Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 6 de abril de 2025

o problema do | ser


(Quem sou... o que faço aqui... de onde vim... para onde vou...)

Estados vibratórios da Alma – A memória

(por Léon Denis)

A vida é uma vibração imensa que enche o universo e cujo foco está em Deus. Cada alma, centelha destacada do Foco Divino, se torna, por sua vez, um foco de vibrações que hão de variar, aumentar de amplitude e intensidade, consoante o grau de elevação do ser. Esse facto pode ser verificado experimentalmente. (ii)

Toda a alma tem, pois, a sua vibração particular e diferente. O seu movimento próprio, o seu ritmo, é a representação exacta do seu poder dinâmico, do seu valor intelectual, da sua elevação moral.

Toda a beleza, toda a grandeza do universo vivo se resume na lei das vibrações harmónicas. As almas que vibram uníssonas reconhecem-se e chamam-se através do espaço. Daí as atracções, as simpatias, a amizade, o amor! Os artistas, os sensitivos, os seres delicadamente harmonizados conhecem essa lei e lhe sentem os efeitos. A alma superior é uma vibração na posse de todas as suas harmonias.

A entidade psíquica penetra com as suas vibrações todo o seu organismo fluídico, o perispírito, que é a sua forma e imagem, a reprodução exacta da sua harmonia pessoal e da sua luz; mas chegada a encarnação (i) e essas vibrações vão reduzir-se, amortecer-se debaixo do invólucro carnal (corpo). O foco interior já não poderá projectar para o exterior senão uma radiação enfraquecida, intermitente. Entretanto, no sono, no sonambulismo, no êxtase, desde que à alma se abra uma saída através do invólucro de matéria que a oprime e agrilhoa, restabelece-se imediatamente a corrente vibratória e o foco torna a adquirir toda a sua actividade. O Espírito encontra-se novamente nos seus estados anteriores de poder e liberdade. Tudo o que nele dormia desperta. As suas numerosas vidas reconstituem-se, não só com os tesouros do seu pensamento, com as reminiscências e aquisições, mas também com todas as sensações, alegrias e dores registadas no seu organismo fluídico. É essa a razão pela qual, no transe, a alma, vibrando as recordações do passado, afirma as suas existências anteriores e reata a cadeia misteriosa das suas transmigrações.

As menores particularidades da nossa vida registam-se em nós e deixam traços indeléveis. Pensamentos, desejos, paixões, actos bons ou maus, tudo se fixa, tudo se grava em nós. Durante o curso normal da vida, essas recordações acumulam-se em camadas sucessivas e as mais recentes acabam por apagar, pelo menos aparentemente, as mais antigas. Parece que esquecemos aqueles mil pormenores da nossa existência dissipada. Basta, porém, evocar, nas experiências hipnóticas (i), os tempos passados e tornar, pela vontade, a colocar o sujet numa época anterior da sua vida, na mocidade ou no estado de infância, para que essas recordações reapareçam em massa. O sujet revive o seu passado, não só com o estado de alma e associação de ideias que lhe eram peculiares nessa época, ideias às vezes bem diversas das que ele professa actualmente, com os seus gostos, hábitos, linguagem, mas também reconstituindo automaticamente toda a série dos fenómenos físicos contemporâneos daquela época. Leva-nos isso a reconhecer que há íntima correlação entre a individualidade psíquica e o estado orgânico.

Cada estado mental está associado a um estado fisiológico. A evocação de um na memória dos sujets traz imediatamente a reaparição do outro. (iii)

Dadas as flutuações constantes e a renovação integral do corpo físico em alguns anos, esse fenómeno seria incompreensível sem a intervenção do perispírito, que guarda em si, gravadas na sua substância, todas as impressões de outrora. É ele que fornece à alma a soma total dos seus estados conscientes, mesmo depois da destruição da memória cerebral. Assim o demonstram os Espíritos nas suas comunicações, visto que conservam no espaço até as menores recordações da sua existência terrestre.

