas, sistemática litúrgica e sacramental, organização clerical, ordenações e elaboração dogmática. Confundir a experiência genética de Deus com a experiência formal da vivência religiosa é característica do pensamento superficial, que facilmente se acomoda no jogo aparencial das instituições humanas. Deus, espírito e matéria formam o triângulo fundamental de toda a realidade. A omnipresença de Deus não implica o mistério de uma pessoa sobrenatural que se dispersa nas coisas, mas a participação do pensamento criador de Deus em tudo, desde a formação do átomo até à formação da consciência. Compreendendo que o espírito e a matéria são os dois elementos estruturais da realidade, compreendemos que Deus esteja presente em todas as partículas do Universo, como o poder criador, omnisciente, controlador e mantenedor de todo o equilíbrio universal. Deus penetra o mundo e está nele, como a seiva no vegetal, mas não se reduz a ele, pois permanece inalterável como a fonte de que tudo emanou.

A Ciência actual está a chegar rapidamente a essa constatação. Dizia o físico nuclear Arthur Compton, no seu ensaio sobre o lugar do homem no Universo, que descobrimos a energia por trás da matéria, mas já começamos a perceber que por trás da energia existe algo mais, que parece ser o pensamento. A unidade, a coerência, a perfeição dessa concepção espírita do mundo e do homem passam despercebidos no tumultuar das teorias absurdas que, como escreveu Charles Richetatravancam o caminho da nossa Ciência. Mas parece já próximo o momento em que o caminho se tornará livre.

Não há lugar, nessa concepção admirável, para o equívoco da contradição Espiritualismo-Materialismo em que até agora nos debatemos. Espírito e matéria aparecem sempre unidos, interligados e interactuantes, na dialéctica da Criação. E a negação de Deus, como observou Descartes, é tão absurda como pretendermos tirar o Sol do Sistema Solar.

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José Herculano Pires, Agonia das Religiões / Capítulo 5 – Deus, Espírito e Matéria, 6º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel).

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