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quinta-feira, 3 de novembro de 2016

o grande desconhecido ~


VI - Relações Familiais no Espiritismo |

As relações familiais (i) dos povos primitivos começavam com ampla liberalidade, como já vimos, nas fases infantis. O instinto de imitação das crianças respondia pelo aprendizado espontâneo do comportamento dos adultos. A criança era encarada como um estrangeiro amigo e tratada com respeito e observação… Só na puberdade iria integrar-se no sistema tribal e começar a envolver-se com os ritos e as tradições tribais. Daí por diante a sua liberdade estava condicionada pela cultura da nação, pelas suas tradições, a sua moral e as suas crenças. As pesquisas antropológicas revelaram assim que:

a) os filhos não eram considerados como produzidos pelos pais e herdeiros consanguíneos naturais da raça, mas como criaturas adventícias ou familiares que nela se encarnavam, portanto preexistentes ao nascimento. Essa intuição da preexistência do ser e da reencarnação era inata e generalizada nos povos primitivos, com algumas variantes na sua manifestação nos diferentes povos. Isso comprova a afirmação de Kardec de que as marcas do Espiritismo são encontradas em todas as fases da evolução humana. As manifestações do espírito dos mortos, as práticas mágicas e as evocações completam esse quadro.

b) a prática da couvade (do francês: couvade) que consiste na dieta do pai e não da mãe após o parto, revela a origem natural da autoridade do pai na estrutura da família; mostra que a supremacia do pai não provém apenas da sua maior potencialidade física, mas também e principalmente do facto de ser ele o fecundador e portanto o criador;

c) A mãe não precisa de dieta, não fecunda, é fecundada; a sua relação com o filho é a de serva; incumbida de recebê-lo à porta da vida, criá-lo, zelar por ele, de maneira que o mito da Terra-Mãe, sob o poder fecundante do Sol-Pai; complete nela a sua função protectora.

É desse mito remoto que, nascido do chão, da carne e do sangue, no relacionamento inconsciente da Natureza com o Homem, que vem a estrutura dinâmica da Família, ao mesmo tempo coercitiva e protectora. As leis da tribo ou da horda centralizam-se nela e ajustam-se como a casca ao tronco da Árvore. Mais tarde essa imagem define-se culturalmente na figura da árvore genealógica. Na couvade o pai faz a dieta porque, como criador, o filho está ligado a ele organicamente, de maneira tão íntima, que os seus movimentos no andar, no correr, no saltar, em todas as actividades físicas, prejudicará o recém-nascido. A superstição ingénua, que muitos atribuíram à preguiça do índio, tem motivos profundos na alma primitiva, em que as ligações da magia simpática representam a estrutura mágica do Universo. É o principio espírita da unidade do Universo, onde as coisas e os seres procedem uns dos outros, numa continuidade absoluta. A prática da couvade precedeu de muitos milénios, a mentalidade do homem primitivo, à estruturação matemática do Universo por Pitágoras e à concepção unitária e panteísta de Espinoza.

Das percepções instintivas dos primatas às intuições supersticiosas dos povos selvagens passamos às elaborações mentais das civilizações agrárias e pastoris e destas às formulações de normas, leis e códigos das civilizações teocráticas. Na Idade Média as linhagens de tipo davídico formam os conjuntos de famílias rigidamente estruturadas, que no Renascimento e no Mundo Moderno se prolongam e dispersam em ramificações sofisticadas. O padrão familial consolida-se, mas a evolução cultural e o desenvolvimento industrial, juntamente com o aumento populacional, ameaçam esse mosaico de leis divinas e humanas que não pode resistir às violentas modificações das estruturas sociais. A integridade da família afrouxa, a sua rigidez de princípios amolece ante as novas exigências do mundo novo. Preconceitos milenares são esfarelados, teorias revolucionárias provocam terremotos demolidores. Na Era Tecnológica em que nos encontramos a subversão das estruturas antigas chega ao extremo. Profetas alucinados pregam a destruição pura e simples da família e a volta do homem a uma liberdade primitiva que nunca existiu. Os freios de aço da moral burguesa não podem mais conter o ímpeto da carne, dessa frágil carne humana mais forte que a pedra e o aço. Rompem-se os tabus sexuais e a liberdade, essa deusa de barrete frígio dos ideólogos franceses, reverte-se em libertinagem. Não há mais freios, nem divinos nem humanos, que possam conter a fúria dos impulsos desencadeados. Os faunos recalcados do puritanismo vitoriano esfregam as mãos e arregalam os olhos concupiscentes ante o alvorecer da irresponsabilidade.