Esse registo automático parece efectuar-se em forma de agrupamento, ou zonas, dentro de nós, que correspondem a outros tantos períodos da nossa vida, de maneira que, se a vontade, por meio da auto-sugestão ou da sugestão estranha, o que é a mesma coisa, pois que, como vimos, a sugestão, para ser eficaz, deve ser aceite pelo paciente e transformar-se em auto-sugestão, se a vontade, dizemos, faz reviver uma lembrança pertencente a um período qualquer do nosso passado, todos os factos de consciência que têm ligação com esse mesmo período se desenrolam imediatamente numa concatenação metódica. Gabriel Delanne comparou esses estados vibratórios com as camadas concêntricas observadas nas secções de uma árvore e que permitem se lhe calcule o número de anos.

Isso tornaria compreensíveis as variações da personalidade de que falamos. Para observadores superficiais, esses fenómenos se explicam pela dissociação da consciência. Estudados de perto e analisados, representam, pelo contrário, aspectos de uma consciência única, correspondentes a outras tantas fases de uma mesma existência. Esses aspectos revelam-se desde que o sono é bastante profundo e o desprendimento perispiritual (i) suficiente. Se se tem podido acreditar em mudanças de personalidade, é porque os estados transitórios, intermediários, faltam ou se apagam.

O desprendimento, dissemos atrás, é facilitado pela acção magnética. Os passes feitos num sensitivo relaxam pouco a pouco e desatam os laços que unem o Espírito ao corpo. A alma e a sua forma etérea saem da ganga material e essa saída constitui o fenómeno do sono. Quanto mais profunda for a hipnose, tanto mais a alma se separa e se afasta, recobrando a plenitude das suas vibrações. A vida activa concentra-se no perispírito, enquanto que a vida física fica suspensa.

A sugestão aumenta também o ritmo vibratório da alma. Cada ideia contém o que os psicólogos chamam a tendência para a acção e essa tendência transforma-se em acto pela sugestão. Esta, com efeito, não é mais do que um modo da vontade. Levada à mais alta intensidade, torna-se força motriz, alavanca que levanta e põe em movimento as potências vitais adormecidas, os sentidos psíquicos e as faculdades transcendentais.

Vê-se então produzirem-se os fenómenos da clarividência, da lucidez, do despertar da memória. Para essas manifestações se tornarem possíveis, o perispírito deve ser previamente impressionado por um abalo vibratório determinado pela sugestão. Esse abalo, acelerando o movimento rítmico, tem por efeito restabelecer a relação entre a consciência cerebral e a consciência profunda, relação que está interrompida no estado normal durante a vida física. Então as imagens e as reminiscências armazenadas no perispírito podem reanimar-se e tornar-se novamente conscientes; mas, ao despertar, a relação cessa logo, o véu torna a cair, as recordações longínquas apagam-se pouco a pouco e voltam a entrar na penumbra.

A sugestão é, pois, o processo que se deve empregar, de preferência, nessas experiências. Para reconduzir os sujets a uma época determinada do seu passado são eles adormecidos por meio de passes longitudinais, depois se lhes sugere que têm tal ou qual idade. Assim, se faz que remontem a todos os períodos da sua existência; podem obter-se fac-similes da sua letra, que variam segundo as épocas e são sempre concordantes, quando se trata das mesmas épocas evocadas no curso de diferentes sessões. Por meio de passes transversais faz-se com que voltem depois ao ponto actual, tornando a passar pelas mesmas fases.

Pode também – e nós assim o temos feito – sugerir-se ao sujet uma data determinada do seu passado, ainda o mais remoto, e fazê-lo renascer nele. Se o sujet for muito sensível, vê-se então desenrolarem-se cenas de cativante interesse com pormenores sobre o meio evocado e as personagens que nele vivem, pormenores que são às vezes susceptíveis de verificação. “Tem-se podido reconhecer – diz o Coronel de Rochas – que as recordações assim avivadas eram exactas e que os sujets tomavam sucessivamente as personalidades correspondentes à sua idade.” (iv)

