Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 12 de novembro de 2016

~~~Párias em Redenção~~~


SUBJUGAÇÃO IMPIEDOSA E NEFASTA ~
(III)

  Logo que lhe foi possível, Carlo solicitou e conseguiu entrevistar-se com Girólamo.

  Accionado pelo estranho ódio que o corroía como vérmina, o ginete interrogou:

  – Com vossa vénia, Senhor Conde, desejo saber qual a vossa resposta à proposição que vos fiz em Siena. Como não ignorais, pertenço à plebe e sou pobre.

  O enfermo, sem dissimular a aversão que nutria pelo chantagista, fitou-o longamente, como a espreitar os mais secretos ardis e pensamentos de que ele fosse capaz, demorando-se em silêncio. Após largo período, em que os dois se defrontavam, medindo reciprocamente a extensão da torpeza que a ambos possuía, contestou com enfado:

  – Gostaria que me refrescasses a memória com a tua estória caluniosa e sórdida.

  Expressou-se com alta dose de calculado desprezo e acrimónia, objectivando escarnecer o desafecto ao máximo.

  Orgulhoso e vão, o florentino ambicioso contestou:

  – Disse-vos que sou testemunha, de vista, do crime que praticaste na colina de San Miniato contra uma jovem de nome Assunta.

  A segurança do comensal dos Castaldi e a informação nominal sobre a jovem assassinada colheram o Conde de surpresa, impedindo-o de disfarçar o choque. Recompondo-se, porém, respondeu:

  – A quem te referes?

  – À mulher que, segundo penso, participou dos crimes deste solar e teve os lábios selados para toda a Eternidade… (Sorriu expressivamente).

  Girólamo ergueu-se de um salto e avançou contra o adversário. Este, porém, gritou:

  – Pensei, também, na alternativa da agressão e vos aviso: seria a última vez que atingiríeis alguém. Não vos perdoo a bofetada e pagareis alto preço pelo meu silêncio. Não vos atrevais por segunda vez, ou ambos partiremos para os Infernos, daqui mesmo. Eu advirto.

  O agressor parou vis-à-vis junto a Carlo. Bufava, e o ódio fazia-o estremecer. O olhar desvairado despedia chispas.

  – Que desejas, miserável? – inquiriu.

  – Participar do vosso dolce far niente. A verdade custa caro e o silêncio sobre ela muito mais.

  – Eu te matarei, canalha. Será mais um, apenas…

  – Talvez. A vida para mim nada vale, mas para vós, a vossa vida regalada deve valer muito. E é isso que eu desejo.

  Estrugiu uma gargalhada de contentamento ante o pavor do senense, impossibilitado de qualquer atitude.

  Acontece que, não obstante a grotesca personalidade que possuía, Carlo era também um sensitivo, que facilmente se sintonizava com o duque di Bicci, desde a noite em que na Piazza de San Domenico cogitara do desforço contra o insensato inimigo. Fortemente inspirado, chegara à conclusão de toda a trama que Girólamo urdira e consumara.

  Enquanto isto, Girólamo pensava como libertar-se do usurpador. Teria que correr o risco: matá-lo ou perder-se. À ideia que lampejou fulminante no cérebro doente, acalmou-se, conciliador, aquiescendo:

  – Se necessitas de dinheiro, posso ajudar-te. Quanto às tuas acusações perniciosas, procurarei esquecê-las. Não me esquecerei, porém, de ti, prometo-te!

  – Estou avisado, meu amo, – retrucou com mal disfarçado sarcasmo.

  Arrancando pequena algibeira de veludo que trazia pendente do cinto, atirou-a ao ávido chantagista, que anuiu, sorrindo:

  – Grazie, signore, grazie!

  Recuou em atitude servil e desapareceu além da porta, pelo longo corredor.

