Capítulo VI
A Lorraine e os Vosges. Joana d’Arc, alma céltica
A Lorraine e os Vosges. Joana d’Arc, alma céltica
Por quê estas páginas sobre a Lorraine? – pergunta-se. Esta
região, afastada de todos os grandes focos célticos, pode então figurar na sua
sequência? Sim, certamente, porque a Lorraine sempre tem sido o baluarte de
defesa do mundo céltico contra os germanos.
Demais, deve notar-se que existe uma lacuna em quase todas
as obras similares. Fala-se muito da Bretagne e passa-se em silêncio sobre as
outras regiões célticas. Ora, para facilitar, na França, o despertar da alma
céltica, reconduzi-la às suas tradições, mostrar a altivez de suas origens, é
preciso lembrar a sua ascendência sobre outras províncias interessadas e
desembaraçá-las, assim, dessa influência latina que, desde muitos séculos,
dissimula a sua própria individualidade.
A Lorraine foi, constantemente, o caminho de invasões dos
povos vindos do norte atraídos pelos eflúvios das regiões quentes ou temperadas.
Desde os primeiros tempos de nossa história, longa seria a lista das hordas
estrangeiras que têm pisado o seu solo e devastado os seus campos. Toda a minha
infância foi embalada pelo relato das depredações causadas pelos exércitos
inimigos. À sua aproximação, os habitantes das aldeias, levando o que tinham de
mais precioso, fugiam para os confins dos bosques onde erguiam as barracas, às
pressas. Igualmente, enquanto que, no centro e no oeste, os sítios e as
habitações estão disseminados aqui e ali, conforme as necessidades da cultura,
é notável de ver, no leste, as populações agrupadas em grandes vilas; as casas
isoladas, ali, são raras. De todos esses fluxos e refluxos de exércitos, desses
cercos e choques violentos, a Lorraine sofreu mais do que qualquer outra
província francesa. Isso motivou um patriotismo ardente que persiste através
dos séculos.
A cadeia dos Vosges se ergue como uma muralha, da qual o
Reno parece ser o fosso. A planície da Alsace é misturada de elementos gauleses
e germânicos, mas por toda a parte, as lembranças célticas dominam. O mesmo ocorre
em alguns outros pontos da Lorraine.
Como um posto avançado cobrindo a linha dos montes, o
Odilienberg eleva bem alto, acima dessa planície, o seu campo entrincheirado,
formado de blocos ciclópicos, enorme recinto que podia servir de refúgio e de
defesa a uma tribo inteira com todos os seus recursos em grãos, rações e
animais.
Sobre duas elevações, ocupadas hoje em dia por duas capelas,
se achavam os templos de Hésus e de Bellena. O Donon, como o Puy de Dôme, era
uma montanha consagrada aos deuses, e sobre quase todos os cumes dos Vosges se encontram vestígios de altares druídicos.
Eu andei, frequentemente, sobre essas cristas e esses
planaltos encrespados de carvalhos, de faias e de negros abetos entre os
rochedos de arenito vermelho e de ruínas de velhos burgos, pousados como ninhos
de águia sobre os altos cumes.
A qual época remonta o vasto sistema de defesa que, sob o
nome de “muro pagão”, abarca as alturas de Sainte-Odile, a Bloss e o
Menelstein? Evidentemente, à época das primeiras invasões germânicas, as quais
ele tinha, por finalidade, deter ou retardar. Esses entrincheiramentos pertenciam,
portanto, ao período céltico.
Maurice Barrès escrevia sobre esse assunto:
“Nessa montanha, desde o século IV ou III a.C., os celtas
tinham construído o “muro pagão”. Encontram-se sobre esse cume os restos de um
“oppidum” (fortaleza) gaulês e provavelmente um colégio sacerdotal druídico.”
(I)
Escreveu, por sua vez, Edouard Schuré:
“Os “tumuli” (montes de pedras, espécie de túmulos)
encontrados no recinto, os menires posados sobre os flancos, os dolmens e as
pedras de sacrifício que se espalham pelas montanhas e vales ao redor, os nomes
de certas localidades, tudo prova que a montanha Sainte-Odile foi, nos tempos
célticos, a sede de um grande culto.” (II)
Esse autor, portanto, considera esse prodigioso conjunto de
ruínas como os restos de um dos maiores santuários da Gália. Ele coloca sobre o
promontório de Landsberg o “Templo do Sol”, usado pelos druidas. Desse ponto o
panorama é imenso, estendendo-se para trás sobre as vastas florestas e vales
encaixados que cobrem as vertentes dos Vosges e em direcção oposta, sobre toda
a planície da Alsace. De longe, a fita prateada do Reno se desenrola;
finalmente, no horizonte, por cima das arestas sombrias da Floresta Negra, a
vista se estende até aos cumes dos Alpes, deslumbrante, sob a sua coroa de
geleiras.
Pode notar-se, como fizemos a propósito da Bretagne, que a
maior parte dos grandes santuários cristãos foram adaptados, poder-se-ia dizer,
foram enxertados sobre cultos anteriores.
Nos terrenos consagrados pelos druidas durante séculos foi
construído, mais tarde, o Mosteiro de Sainte-Odile, padroeira da Alsace.
Apesar da mudança de religião, desde dois mil anos, longas
filas de peregrinos se encaminhavam para a “Montanha do Sol”, para ali procurar
um socorro moral. Sob nomes e fórmulas variadas, a sua fé, as suas orações a
ela os atraíam e nela acumulavam essas forças psíquicas das quais a ciência
começa apenas a medir a potência e a extensão. Eles criavam, assim, um ambiente
fluídico e magnético que permitia ao mundo invisível se reaproximar do mundo
terrestre e agir sobre ele. Daí, essas manifestações e principalmente essas
curas maravilhosas que se produziram nos lugares sagrados de todos os tempos,
de todos os países e de todas as religiões.
No seio desses sítios grandiosos, o pensamento se eleva com
mais força, comunga com mais intensidade com o Além superior, porque Deus está
por toda parte onde a natureza fala ao coração do homem.
Quando um tremor passa sobre as massas de verde e faz ondular
o cume das grandes árvores da floresta, quando a voz das torrentes e das
cascatas se eleva do fundo dos vales, a alma iniciada compreende melhor a
beleza eterna, a suprema harmonia das coisas, e vibra em uníssono com a vida
universal. É o que eu senti não somente sobre as alturas de Sainte-Odile, mas
também sobre a maior parte dos cumes dos Vosges e, notadamente, sobre o
Hohneck, de onde a vista engloba toda a planície até ao Reno, até aos Alpes longínquos.
Dia virá em que os homens, afastando-se das velhas formas
religiosas, se unirão num pensamento comum de adoração e de amor. Como no tempo
dos druidas, a natureza retornará ao templo augusto; será então a religião do
espírito, consciente dele mesmo e de seu destino, que é o de evoluir de vidas
em vidas, de mundos em mundos em direcção ao foco eterno de toda luz, de toda
sabedoria, de toda verdade. E assim será fundada a unidade religiosa da Terra e
do espaço, de duas humanidades, visível e invisível.
/…
(I) Maurice Barrés, Au
service de l’Allemagne, cap. VI.
(II) Les Grandes
Légendes de France. Ed. Perrin.
LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível,
Primeira Parte OS PAÍSES CÉLTICOS, CAPÍTULO VI – A Lorraine e os Vosges. Joana d’Arc, alma
céltica 1 de 3, 19º fragmento da obra.
(imagem: A Apoteose dos heróis franceses que
morreram pelo seu país durante a guerra da Liberdade, pintura de Anne-Louis
Girodet-Trioson)