É nesse momento que o conceito espírita de família se impõe como única solução para os problemas actuais. As três formas familiais que estudamos no capítulo anterior mostram a insanidade de se encarar a família como simples organização material destinada a acomodar os homens nas estruturas sociais passageiras. Há na família, como no homem, uma finalidade superior a atingir. O elemento que determina a organização familial não é o simples interesse material. A linhagem não é determinada pela tradição ou pelos títulos nobiliárquicos, mas pelo desenvolvimento moral e espiritual das linhas sucessórias. O sangue, por si só, não cria distinções na espécie humana. O único valor verdadeiro do homem, e por isso imperecível, pertence à sua natureza intrínseca, à sua subjectividade existencial. A força aglutinadora, que mantém a estabilidade da família e a projecta no futuro, é a afectividade, o que vale dizer: o Amor. A tónica emocional e magnética que atrai para a família criaturas desviadas ou afastadas é a afinidade de grau evolutivo, de posição conceptual, de aprimoramento ético e estético. Nada disso é objectivo ou material. A família apresenta-se, portanto, na concepção espíritacomo um centro dinâmico de forças espirituais produzido pela evolução terrena e destinado a formar, nas conjugações familiais, a Nova Humanidade Terrena.

O problema das relações familiais, na concepção espíritaescapa ao rígido esquema autoritário elaborado nas civilizações agrárias e pastoris, com base nos mitos telúricos. Essa rigidez foi quebrada no mundo moderno, mas ainda subsiste em vastas camadas e em populações inteiras. A estúpida e ridícula tragédia burguesa do marido traído que mata a esposa infiel ou o amante para defender a sua honra pessoal, tornando-se um honrado e truculento assassino, vigora ainda com força quase total nas nações civilizadas. Isso porque o homem, o criador -- segundo a concepção da couvade, tem direitos absolutos sobre a mulher que fecundou; matá-la, como faziam os romanos com os instrumentos vocais, ou seja, os escravos humanos. A mentalidade prepotente dos escravocratas domina até agora a maioria dos homens, que se julgam viris por assassinarem mulheres indefesas e mais fracas que eles, substituindo os chifres simbólicos pela prova concreta e real de sua covardia. A diferença injusta e criminosa dos direitos entre homem e mulher, que levou Jesus a livrar a mulher adúltera da lapidação brutal em praça pública, responde por esses costumes bárbaros através dos milénios. No Espiritismo a atitude de Jesus é referendada pelo princípio que estabelece a igualdade de direitos entre o homem e a mulher, com diversificação de funções. Porque a diversificação corresponde às exigências de complementação recíproca das actividades masculinas e femininas na família e na sociedade. Não há razão para que a mulher sofra perda de direitos humanos na posição de companheira do homem, da qual é mãe, esposa e filha.

Em face desse princípio a liberdade humana é a mesma para o homem e a mulher no processo existencial, no qual existem como metades biológicas, necessária e reciprocamente complementares, tanto no plano vital e psíquico, quanto em todas as actividades. Reconhecida a igualdade de direitos, não apenas no plano legal, mas principalmente no plano conceptual, a sanção da consciência afasta da família o autoritarismo gerador de conflitos e estabelece o clima de respeito e amor que gera o entendimento. Jesus não vacilou em reconhecer como públicos os direitos romanos, determinados pela aliança dos grandes de Israel com os conquistadores. Não lhe interessava a política mundana, mas quando os donos da casa abrem as portas ao inimigo e se banqueteiam com ele, há direitos de um lado e do outro. Para Jesus os direitos não eram uma questão de poder, mas de justiça. No caso familial cada membro tem o seu direito e este deve ser reconhecido pelos demais. Por isso aprovou o divórcio de Moisés nos casos de traições conjugais, mas advertiu que isso acontecia pela dureza dos corações. E lembrou que no princípio não era assim, porque então prevalecia o amor.

A família não se constitui ao acaso. Toda a reunião de criaturas numa instituição social decorre de compromissos de reajuste e reequilíbrio de situações anteriores. Por isso, as chamadas famílias consanguíneas se desfazem facilmente com a morte, mas para renascerem mais tarde em novas situações reparadoras. Na proporção em que o homem toma consciência desse aspecto do problema, as dificuldades familiais tornam-se mais suportáveis.

No seu crisol as almas se depuram e se preparam para reencontros mais felizes no futuro. Mas erram os que pretendem manter à força a unidade familial, sob a pressão de ameaças divinas ou leis humanas iníquas. Os reajustes só se efectivam em condições propícias e por livre decisão dos implicados. Sem o respeito pela liberdade de opção os sacrifícios forçados geram novos desequilíbrios.

O segredo do êxito no desenvolvimento familial depende da capacidade de amar e compreender dos seus membros. Cada membro da família tem de compreender as condições temperamentais dos outros e sentir que pode amá-los apesar dos seus erros e imperfeições. Nesse caso a família perdura e atinge os seus objectivos. Os problemas sexuais geram situações aparentemente insolúveis no quadro familial. Mas se colocarmos o amor ao próximo acima das condenações impiedosas, compreendendo que cada qual sente as exigências do sexo de acordo com a sua condição própria, passando pelas provas de que necessita, poderemos transformar situações desastrosas em oportunidades de orientação.