Continuamos a tratar desses fenómenos, cuja análise projecta uma luz viva sobre o mistério do ser. Todos os aspectos variados da memória, a sua extinção na vida normal, o seu despertar no transe e na exteriorização, tudo se explica pela diferença dos movimentos vibratórios que ligam a alma e o seu corpo psíquico ao cérebro material. A cada mudança de estado as vibrações variam de intensidade, fazendo-se mais rápidas, à medida que a alma se desprende do corpo. As sensações são registadas no estado normal, com um mínimo de força e duração; mas a memória total subsiste no fundo do ser. Por pouco que os laços materiais se afrouxem e a alma seja restituída a si mesma, ela torna a encontrar, com o seu estado vibratório superior, a consciência de todos os aspectos da sua vida, de todas as formas físicas ou psíquicas da sua existência integral. É, como vimos, o que se pode verificar e reproduzir artificialmente no estado hipnótico. Para bem nos orientarmos no labirinto desses fenómenos é preciso não esquecer que esse estado comporta muitos graus. A cada um desses graus se vincula uma das formas da consciência e da personalidade; a cada fase do sono corresponde um estado particular da memória; o sono mais profundo faz surgir a memória mais extensa. Esta restringe-se cada vez mais, à medida que a alma reintegra o seu invólucro (corpo). Ao estado de vigília, ou acordado, corresponde a memória mais restrita, mais pobre.

O fenómeno da reconstituição artificial do passado faz-nos compreender o que se passa depois da morte, quando a alma, livre do corpo terrestre, torna a encontrar-se na presença de sua memória aumentada, memória-consciência, memória implacável que conserva a impressão de todas as suas faltas, tornando-se o seu juiz e, às vezes, o seu algoz; mas, ao mesmo tempo, o “eu” fragmentado em camadas distintas, durante a vida deste mundo, reconstitui-se na sua síntese superior e na sua magnífica unidade. Toda a experiência adquirida no decorrer dos séculos, todas as riquezas espirituais, fruto da evolução, muitas vezes latentes ou, pelo menos, amortecidas, apoucadas nesta existência, reaparecem no seu brilho e frescura para servir de base a novas aquisições. Nada se perde. Às camadas profundas do ser, juntam-se os desfalecimentos e as quedas, proclamam também os lentos e penosos esforços acumulados no decorrer das idades para constituírem essa personalidade, que irá sempre crescendo, sempre mais rica e mais bela, na feliz expansão das suas faculdades adquiridas, as suas qualidades e as suas virtudes.
/…

(ii) Os doutores Baraduc (i) e Joire construíram aparelhos registadores que permitem medir a força radiante que se escapa de cada pessoa humana e varia segundo o estado psíquico do sujet.
(iii) Essa lei é reconhecida em psicologia com o nome de Paralelismo psicofísico. Wundt (i), nas suas Léçons sur l'Ame (2ª edição, Leipzig, 1892), já dizia: “A cada facto psíquico corresponde um facto físico qualquer.” As experiências dos próprios materialistas fazem sobressair a evidência dessa lei. É assim, por exemplo, que M. Pierre Janet (i), quando faz voltar o seu sujet Rosa, a dois anos antes, no curso da sua vida actual, vê reproduzirem-se nela todos os sintomas do estado de gravidez em que se encontrava naquela época. (P. Janet, professor de psicologia na Sorbonne, L'Automatisme Psychologique, pág. 160.) Ver também os casos assinalados pelos doutores Bourru e Burot, Changements de la Personnalité, pág. 152; pelo Dr. Sollier, Des Hallucinations Autoscopiques (Bulletin de l'Institut Psychique, 1902, págs. 30 e segs.) e os relatados pelo Dr. Pitre, decano da Faculdade de Medicina de Bordéus, no seu livro Le Somnambulisme et l'Hystérie.
(iv) Annales des Sciences Psychiques, Julho de 1905, página 350.


Léon Denis, O Problema do Ser, do Destino e da Dor, Primeira Parte O Problema do Ser, VIII – Estados vibratórios da Alma – A memória, 9º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Sin título (detalhe), de uma pintura atribuída a Josefina Robirosa)

quinta-feira, 20 de março de 2025

O Homem e a Sociedade ~


Capítulo IX

A Imagem do Homem no Fenómeno Metapsíquico ~

  Na ocorrência matapsíquica chamada materialização existe algo mais do que um fenómeno: temos a imagem do homem e a face espiritual de sua individualidade. Não esqueçamos que se esse fenómeno não tivesse uma raiz que mergulha no eterno, não revelaria, como sempre o faz, uma imagem e uma face espiritual. Seria constituído apenas de representações amorfas ou na formação de figuras caprichosas, alheias à representação humana. Entretanto, no fenómeno metapsíquico, manifesta-se sempre a imagem do homem, tão real e viva, que fala, sente e ama.