  Girólamo, com o espírito aguçado pelo ódio, pôs-se a escoucear e gritou pelo pajem, que acudiu, aflito:

  – Vinho, rápido! Quero vinho:

  Da ira, passou à gargalhada trovejante. Chamados apressadamente pelo pajem, os familiares subiram à peça do Conde e o encontraram totalmente louco. O médico e mais alguns lacaios seguraram-no, resolvendo atá-lo a fortes amarras, para impedi-lo de praticar qualquer desmando.

  Beatriz, ante o impacto do choque, foi vencida por um desmaio e o pânico se estabeleceu entre os servos e auxiliares da casa.

  A custo, o médico conseguiu fazer recuperar a consciência à jovem senhora que, sentindo dores violentas na região do baixo-ventre, narrou ao esculápio o que vinha sentindo nos últimos tempos, e este não teve dúvidas em atestar que a Senhora Condessa estava em gestação, devendo ser mãe em breves meses. Necessitava acalmar-se para não perder o filho. Conquanto a grande dor, a perspectiva da maternidade inundou-a de júbilos e anteviu o momento de dizê-lo ao esposo, que desvairava na alcova contígua…

  O Conde Girólamo Cherubini di Bicci ia ser pai!

  Após a excitação na qual as forças vingadoras exploravam o alimento, este caiu em grande lassidão, adormecendo em agitado torpor.

  Só no dia imediato o paciente despertou. Alheio a tudo, parecia desconhecer o próprio lar. A esposa e os familiares cercaram-no de carinho e dedicação, conseguindo, só a muito custo, fazê-lo recobrar a lucidez.

  Depois da refeição matinal, quando parecia mais refeito, a esposa acercou-se carinhosa e anunciou:

  – Girólamo, a felicidade entra em nossa casa: serás pai, muito em breve, graças a Deus!

  Ele ergueu o sobrolho, sem compreender exactamente, ainda amolentado, distante. Não se pôde furtar ao enlevo da ternura com que a futura mamãe o envolveu.

  Reanimado com a energia balsâmica que dela se desprendia, invisível e revigorante, o revel readquiriu toda a lucidez, e, nublando os olhos, respondeu, comovido pela primeira vez:

  – Eu te agradeço, mas, é tarde, muito tarde para mim!...

  Choro convulsivo irrompeu-lhe do peito opresso e, em desconcertante atitude, como quem deseja amor e paz, afagou o rosto esfogueado da consorte e o osculou jovialmente…

  O médico e os familiares de Beatriz insistiram para que Girólamo aceitasse o alvitre de afastar-se dali, passando a temporada Outono-Inverno em Siena, facultando o nascimento do filhinho no palácio dos sogros.

  Submetida a melhor exame, Beatriz teve a confirmação da maternidade que a fazia progenitora de um novo clã.

  Foram baldos os esforços gerais para que ele aquiescesse em viajar. Embora um tanto alheado às coisas que aconteciam no lar, Girólamo não voltou a experimentar novo acesso de violência, nos dias imediatos.

  Uma semana transcorrida sem qualquer incidente fez que o esculápio chegasse à falsa conclusão de que o desequilíbrio resultava, ainda, das consequências da febre palustre de que fora ele vítima, voltando, desse modo, os hóspedes aos seus respectivos lares, imediatamente, tranquilizados pelo médico.

  Beatriz, apesar da enfermidade do esposo, que demorava longas horas perdido em meditações, mudo, sentia incontido júbilo, acompanhando o desenvolvimento do feto na intimidade uterina.

  A Providência Divina recambiava ao corpo um dos que foram despojados da carne e dos seus haveres pelo homicida, fazendo com que viesse recebê-los das mesmas mãos que os tomaram arbitrariamente. O pequeno Carlo, que a criminalidade de Girólamo assassinara fazia oito anos, retornava ao lar, na qualidade de seu filho primogénito…

/…


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 9 SUBJUGAÇÃO IMPIEDOSA E NEFASTA (3 de 3) 31º fragmento da obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)

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