VI - Relações Familiais no Espiritismo |
As relações familiais (i) dos
povos primitivos começavam com ampla liberalidade, como já vimos, nas fases
infantis. O instinto de imitação das crianças respondia pelo aprendizado
espontâneo do comportamento dos adultos. A criança era encarada como um
estrangeiro amigo e tratada com respeito e observação… Só na puberdade
iria integrar-se no sistema tribal e começar a envolver-se com os ritos e as
tradições tribais. Daí por diante a sua liberdade estava condicionada pela
cultura da nação, pelas suas tradições, a sua moral e as suas crenças. As
pesquisas antropológicas revelaram assim que:
a) os filhos não eram considerados como produzidos
pelos pais e herdeiros consanguíneos naturais da raça, mas como criaturas
adventícias ou familiares que nela se encarnavam,
portanto preexistentes ao nascimento. Essa intuição da preexistência
do ser e da reencarnação era
inata e generalizada nos povos primitivos, com algumas variantes na sua
manifestação nos diferentes povos. Isso comprova a afirmação de Kardec de que as
marcas do Espiritismo são
encontradas em todas as fases da evolução humana. As manifestações do espírito
dos mortos, as práticas mágicas e as evocações completam esse quadro.
b) a prática da couvade (do francês: couvade) que consiste na
dieta do pai e não da mãe após o parto, revela a origem natural da autoridade
do pai na estrutura da família; mostra que a supremacia do pai não provém
apenas da sua maior potencialidade física, mas também e principalmente
do facto de ser ele o fecundador e portanto o criador;
c) A mãe não precisa de dieta, não fecunda, é fecundada; a
sua relação com o filho é a de serva; incumbida de recebê-lo à porta da
vida, criá-lo, zelar por ele, de maneira que o mito da Terra-Mãe, sob o poder
fecundante do Sol-Pai; complete nela a sua função protectora.
É desse mito remoto que, nascido do chão, da carne e do
sangue, no relacionamento inconsciente da Natureza com o Homem, que vem a
estrutura dinâmica da Família, ao mesmo tempo coercitiva e protectora. As leis
da tribo ou da horda centralizam-se nela e ajustam-se como a casca ao tronco da
Árvore. Mais tarde essa imagem define-se culturalmente na figura da árvore
genealógica. Na couvade o
pai faz a dieta porque, como criador, o filho está ligado a ele organicamente,
de maneira tão íntima, que os seus movimentos no andar, no correr, no saltar,
em todas as actividades físicas, prejudicará o recém-nascido. A
superstição ingénua, que muitos atribuíram à preguiça do índio, tem motivos
profundos na alma primitiva, em que as ligações da magia simpática representam
a estrutura mágica do Universo. É o principio espírita da unidade do
Universo, onde as coisas e os seres procedem uns dos outros, numa continuidade
absoluta. A prática da couvade precedeu de muitos
milénios, a mentalidade do homem primitivo, à estruturação matemática do
Universo por Pitágoras e
à concepção unitária e panteísta de Espinoza.
Das percepções instintivas dos primatas às intuições
supersticiosas dos povos selvagens passamos às elaborações mentais das
civilizações agrárias e pastoris e destas às formulações de normas, leis e
códigos das civilizações teocráticas. Na Idade Média as linhagens de tipo davídico formam os
conjuntos de famílias rigidamente estruturadas, que no Renascimento e no Mundo
Moderno se prolongam e dispersam em ramificações sofisticadas. O padrão familial consolida-se,
mas a evolução cultural e o desenvolvimento industrial, juntamente com o
aumento populacional, ameaçam esse mosaico de leis divinas e humanas que não
pode resistir às violentas modificações das estruturas sociais. A
integridade da família afrouxa, a sua rigidez de princípios amolece ante as
novas exigências do mundo novo. Preconceitos milenares são esfarelados, teorias revolucionárias provocam
terremotos demolidores. Na Era Tecnológica em que nos encontramos a
subversão das estruturas antigas chega ao extremo. Profetas alucinados
pregam a destruição pura e simples da família e a volta do homem a uma
liberdade primitiva que nunca existiu. Os freios de aço da moral
burguesa não podem mais conter o ímpeto da carne, dessa frágil carne humana
mais forte que a pedra e o aço. Rompem-se os tabus sexuais e a liberdade, essa
deusa de barrete frígio dos ideólogos franceses, reverte-se em libertinagem. Não
há mais freios, nem divinos nem humanos, que possam conter a fúria dos impulsos
desencadeados. Os faunos recalcados do puritanismo vitoriano esfregam as mãos e
arregalam os olhos concupiscentes ante o alvorecer da irresponsabilidade.