  Que demiurgo caprichoso se compraz em manifestar-se nesse fenómeno, não através de loucas fantasmagorias, mas revelando-nos um homem vivo, com a sua própria imagem e natureza? A esta pergunta podemos responder que: se na materialização metapsíquica se apresenta a imagem humana, isso nos fornece a razão para repelirmos as doutrinas do materialismo e estabelecermos os lineamentos de uma biologia da alma, de uma nova concepção filosófica sobre o destino do Ser e da existência.

  O fenómeno de materialização metapsíquica representa um chamado ao sentido metafísico dos novos tempos. Omitir essa manifestação seria retardar o progresso da antropologia, de maneira que os interesses de sistemas ou de seitas não deveriam prevalecer frente a um fenómeno que tão fielmente nos revela a imagem do homem e de seu espírito. Entretanto, essa espécie de traição ao homem espiritual foi consumada pelos próprios “estudiosos” da metapsíquica, temerosos de serem considerados espíritas.

  Não obstante, fenomenologia metapsíquica exige do filósofo uma nova definição do homem, pois a sua inegável realidade nos permite afirmar que o ser humano é algo mais que um facto fisiológico. Para a filosofia espírita e o realismo metapsíquico, o homem é um dínamopsiquismo que ultrapassa a representação física do organismo, ainda que a idiossincrasia universitária, de carácter acomodatício, prefira uma metapsíquica fisiológica, como a de René Sudre. (i)

  Mas não é para isso que o fenómeno metapsíquico nos mostra o seu mundo de aparições e desaparições, esse conjunto de factos que estão revelando, com toda a clareza, que o Espírito ultrapassa os centros nervosos e que possui um mundo espiritual independente das circunvoluções cerebrais.

  Onde a metapsíquica se mostra grandiosa e comovedora é precisamente quando nos revela a imagem do homem, viva e materializada, como se regressasse de um longínquo país. É então que se evidencia, num facto supranormal que revoluciona todo o mundo conhecido da natureza, que a sua origem não é natural, como à força o querem biólogos, filósofos materialistas, e até certas correntes espiritualistas. Esquece-se que a metapsíquica nos oferece uma visão nova do homem e do Universo, apresentando-nos ainda outras conclusões metafísicas e com esta visão, o homem se nos apresenta como um poder psíquico que incide sobre a sua própria morte, para superá-la, como um ser dotado da natureza imortal. Esta superação espiritual da morte, pelo homem, é a razão fundamental do fenómeno metapsíquico; por isso, a imagem do homem está presente na sua manifestação. Não esqueçamos que a fisionomia humana não se manifesta em nenhum outro facto da natureza. Assim, se a metapsíquica no-la revela, é porque persegue algum propósito extraordinário, através do númeno que a conduz e a determina.

  William Crookes viu um espírito em carne e osso; viu um Ser quase ressuscitado, que falava com os vivos e se dava o nome de Katie King. O sábio inglês tocou a sua carne e sentiu que era viva, real e quente, o que levou o grande fisiólogo espanhol Jaume Ferran a dizer, referindo-se às materializações“Temos de confessar que estas materializações constituem o grande enigma da metapsíquica. O facto de aparecerem formas de contornos vagos, dotadas de uma luminosidade especial, que acabam por adquirir o aspecto de órgãos, membros e até de figuras humanas completas, que falam, se movimentam e respiram, exalando ácido carbónico; que têm pulsações arteriais, um coração que bate e a temperatura normal; que se desvanecem na presença dos espectadores e que, ainda quando seguradas firmemente, se esvaem sem deixar o menor vestígio; ninguém poderá negar que realmente constitui um grande mistério.” (ii)

  Crookes comprovou também que essa materialização metapsíquica tinha sangue de imortalidade, (iii) e que a imagem humana de Katie King era tão positiva e real como se não procedesse do outro mundo.

  Mas porque é que a teologia, a teosofia hindu e os sistemas espiritualistas negaram a espiritualidade e a realidade desse assombroso fenómeno? Porque é que negaram a prova da existência imortal do Espírito, quando a tiveram diante dos olhos?

