O humano e o divino ~
~ As religiões pretendem estabelecer uma linha de separação
entre aquilo que se convencionou denominar humano e aquilo que se conhece como
divino.
Para as religiões, o humano é o natural e, o divino é o sobrenatural. Há em tudo isto, certamente, um mal entendido, sendo mesmo um erro de apreciação que deve ser reparado.
Para as religiões, o humano é o natural e, o divino é o sobrenatural. Há em tudo isto, certamente, um mal entendido, sendo mesmo um erro de apreciação que deve ser reparado.
Se considerarmos como humano — o que os homens costumam
desnaturar e corromper — estamos de pleno acordo. Neste particular não há só
uma linha, mas um abismo de separação entre o que é do homem e o que é de Deus.
Mas, se compreendermos por humano o que é natural ou da Natureza, não há
nenhuma linha de distinção entre o humano e o divino. Em resumo: tudo o que é
natural é divino. A Natureza é divina em todas as suas manifestações. O
nosso corpo é humano e é divino ao mesmo tempo, porque é obra de Deus. Nada
há no Universo infinito que não proceda do Supremo Arquitecto: logo, tudo é
divino.
O objecto da Religião não é, como supõem os credos
religiosos, separar o humano do divino: é aperfeiçoar o humano até que
ele se divinize. Não é menosprezar ou destruir a matéria, mas
submetê-la ao império do Espírito.
O nosso corpo, segundo afirma S. Paulo, é o santuário
de Deus. Se é verdadeira a afirmativa do apóstolo — e cremos piamente que o
seja — o nosso corpo é divino.
Desprezá-lo ou sujeitá-lo propositadamente a sevícias e
mortificações não é virtude: é antes um delito. O Convertido de Damasco
disse: Quem destruir o santuário divino, Deus o destruirá. E
disse isto em alusão ao corpo humano.
Jesus —
o divino entre os divinos — não menosprezou o corpo. Ele é o Verbo que se fez
carne e habitou entre os homens. Não se sentiu diminuído em se dizer — Filho do
homem. Jamais aconselhou o abandono do corpo aos males que o danificam. Os
leprosos, cobertos de chagas pútridas, não causavam repugnância ao Enviado
celeste. Sobre essas pústulas asquerosas o Cristo de Deus impunha as suas mãos
e as sarava prontamente. A pureza vencia as impurezas, mostrando na carne a
obra que devia também ser feita no Espírito. Nem mesmo a matéria em
decomposição inspirava asco ao Filho de Deus.
O alto escopo do Espírito não é desprezar, nem mortificar,
nem odiar a carne: é simplesmente dominá-la, sujeitando-a ao seu
governo e direcção. (*)
O sobrenatural é o absurdo e, o absurdo é dos homens,
embora as religiões pretendam que seja de Deus. Com Deus está a
verdade, a luz, a ordem, a Natureza em sua plenitude excelsa e deslumbrante. Se
o homem obedecesse à Natureza, estaria sempre com Deus. O Espírito também é da
Natureza: as leis que lhe presidem ao destino são naturais como as que
governam a mecânica celeste no giro dos planetas; como as que determinam a
germinação da semente ou a coloração das flores. A Natureza abrange
tudo, nada havendo fora da influência e da regência de suas leis.
Há fenómenos insólitos, preternaturais, mas
sobrenaturais nunca houve, nem haverá. A própria luta do Espírito com a carne é
um fenómeno da Natureza. O homem sente que deve vencer a matéria. A dignidade
própria lhe diz Intimamente que ele só poderá ser grande se triunfar sobre a
matéria e os seus desejos. O homem tem consciência que o senso da vida repousa
nessa porfia e na consequente vitória que ele deve alcançar. E tudo isto é
divino porque foi concebido por Deus, faz parte do seu programa de educação
destinado à redenção dos seus filhos, que são os filhos da Humanidade.
Não desprezemos, pois, coisa alguma. Amemos o que é puro e
até o que é impuro, lembrando que o amor tudo purifica. Jesus não desdenhou os
delinquentes de qualquer matiz; e até mesmo a mulher adúltera e a pecadora
Madalena encontraram nele refúgio e redenção. Os homens profanam o santuário de
Deus, entregando-se aos caprichos desordenados do egoísmo insaciável.