É nesse momento que o conceito espírita de família se
impõe como única solução para os problemas actuais. As três
formas familiais que
estudamos no capítulo anterior mostram a insanidade de se encarar a família
como simples organização material destinada a acomodar os homens nas estruturas
sociais passageiras. Há na família, como no homem, uma finalidade superior
a atingir. O elemento que determina a organização familial não é o simples
interesse material. A linhagem não é determinada pela tradição ou pelos títulos
nobiliárquicos, mas pelo desenvolvimento moral e espiritual das linhas
sucessórias. O sangue, por si só, não cria distinções na espécie
humana. O único valor verdadeiro do homem, e por isso imperecível, pertence à
sua natureza intrínseca, à sua subjectividade existencial. A
força aglutinadora, que mantém a estabilidade da família e a projecta no
futuro, é a afectividade, o que vale dizer: o Amor. A tónica emocional
e magnética que atrai para a família criaturas desviadas ou afastadas é a
afinidade de grau evolutivo, de posição conceptual, de aprimoramento ético e estético. Nada
disso é objectivo ou material. A família apresenta-se, portanto, na concepção espírita, como um
centro dinâmico de forças espirituais produzido pela evolução terrena e
destinado a formar, nas conjugações familiais, a Nova Humanidade Terrena.
O problema das relações familiais, na concepção espírita, escapa ao
rígido esquema autoritário elaborado nas civilizações agrárias e pastoris, com
base nos mitos telúricos. Essa rigidez foi quebrada no mundo moderno, mas
ainda subsiste em vastas camadas e em populações inteiras. A estúpida e
ridícula tragédia burguesa do marido traído que mata a esposa infiel ou o
amante para defender a sua honra pessoal, tornando-se um honrado e truculento
assassino, vigora ainda com força quase total nas nações civilizadas. Isso
porque o homem, o criador -- segundo a concepção da couvade, tem direitos absolutos
sobre a mulher que fecundou; matá-la, como faziam os romanos com os
instrumentos vocais, ou seja, os escravos humanos. A mentalidade
prepotente dos escravocratas domina até agora a maioria dos homens, que se
julgam viris por assassinarem mulheres indefesas e mais fracas que eles, substituindo
os chifres simbólicos pela prova concreta e real de sua covardia. A
diferença injusta e criminosa dos direitos entre homem e mulher, que levou Jesus a livrar a mulher
adúltera da lapidação brutal em praça pública, responde por esses costumes
bárbaros através dos milénios. No Espiritismo a atitude
de Jesus é referendada pelo princípio que estabelece a igualdade de direitos
entre o homem e a mulher, com diversificação de funções. Porque a
diversificação corresponde às exigências de complementação
recíproca das actividades masculinas e femininas na família e na sociedade. Não
há razão para que a mulher sofra perda de direitos humanos na posição de
companheira do homem, da qual é mãe, esposa e filha.