  Acreditamos que a negaram porque se haviam esquecido das próprias aparições de Cristo depois da morte, essas divinas manifestações do Espírito de Jesus, que inauguraram para sempre, diante da humanidade e da história, a relação permanente entre os vivos e os mortos, como um prenúncio do que seria a ciência espírita do futuro. Assim, as ciências espirituais que não aprovam as manifestações de entidades invisíveis tornam-se superficiais e falíveis, divorciam-se das antigas modalidades do cristianismo.

  A investigação metapsíquica racionalizou a busca da imortalidade da alma. Aplicando-lhe o método científico, transformou em matéria experimental o que antes se considerava exclusivamente como sobrenatural ou pertencente à especulação teológica. Deste modo, o que se acreditava ser do domínio religioso passou para o domínio científico; consequentemente, a razão pode agora buscar uma nova fé, através dessa “teologia experimental” a que se referiu Jaume Ferran, ao tratar da obra metapsíquica do professor Charles Richet.

  O organismo humano, segundo a metapsíquica, possui um dinamopsiquismo que não depende dos centros nervosos. É por isso que a velha teoria do paralelismo psicofisiológico se desmorona ante a terrível metapsíquica, pois esta revela fenómenos decisivos a respeito, que constituem verdadeira contribuição de um grande númeno espiritual, encarregado de espiritualizar o conhecimento humano. Segundo as provas metapsíquicas, o Ser é uma força divina que dirige e condiciona o seu próprio desenvolvimento orgânico e espiritual, submetendo-se para isso à maravilhosa lei dos renascimentos.

  As teorias puramente naturalistas passam assim a ocupar um lugar secundário, já que o conhecimento metapsíquico dota o homem de um novo sentido filosófico e religioso. A ideia está recobrando a sua primazia na ordem do conhecimento, mas com acento revolucionário, pois o idealismo da metapsíquica não se parece em nada com o velho idealismo escolástico. A filosofia idealista que emerge dos factos sobrenaturais vem confirmar o carácter dinâmico e revolucionário do espiritismoEm consequência, o homem metapsíquico é totalmente diferente do homem materialista, tendo possibilidades de ampliar os sentidos humanos e até mesmo de dotar a espécie de órgãos psíquicos que modificarão as actuais noções de tempo e espaço. Os cinco sentidos do homem comum poderão ser ampliados por um sexto sentido, nexo psíquico que conectará a espécie com as realidades do mundo espiritual.

  De acordo com a filosofia espírita, a imagem do homem mudará, porque tudo está destinado a renovar-se. Deus não deu à criatura humana uma imagem definitiva, mas uma face espiritual que se irá transformando com a evolução. Porque o Ser é uma entidade que avança para a imagem de Deus, através do grande processo palingenésico a que está sujeito, adentrando-se cada vez mais no Divino Plano do Universo.

  À luz da filosofia espírita podemos dizer que a metapsíquica é a ciência dos fenómenos espirituais. Por esta ciência da Alma, como a chamaram Ernesto Bozzano e Charles Richet, a humanidade conhecerá a verdadeira senda espiritual que deve percorrer. Mas isto só acontecerá quando cessarem as rivalidades religiosas e ideológicas. Então se reconhecerá, para o bem da espécie, que no fenómeno metapsíquico está presente à imagem do homem desencarnado e que o espiritismo será o traço de união entre o materialismo e o espiritualismo clássicos.

  O espiritualismo kardecista guarda esse elo perdido, o nexo que reconciliará o pensamento materialista com o espiritualista. A tese de Gustave Geley, que sustenta não haver matéria sem espírito, nem espírito sem matéria, mostra-nos o enlace do elemento material com o elemento espiritual. Reconhecido o fenómeno metapsíquico como uma manifestação da substância ectoplásmica, será fácil compreender que matéria e espírito “são duas realidades que se conjugam, já que o desenvolvimento espiritual e físico resulta da união entre o corpo e a ideia. Assim se reconhecerá que não existe materialismo nem espiritualismo puros. Ambos os sistemas participarão reciprocamente dos seus respectivos elementos e o que antes os separava, agora os aproximará, demonstrando que o materialismo possui valores para o espiritualismo e o espiritualismo valores para o materialismo. (iv)