Desvirtuam o corpo, corrompendo e adulterando as suas manifestações e expansões
naturais. Daí o estrabismo das igrejas criar artificialmente uma
distinção entre o natural e o divino, como se tal distinção pudesse existir. Tal
a origem dos jejuns, dos cilícios e mortificações infligidas ao corpo, como
meio de alcançar o céu. Erro claro. O céu é dos fortes e não dos fracos
que fogem à luta; é dos que combatem com lealdade, de viseira erguida e, não,
com astúcia. Enfraquecer o corpo para assegurar a vitória do Espírito
importa num falso processo de vencer. É ilusório esse triunfo. O Espírito, na
verdade, não venceu o inimigo; iludiu-o apenas. Não se
abrem as portas dos tabernáculos eternos com gazua. Jesus prometeu a
Pedro (i),
como aliás aos demais apóstolos, as chaves, não as gazuas, do reino dos céus...
O caminho de evolução é um só, alegorizado naquela
porta estreita e estrada apertada de que nos fala o Evangelho.
Não procuremos, portanto, o marco que divide o humano do
divino, porque tal marco é uma ilusão. Divinizemos o humano. Para que tal o
conseguíssemos é que o Verbo divino se humanizou.
O mordomo infiel ~
"Havia um homem rico, que tinha um administrador; e
este lhe foi denunciado como esbanjador dos seus bens. Chamou-o e
perguntou-lhe: Que é isso que ouço dizer de ti? dá conta da tua mordomia; pois
já não podes mais ser meu mordomo. Disse o administrador consigo: Que hei-de eu
fazer, já que o meu amo me tira a administração? Não tenho forças para cavar,
de mendigar tenho vergonha. Eu sei o que hei-de fazer para que, quando for
despedido do meu emprego, me recebam em suas casas. Tendo chamado cada um dos
devedores do seu amo, perguntou ao primeiro: Quanto deves ao meu amo? Respondeu
ele: Cem cados de
azeite. Disse-lhe, então: Toma a tua conta, senta-te depressa e escreve
cinquenta. Depois perguntou ao outro: E tu, quanto deves? Respondeu ele: Cem
coros de trigo. Disse-lhe: Toma a tua conta e, escreve oitenta. E o amo louvou
o administrador iníquo, por haver procedido sabiamente; porque os filhos deste
mundo são mais sábios para com a sua geração do que os filhos da luz. E eu vos
digo: Granjeai amigos com as riquezas da iniquidade, para que, quando estas vos
faltarem, vos recebam eles nos tabernáculos eternos. Quem é fiel no pouco,
também é fiel no muito; e quem é injusto no pouco, também é injusto no muito.
Se, pois, não fostes fiéis nas riquezas injustas, quem vos confiará as
verdadeiras? E se não fostes fiéis no alheio, quem vos dará o que é vosso?
Nenhum servo pode servir a dois senhores; porque ou há de aborrecer a um e amar
o outro, ou há de unir-se a um e desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e
a Mamon." (Lucas, 16:1 a 13.)
Personagens da Parábola:
O amo ou proprietário: Deus.
O mordomo infiel: o homem.
Os devedores beneficiados: O nosso próximo.
A propriedade agrícola: O mundo em que habitamos.
Moralidade: o homem é mordomo infiel porque se
apodera dos bens que lhe são confiados para administrar, como se tais
bens constituíssem propriedade sua. Acumula esses bens, visando exclusivamente
a proveitos pessoais; restringe a sua expansão, assenhoreia-se da terra cuja
capacidade produtiva delimita e compromete. Enfim, todo o seu modo de agir com
relação à propriedade, que lhe foi confiada para administrar, é no sentido
de monopolizá-la, segregá-la em benefício próprio, menosprezando assim os
legítimos direitos do proprietário.
