Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 14 de março de 2018

~ em torno do mestre


O humano e o divino ~

~ As religiões pretendem estabelecer uma linha de separação entre aquilo que se convencionou denominar humano e aquilo que se conhece como divino.

Para as religiões, o humano é o natural e, o divino é o sobrenatural. Há em tudo isto, certamente, um mal entendido, sendo mesmo um erro de apreciação que deve ser reparado.

Se considerarmos como humano — o que os homens costumam desnaturar e corromper — estamos de pleno acordo. Neste particular não há só uma linha, mas um abismo de separação entre o que é do homem e o que é de Deus. Mas, se compreendermos por humano o que é natural ou da Natureza, não há nenhuma linha de distinção entre o humano e o divino. Em resumo: tudo o que é natural é divino. A Natureza é divina em todas as suas manifestações. O nosso corpo é humano e é divino ao mesmo tempo, porque é obra de Deus. Nada há no Universo infinito que não proceda do Supremo Arquitecto: logo, tudo é divino.

O objecto da Religião não é, como supõem os credos religiosos, separar o humano do divino: é aperfeiçoar o humano até que ele se divinize. Não é menosprezar ou destruir a matéria, mas submetê-la ao império do Espírito.

O nosso corpo, segundo afirma S. Paulo, é o santuário de Deus. Se é verdadeira a afirmativa do apóstolo — e cremos piamente que o seja — o nosso corpo é divino.

Desprezá-lo ou sujeitá-lo propositadamente a sevícias e mortificações não é virtude: é antes um delito. O Convertido de Damasco disse: Quem destruir o santuário divino, Deus o destruirá. E disse isto em alusão ao corpo humano.

Jesus — o divino entre os divinos — não menosprezou o corpo. Ele é o Verbo que se fez carne e habitou entre os homens. Não se sentiu diminuído em se dizer — Filho do homem. Jamais aconselhou o abandono do corpo aos males que o danificam. Os leprosos, cobertos de chagas pútridas, não causavam repugnância ao Enviado celeste. Sobre essas pústulas asquerosas o Cristo de Deus impunha as suas mãos e as sarava prontamente. A pureza vencia as impurezas, mostrando na carne a obra que devia também ser feita no Espírito. Nem mesmo a matéria em decomposição inspirava asco ao Filho de Deus.

O alto escopo do Espírito não é desprezar, nem mortificar, nem odiar a carne: é simplesmente dominá-la, sujeitando-a ao seu governo e direcção. (*)

O sobrenatural é o absurdo e, o absurdo é dos homens, embora as religiões pretendam que seja de Deus. Com Deus está a verdade, a luz, a ordem, a Natureza em sua plenitude excelsa e deslumbrante. Se o homem obedecesse à Natureza, estaria sempre com Deus. O Espírito também é da Natureza: as leis que lhe presidem ao destino são naturais como as que governam a mecânica celeste no giro dos planetas; como as que determinam a germinação da semente ou a coloração das flores. A Natureza abrange tudo, nada havendo fora da influência e da regência de suas leis.

Há fenómenos insólitos, preternaturais, mas sobrenaturais nunca houve, nem haverá. A própria luta do Espírito com a carne é um fenómeno da Natureza. O homem sente que deve vencer a matéria. A dignidade própria lhe diz Intimamente que ele só poderá ser grande se triunfar sobre a matéria e os seus desejos. O homem tem consciência que o senso da vida repousa nessa porfia e na consequente vitória que ele deve alcançar. E tudo isto é divino porque foi concebido por Deus, faz parte do seu programa de educação destinado à redenção dos seus filhos, que são os filhos da Humanidade.