  A metapsíquica contribuirá enormemente para esta inter-relação de ambos os sistemas, devido à realidade biológica e espiritual revelada pelos seus fenómenos de materialização, que vieram confirmar a tese de que uma essência una anima e movimenta a vida de todo o Universo. (v)

/...
(i) A posição metapsíquica de Sudre, vigorosamente refutada por Ernesto Bozzano, renova-se actualmente na parapsicologia, Os próprios trabalhos de Sudre estão sendo reeditados, no interesse de refutar as conclusões extrafísicas de Rhine. (Nota de J.H. Pires).
(ii) Do prólogo ao Tratado de Metapsíquica, de Charles Richet, edição espanhola.
(iii) “Sangue de imortalidade”, expressão vigorosa com que o autor se refere à natureza humana do fenómeno. (Nota de J.H. Pires).
(iv) Kardec afirmou que o espiritismo e as ciências devem avançar juntos, porque tratam respectivamente dos dois aspectos fundamentais do Universo: o espírito e a matéria. (Ver a introdução de O Livro dos Espíritos e A Génese) Léon Denis, em O Génio Céltico e o Mundo Invisível, declara que o espiritismo avança para a realização da síntese do conhecimento, reunindo o saber espiritual e o material. Mariotti reafirma essa tese epistemológica da filosofia espírita. (Nota de J.H. Pires).
(v) A metapsíquica é considerada pelo autor como uma espécie de campo científico do espiritismo, uma zona intermediária em que o biológico e o anímico se encontram, dando lugar às manifestações ectoplásmicas que sintetizam espírito e matéria. (Nota de J.H. Pires).


Humberto MariottiO Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, Do Materialismo Histórico a uma Dialéctica do Espírito, 1ª PARTE O NÚMENO ESPIRITUAL NOS FENÓMENOS SOCIAIS, Capítulo IX A Imagem do Homem no Fenómeno Metapsíquico, 14º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Alrededores de la ciudad paranóico-crítica: tarde al borde de la historia europea
1936, Salvador Dali).

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Deus na Natureza ~


~ O Destino dos Seres e das Coisas ~
~ Plano da Natureza ~ O Instinto e a Inteligência ~
(I)

  A construção lenta e progressiva dos seres e a formação das espécies duradouras estabelecem a presença permanente da causa criadora e proclamam, de forma eloquente, a sua sabedoria e inteligência.

  Se deixarmos, agora, de lado a organização do indivíduo, para estudarmos a da família, penetraremos nos mistérios do instinto e, ainda aí, encontraremos o plano do Criador brilhantemente caracterizado.

  Muito se há discutido sobre a alma animal, depois que DescartesLeibnitz e, a seguir, Reaniur se deram ao trabalho de observar in natura, directamente, a vida e costumes dos animais. É, sobretudo, pela observação directa que nos podemos instruir acerca da preciosa faculdade das espécies vivas, que lhes assegura a conservação e, basta constatar os sinais evidentes desta lei universal, para lhe aferir o valor, sob o ponto de vista dos desígnios da Criação.

  Antes de tudo, convém distinguir inteligência e instinto. Os animais possuem uma e o outro como faculdades bem distintas. Com a primeira pensam, reflectem, compreendem, decidem, recordam, adquirem experiência, amam, odeiam, julgam, por processos análogos aos da inteligência humana; com a segunda, operam obedecendo a uma impulsão íntima, sem apreensão, sem conhecimento, inconscientes do motivo e do resultado dos seus actos. Fixemos alguns exemplos, para melhor definir esses caracteres.

  Eis como nos fala Buffon de um orangotango ainda novo, por ele observado: – “Vi-o dar a mão para conduzir as pessoas que o visitavam e passear com elas como se estivesse convencido do seu papel; vi-o sentar-se à mesa, pegar um guardanapo, limpar os lábios, utilizar-se da colher e do garfo, encher o copo e tocá-lo noutro, quando a isso convidado; vi-o ir buscar uma chávena, pôr-lhe o açúcar e o chá, aguardando que este esfriasse para então o beber. Tudo isso, sem outra instigação que a palavra e a mímica do seu dono e, algumas vezes, por si mesmo. Não fazia mal a quem quer que fosse; mostrava-se mesmo circunspecto e na atitude de quem pedisse carinho, etc.”