Em face desse princípio a liberdade humana é a mesma para
o homem e a mulher no processo existencial, no qual existem como metades
biológicas, necessária e reciprocamente complementares, tanto no plano vital e
psíquico, quanto em todas as actividades. Reconhecida a igualdade de
direitos, não apenas no plano legal, mas principalmente no plano conceptual, a
sanção da consciência afasta da família o autoritarismo gerador de conflitos e
estabelece o clima de respeito e amor que gera o entendimento. Jesus não vacilou em
reconhecer como públicos os direitos romanos, determinados pela aliança dos
grandes de Israel com os conquistadores. Não lhe interessava a política
mundana, mas quando os donos da casa abrem as portas ao inimigo e se
banqueteiam com ele, há direitos de um lado e do outro. Para Jesus os
direitos não eram uma questão de poder, mas de justiça. No caso familial
cada membro tem o seu direito e este deve ser reconhecido pelos demais. Por
isso aprovou o divórcio de Moisés nos casos de traições conjugais, mas
advertiu que isso acontecia pela dureza dos corações. E lembrou que no
princípio não era assim, porque então prevalecia o amor.
A família não se constitui ao acaso. Toda a reunião de
criaturas numa instituição social decorre de compromissos de reajuste e
reequilíbrio de situações anteriores. Por isso, as chamadas famílias
consanguíneas se desfazem facilmente com a morte, mas para renascerem mais
tarde em novas situações reparadoras. Na proporção em que o homem toma
consciência desse aspecto do problema, as dificuldades familiais tornam-se
mais suportáveis.
No seu crisol as
almas se depuram e se preparam para reencontros mais felizes no futuro. Mas
erram os que pretendem manter à força a unidade familial, sob a pressão de
ameaças divinas ou leis humanas iníquas. Os reajustes só se efectivam em
condições propícias e por livre decisão dos implicados. Sem o respeito
pela liberdade de opção os sacrifícios forçados geram novos desequilíbrios.
O segredo do êxito no desenvolvimento familial depende
da capacidade de amar e compreender dos seus membros. Cada membro da
família tem de compreender as condições temperamentais dos outros e sentir que
pode amá-los apesar dos seus erros e imperfeições. Nesse caso a
família perdura e atinge os seus objectivos. Os problemas sexuais geram
situações aparentemente insolúveis no quadro familial. Mas se
colocarmos o amor ao próximo acima das condenações impiedosas, compreendendo
que cada qual sente as exigências do sexo de acordo com a sua condição própria,
passando pelas provas de que necessita, poderemos transformar situações
desastrosas em oportunidades de orientação.
O Espiritismo oferece-nos
um conceito do bem e do mal que, apesar de muito simples e claro, ainda não foi
bem compreendido até agora pela maioria dos espíritas. Deus é o Bem e está
presente em tudo. O Mal é tudo o que se opõe a Deus. Dessa maneira, a
dialéctica do Bem e do Mal define-se como Evolução. Toda a realidade
que conhecemos e podemos conhecer nos revela a incessante passagem das coisas e
dos seres de uma condição caótica, imprecisa, confusa, estática, morta, para
condições de ordem, organização, definição, dinamismo e vida. A morte e
a destruição, como a dor, o desespero, a loucura, nada mais são do que fases de
transição de um estagio para outro. São os túneis da evolução. A morte
enquanto morte é o mal, mas quando se reacende em vida na ressurreição é o Bem,
e sempre um bem maior do que o anterior. Nada morre, nada se destrói,
tudo evolui. Sem o erro não há acerto. Sem a derrota não há vitória, para nos
devolver alegremente à rota certa. Progredimos no Mal em direcção ao Bem.
Erros, quedas, crimes, sofrimentos são passos no caminho do Bem, que nos levam
a Deus. Nada e ninguém pode permanecer no Mal, porque os males do Mal
impulsionam tudo e todos na direcção do Bem. O Não-Ser é o projecto do Ser,
como a flor é o projecto do fruto.
Se compreendermos bem esse princípio avançaremos mais
depressa, estimulados pela fé em Deus, que é a certeza do Bem que nos espera,
que é a herança de todos, na qual todos se encontrarão.