Não desprezemos, pois, coisa alguma. Amemos o que é puro e até o que é impuro, lembrando que o amor tudo purifica. Jesus não desdenhou os delinquentes de qualquer matiz; e até mesmo a mulher adúltera e a pecadora Madalena encontraram nele refúgio e redenção. Os homens profanam o santuário de Deus, entregando-se aos caprichos desordenados do egoísmo insaciável. Desvirtuam o corpo, corrompendo e adulterando as suas manifestações e expansões naturais. Daí o estrabismo das igrejas criar artificialmente uma distinção entre o natural e o divino, como se tal distinção pudesse existir. Tal a origem dos jejuns, dos cilícios e mortificações infligidas ao corpo, como meio de alcançar o céu. Erro claro. O céu é dos fortes e não dos fracos que fogem à luta; é dos que combatem com lealdade, de viseira erguida e, não, com astúcia. Enfraquecer o corpo para assegurar a vitória do Espírito importa num falso processo de vencer. É ilusório esse triunfo. O Espírito, na verdade, não venceu o inimigo; iludiu-o apenas. Não se abrem as portas dos tabernáculos eternos com gazua. Jesus prometeu a Pedro (i), como aliás aos demais apóstolos, as chaves, não as gazuas, do reino dos céus...

O caminho de evolução é um só, alegorizado naquela porta estreita e estrada apertada de que nos fala o Evangelho.

Não procuremos, portanto, o marco que divide o humano do divino, porque tal marco é uma ilusão. Divinizemos o humano. Para que tal o conseguíssemos é que o Verbo divino se humanizou.


O mordomo infiel ~

"Havia um homem rico, que tinha um administrador; e este lhe foi denunciado como esbanjador dos seus bens. Chamou-o e perguntou-lhe: Que é isso que ouço dizer de ti? dá conta da tua mordomia; pois já não podes mais ser meu mordomo. Disse o administrador consigo: Que hei-de eu fazer, já que o meu amo me tira a administração? Não tenho forças para cavar, de mendigar tenho vergonha. Eu sei o que hei-de fazer para que, quando for despedido do meu emprego, me recebam em suas casas. Tendo chamado cada um dos devedores do seu amo, perguntou ao primeiro: Quanto deves ao meu amo? Respondeu ele: Cem cados de azeite. Disse-lhe, então: Toma a tua conta, senta-te depressa e escreve cinquenta. Depois perguntou ao outro: E tu, quanto deves? Respondeu ele: Cem coros de trigo. Disse-lhe: Toma a tua conta e, escreve oitenta. E o amo louvou o administrador iníquo, por haver procedido sabiamente; porque os filhos deste mundo são mais sábios para com a sua geração do que os filhos da luz. E eu vos digo: Granjeai amigos com as riquezas da iniquidade, para que, quando estas vos faltarem, vos recebam eles nos tabernáculos eternos. Quem é fiel no pouco, também é fiel no muito; e quem é injusto no pouco, também é injusto no muito. Se, pois, não fostes fiéis nas riquezas injustas, quem vos confiará as verdadeiras? E se não fostes fiéis no alheio, quem vos dará o que é vosso? Nenhum servo pode servir a dois senhores; porque ou há de aborrecer a um e amar o outro, ou há de unir-se a um e desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamon." (Lucas, 16:1 a 13.)

Personagens da Parábola:

O amo ou proprietário: Deus.

O mordomo infiel: o homem.

Os devedores beneficiados: O nosso próximo.

A propriedade agrícola: O mundo em que habitamos.

Moralidade: o homem é mordomo infiel porque se apodera dos bens que lhe são confiados para administrar, como se tais bens constituíssem propriedade sua. Acumula esses bens, visando exclusivamente a proveitos pessoais; restringe a sua expansão, assenhoreia-se da terra cuja capacidade produtiva delimita e compromete. Enfim, todo o seu modo de agir com relação à propriedade, que lhe foi confiada para administrar, é no sentido de monopolizá-la, segregá-la em benefício próprio, menosprezando assim os legítimos direitos do proprietário.