Espiritismo oferece-nos um conceito do bem e do mal que, apesar de muito simples e claro, ainda não foi bem compreendido até agora pela maioria dos espíritas. Deus é o Bem e está presente em tudo. O Mal é tudo o que se opõe a Deus. Dessa maneira, a dialéctica do Bem e do Mal define-se como Evolução. Toda a realidade que conhecemos e podemos conhecer nos revela a incessante passagem das coisas e dos seres de uma condição caótica, imprecisa, confusa, estática, morta, para condições de ordem, organização, definição, dinamismo e vida. A morte e a destruição, como a dor, o desespero, a loucura, nada mais são do que fases de transição de um estagio para outro. São os túneis da evolução. A morte enquanto morte é o mal, mas quando se reacende em vida na ressurreição é o Bem, e sempre um bem maior do que o anterior. Nada morre, nada se destrói, tudo evolui. Sem o erro não há acerto. Sem a derrota não há vitória, para nos devolver alegremente à rota certa. Progredimos no Mal em direcção ao Bem. Erros, quedas, crimes, sofrimentos são passos no caminho do Bem, que nos levam a Deus. Nada e ninguém pode permanecer no Mal, porque os males do Mal impulsionam tudo e todos na direcção do Bem. O Não-Ser é o projecto do Ser, como a flor é o projecto do fruto.

Se compreendermos bem esse princípio avançaremos mais depressa, estimulados pela fé em Deus, que é a certeza do Bem que nos espera, que é a herança de todos, na qual todos se encontrarão.

Essa não é uma visão mística ou optimista de uma realidade trágica, mas a visão realista do Real que todos podem comprovar na simples observação de si mesmos do mundo exterior. As Ciências, na sua objectividade neutra, comprovam cada vez mais essa realidade. O teólogo Kierkegaard chegou à conclusão de que o pecado é o caminho da redenção, fundando sem querer a Filosofia Existencial, ao mesmo tempo em que Kardec fundava sem intenção a Ciência do Espírito. A compreensão profunda deste problema leva-nos a amar com mais razão os familiares transviados, procurando auxiliá-los na dura caminhada dos seus males ao invés de condená-los e expulsá-los como perdidos.

Mas nem por isso devemos aprovar o Mal, caindo no extremo contrário dos que o condenaram com violência e aterrorizaram as almas frágeis com ameaças desesperantes. Certos adeptos de mente estreita chegaram a negar a existência do Mal — neste mundo de provas e expiações em que ele ainda predomina — oferecendo óculos angélicos a criaturas ingénuas. Negar o Mal num plano inferior é convencer os maus de que eles são bons e entregar-lhes nas garras os bons desprevenidos. Todos somos bons em potencial, trazemos em nós a potencialidade do Bem, mas enquanto não transformarmos a nossa bondade em acto continuamos a ser maus. Disfarçar essa realidade inegável e patente é estimular os maus a continuarem no Mal e a colherem mais facilmente os ingénuos (nem bons nem maus) nas malhas de sua hipocrisia. O realismo espírita exige dos adeptos a vigilância critica que Jesus recomendou aos discípulos, quando os enviou aos lobos, e à oração que os resguardaria das ciladas dos sofistas. Jesus rompeu a tradição profética de Israel, delirante e apocalíptica, instalando em seu lugar a didáctica racional e realista que Kardec desenvolveria de maneira intensiva no Século XIX, combatendo por sua vez os delírios paranóicos de uma teologia Cristã decalcada no Fabulário mitológico e nos resíduos da metafísica rabínica. O Espiritismo é realista, apoia-se no real comprovado por experiências científicas. Jesus e Kardec provaram o que ensinaram. Expressões e frases evangélicas que destoam dessa orientação metódica foram atribuídas a Jesus pelos redactores dos textos, homens impregnados pela cultura judaica e mitológica em que foram criados e formados. Kardec realizou a depuração desses textos, sob orientação constante dos Espíritos superiores, que demonstraram essa superioridade através da coerência das suas manifestações rigorosamente racionais e comprovadas experimentalmente. Por isso Richet afirmou — ele que temia, como cientista eminente, os enganos da mística —, que Kardec jamais expusera um princípio sem o haver comprovado.

As partes mitológicas dos Evangelhos, hoje bem identificadas pelos pesquisadores universitários, comprovando a depuração kardeciana, e todo o Apocalipse, atribuído a João — livro judaico, pertencente à conhecida fase apocalíptica da Israel antiga e não à era apostólica — provam de maneira irrefutável as influências místicas e mitológicas na redacção dos textos evangélicos. O Apóstolo Paulo foi o primeiro a perceber e declarar que a Bíblia Judaica estava perempta e substituída pelo Evangelho. Claro que o valor histórico da Bíblia e o valor literário dos seus livros poéticos e proféticos perduram no plano cultural, mas o Velho Testamento é uma obra do passado longínquo e só o Novo Testamento contém a orientação moral e espiritual que os espíritas devem seguir. As relações familiais no Espiritismo só podem seguir a orientação evangélica, pois só ela atende às exigências racionais do presente e do futuro da Humanidade actual, na preparação dos novos tempos. As famílias espíritas assim estruturadas não se abalam com as mudanças naturalmente ocorridas na nossa civilização nesta fase de transição.

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José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, VI – Relações Familiais no Espiritismo, 7º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, pintura em acrílico de Costa Brites)

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