Essa não é uma visão mística ou optimista de uma
realidade trágica, mas a visão realista do Real que todos podem comprovar na
simples observação de si mesmos do mundo exterior. As Ciências, na sua
objectividade neutra, comprovam cada vez mais essa realidade. O
teólogo Kierkegaard chegou
à conclusão de que o pecado é o caminho da redenção, fundando sem querer a
Filosofia Existencial, ao mesmo tempo em que Kardec fundava sem
intenção a Ciência do Espírito. A compreensão profunda
deste problema leva-nos a amar com mais razão os familiares transviados,
procurando auxiliá-los na dura caminhada dos seus males ao invés de condená-los
e expulsá-los como perdidos.
Mas nem por isso devemos aprovar o Mal, caindo no
extremo contrário dos que o condenaram com violência e aterrorizaram as almas
frágeis com ameaças desesperantes. Certos adeptos de mente
estreita chegaram a negar a existência do Mal — neste mundo de provas e
expiações em que ele ainda predomina — oferecendo óculos angélicos a criaturas
ingénuas. Negar o Mal num plano inferior é convencer os maus de que eles são
bons e entregar-lhes nas garras os bons desprevenidos. Todos somos bons
em potencial, trazemos em nós a potencialidade do Bem, mas enquanto não
transformarmos a nossa bondade em acto continuamos a ser maus. Disfarçar
essa realidade inegável e patente é estimular os maus a continuarem no Mal e a
colherem mais facilmente os ingénuos (nem bons nem maus) nas malhas de sua
hipocrisia. O realismo espírita exige dos
adeptos a vigilância critica que Jesus recomendou aos
discípulos, quando os enviou aos lobos, e à oração que os resguardaria das
ciladas dos sofistas. Jesus rompeu a tradição profética de Israel,
delirante e apocalíptica, instalando em seu lugar a didáctica racional e
realista que Kardec desenvolveria
de maneira intensiva no Século XIX, combatendo por sua vez os delírios
paranóicos de uma teologia Cristã decalcada no Fabulário mitológico e nos
resíduos da metafísica rabínica. O Espiritismo é
realista, apoia-se no real comprovado por experiências científicas. Jesus e
Kardec provaram o que ensinaram. Expressões e frases evangélicas que destoam
dessa orientação metódica foram atribuídas a Jesus pelos redactores dos textos,
homens impregnados pela cultura judaica e mitológica em que foram criados e
formados. Kardec realizou a depuração desses textos, sob orientação constante
dos Espíritos superiores, que demonstraram essa superioridade através da
coerência das suas manifestações rigorosamente racionais e comprovadas
experimentalmente. Por isso Richet afirmou
— ele que temia, como cientista eminente, os enganos da mística —, que
Kardec jamais expusera um princípio sem o haver comprovado.
As partes mitológicas dos Evangelhos, hoje bem
identificadas pelos pesquisadores universitários, comprovando a depuração kardeciana, e
todo o Apocalipse, atribuído a João — livro judaico, pertencente à conhecida
fase apocalíptica da
Israel antiga e não à era apostólica — provam
de maneira irrefutável as influências místicas e mitológicas na redacção dos
textos evangélicos. O Apóstolo Paulo foi o
primeiro a perceber e declarar que a Bíblia Judaica estava perempta e substituída
pelo Evangelho. Claro que o valor histórico da Bíblia e o valor literário dos
seus livros poéticos e proféticos perduram no plano cultural, mas o Velho
Testamento é uma obra do passado longínquo e só o Novo Testamento contém a
orientação moral e espiritual que os espíritas devem seguir. As relações familiais no Espiritismo só podem
seguir a orientação evangélica, pois só ela atende às exigências racionais do
presente e do futuro da Humanidade actual, na preparação dos novos tempos. As
famílias espíritas assim
estruturadas não se abalam com as mudanças naturalmente ocorridas na nossa
civilização nesta fase de transição.
/…
José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo,
VI – Relações Familiais no Espiritismo, 7º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo
por sobre os campos celestes, pintura em acrílico de Costa Brites)
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