Diante de tal irregularidade, o senhorio vê-se na contingência de demiti-lo. Essa exoneração do cargo se verifica com a morte. Todo O Espírito que deixa a Terra é mordomo demitido. A parábola figura um, cuja prudência louva. É aquele que, sabendo das intenções do amo a seu respeito e reconhecendo que nada lhe era dado alegar em sua defesa, procura, com os bens alheios ainda em seu poder, prevenir o futuro. E como faz? Granjeia amigos com a riqueza da iniquidade, isto é, lança mão dos bens acumulados, que representam a riqueza do amo sob sua guarda, e, com ela, beneficia a várias pessoas, cuja amizade, de tal forma, consegue conquistar.

E o amo (Deus) louva a acção do mordomo (homem) que assim procede, pois esses a quem ele aqui na Terra beneficiara serão aqueles que futuramente o receberão nos tabernáculos eternos (paramos celestiais, espaço, céu, etc).

O grande ensinamento desta importante parábola está no seguinte: Toda a riqueza é iníquaNão há nenhuma legítima no terreno das temporalidades. Riquezas legítimas ou verdadeiras são unicamente as de ordem intelectual e moral: o saber e a virtude. Não assiste ao homem o direito de monopolizar a terra, nem de açambarcar os bens temporais que dela derivam. O seu direito não vai além do usufruto. Como, porém, todos os homens são egoístas e querem monopolizar os bens terrenos em proveito exclusivo, o Mestre aconselha com muita justeza que, ao menos, façam como o mordomo infiel: granjeiem amigos com esses bens dos quais ilegalmente se apossaram.

A parábola vertente contém, em suma, uma transcendente lição de sociologia, encerrando um libelo contra a avareza e uma belíssima apologia da liberalidade e do altruísmo, virtudes cardeais do Cristianismo.

Obedecem ao mesmo critério, acima exposto, estes outros dizeres da parábola: Quem é fiel no pouco, também é fiel no muito. Se, pois, não fostes fiéis nas riquezas injustas, quem vos confiará as verdadeiras? E se não fostes fiéis no alheio, quem vos dará o que é vosso? Não podeis servir a dois senhores: a Deus e às riquezas.

É claro que a riqueza considerada como sendo o pouco, como sendo a iníqua e a alheia, é aquela que consiste nos bens temporais; e a riqueza reputada como sendo o muito, como sendo o fruto da justiça e que constitui legítima propriedade nossa, é aquela representada pelo saber, pela virtude, pelos predicados de carácter, numa palavra, pela evolução conquistada pelo Espírito no decurso das existências que se sucedem na eternidade da vida.

A terra não constitui propriedade de ninguém: é património comum. E, como a terra, qualquer outra espécie de bens, visto como toda a riqueza é produto da mesma terra. Ao homem é dado desfrutá-la na proporção estrita das suas legítimas necessidades. Tudo que daí passa ou excede é uma apropriação indébita.

Não se acumula ar, luz e calor para atender aos reclamos do organismo. O homem serve-se naturalmente daqueles elementos, sem as egoísticas preocupações de entesourar.

O testemunho eloquente e insofismável dos factos demonstra que o solo, quanto mais dividido e retalhado, mais prosperidade, mais riqueza e paz assegura aos povos e às nações.

"Radix omnium malorum est avaritia." (**)

/...

(*) Este parágrafo e os três anteriores alertam-nos para o erro que em consequência são a causa de graves problemas para o espírito nos casos de suicídio e nas práticas da eutanásia. Nota desta publicação.
(**) A raiz de todos os males é o amor ao dinheiro.

" Aos que comigo crêem e sentem as revelações do Céu, comprazendo-se na sua doce e encantadora magia, dedico esta obra. "

                                                                                     Pedro de Camargo “Vinícius”


Pedro de Camargo “Vinícius” (i)Em torno do Mestre, Primeira Parte / Seixos e Gravetos; O humano e o divino / O mordomo infiel, 3º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: A Arte da Pintura, óleo sobre tela (1666), de Johannes Vermeer)

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