Diante de tal irregularidade, o senhorio vê-se na
contingência de demiti-lo. Essa exoneração do cargo se verifica com a
morte. Todo O Espírito que deixa a Terra é mordomo demitido. A parábola figura
um, cuja prudência louva. É aquele que, sabendo das intenções do amo a seu
respeito e reconhecendo que nada lhe era dado alegar em sua defesa, procura,
com os bens alheios ainda em seu poder, prevenir o futuro. E como faz? Granjeia
amigos com a riqueza da iniquidade, isto é, lança mão dos bens acumulados, que
representam a riqueza do amo sob sua guarda, e, com ela, beneficia a várias pessoas,
cuja amizade, de tal forma, consegue conquistar.
E o amo (Deus) louva a acção do mordomo (homem) que assim
procede, pois esses a quem ele aqui na Terra beneficiara serão aqueles que
futuramente o receberão nos tabernáculos eternos (paramos celestiais, espaço,
céu, etc).
O grande ensinamento desta importante parábola está no
seguinte: Toda a riqueza é iníqua. Não há nenhuma legítima
no terreno das temporalidades. Riquezas legítimas ou verdadeiras são
unicamente as de ordem intelectual e moral: o saber e a virtude. Não assiste ao
homem o direito de monopolizar a terra, nem de açambarcar os bens temporais que
dela derivam. O seu direito não vai além do usufruto. Como, porém, todos
os homens são egoístas e querem monopolizar os bens terrenos em proveito
exclusivo, o Mestre aconselha com muita justeza que, ao menos, façam como o
mordomo infiel: granjeiem amigos com esses bens dos quais ilegalmente se
apossaram.
A parábola vertente contém, em suma, uma transcendente lição
de sociologia, encerrando um libelo contra
a avareza e uma belíssima apologia da liberalidade e do altruísmo,
virtudes cardeais do Cristianismo.
Obedecem ao mesmo critério, acima exposto, estes outros
dizeres da parábola: Quem é fiel no pouco, também é fiel no muito. Se, pois,
não fostes fiéis nas riquezas injustas, quem vos confiará as verdadeiras? E se
não fostes fiéis no alheio, quem vos dará o que é vosso? Não podeis servir a
dois senhores: a Deus e às riquezas.
É claro que a riqueza considerada como sendo o pouco, como
sendo a iníqua e a alheia, é aquela que consiste nos bens temporais; e
a riqueza reputada como sendo o muito, como sendo o fruto da justiça e que
constitui legítima propriedade nossa, é aquela representada pelo
saber, pela virtude, pelos predicados de carácter, numa palavra, pela evolução conquistada pelo
Espírito no decurso das existências que se sucedem na eternidade da vida.
A terra não constitui propriedade de ninguém: é património
comum. E, como a terra, qualquer outra espécie de bens, visto como toda a riqueza
é produto da mesma terra. Ao homem é dado desfrutá-la na proporção
estrita das suas legítimas necessidades. Tudo que daí passa ou excede é uma
apropriação indébita.
Não se acumula ar, luz e calor para atender aos reclamos do
organismo. O homem serve-se naturalmente daqueles elementos, sem as egoísticas
preocupações de entesourar.
O testemunho eloquente e insofismável dos factos demonstra
que o solo, quanto mais dividido e retalhado, mais prosperidade, mais riqueza e
paz assegura aos povos e às nações.
"Radix omnium malorum est avaritia." (**)
/...
(*) Este parágrafo e os três anteriores
alertam-nos para o erro que em consequência são a causa de graves problemas
para o espírito nos casos de suicídio e nas práticas da eutanásia. Nota
desta publicação.
(**) A raiz de todos os males é o amor ao dinheiro.
(**) A raiz de todos os males é o amor ao dinheiro.
" Aos que comigo crêem e sentem as revelações do
Céu, comprazendo-se na sua doce e encantadora magia, dedico esta obra. "
Pedro de Camargo “Vinícius”
Pedro de Camargo “Vinícius” (i), Em
torno do Mestre, Primeira Parte / Seixos e Gravetos; O humano e o
divino / O mordomo infiel, 3º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: A Arte da Pintura,
óleo sobre tela (1666), de Johannes Vermeer)
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