  O Sr. Flourens diz que havia no Jardim Zoológico um orangotango notável pela inteligência: meigo, amante de carícias, principalmente das crianças, com elas brincava procurando imitar tudo quanto via, etc. Assim é que, sabia manejar a chave do seu compartimento, enfiando-a na fechadura e abrindo a porta. Se acontecia pendurarem a chave na chaminé, lá trepava por meio de uma corda presa ao tecto e que lhe servia comummente de balanço. Certa vez, deram um nó na corda, para fazê-la mais curta e, ele o desatou imediatamente. Tal como o de Buffon, não revelava a impaciência e petulância próprias da espécie, antes tinha um ar tristonho, passos lentos e gestos comedidos.

  O professor foi visitá-lo um dia, acompanhado por um ilustre ancião, que era também um observador sagaz e profundo.

  Um trajo algo esquisito, os passos lentos e vacilantes, o busto arqueado do visitante, logo despertaram a atenção do símio. Prestou-se ele, complacente, a tudo o que se lhe exigiu, mas, de olho sempre atento no objecto de sua curiosidade. Quando nos íamos retirar e ele mais se aproximou do novo visitante, tirou-lhe delicada e maliciosamente a bengala e, fingindo apoiar-se nela, curvado e vagaroso, deu uma volta ao compartimento, como procurando imitar o meu velho amigo.

  Depois, por si mesmo restituiu-lhe a bengala. É evidente que ele também sabia observar...

  Cuvier, por sua vez, observou factos não menos curiosos. O seu orangotango se divertia trepando as árvores e nelas permanecendo encarapitado. Um dia, fizeram menção de lá o irem buscar e ele logo se pôs a sacudir a árvore, assim procedendo sempre que tentavam apanhá-lo. “De qualquer modo – diz Cuvier – que consideremos este acto, não será possível negá-lo como resultante de uma combinação de ideias, para reconhecer que o animal possui a faculdade de generalizar.

  De facto, o orangotango, aqui, concluía de si para outrem: mais de uma vez, o abalo violento dos corpos, em que se apoiara, tê-lo-ia espavorido, levando-o a concluir que este mesmo medo atingiria a outrem, ou – para melhor dizer com Cuvier – “de uma circunstância particular ele fazia uma regra geral”.

  Flourens cita o exemplo de um curioso indício de inteligência, observado no Jardim Zoológico. Julgado excessivo o número de ursos lá existentes, foi resolvida a eliminação de dois exemplares. O veneno seria o ácido prússico, ministrado em pequenos bolos. À vista dos bolos, os animais logo se ergueram nas patas traseiras, abrindo a boca, na qual conseguiram atirar alguns bolos. Entretanto, logo rejeitaram o manjar e se puseram em fuga. Dir-se-ia que não seriam mais tentados a tocar na iguaria e, contudo, ei-los a empurrar com as patas os bolos para dentro do tanque e, depois de muito revolverem a água, iam comendo os bolos, à medida que o veneno se evaporava. Em o fazerem assim, impunemente demonstraram uma sagacidade que lhes granjeou a revogação da sentença.

  Plutarco afirma ter visto um cão atirar pedrinhas dentro de uma talha, não completamente cheia de óleo, admirando-se de como o cão pudesse induzir que o peso das pedras haveria de fazer subir e transbordar o conteúdo.

  Buffon escreveu belas páginas sobre a inteligência do cão, mas não lhe interpretou o alto valor. Há, nos fastos da espécie canina, exemplos de inteligência, habilidade raciocínio, julgamento, e também de afeição, devotamento, bondade e reconhecimento, dignos de serem apontados como modelo a uma grande parte do género humano.

  Poder-se-ia escrever uma série de volumes e nem assim se esgotaria o acervo de factos comprobatórios da inteligência animal, notadamente do cão. De resto, os adversários estão connosco em admitir estes factos. Citemos aqui o exemplo interessante de uma deliberação de andorinha, contado pelo autor de Força e Matéria. Um casal de andorinhas tinha começado a construir o ninho na cumeeira de uma casa. Um dia, entra por lá um bando de companheiras e travam longa discussão pela posse do ninho. Reunidas no forro da casa e não longe do ninho disputado, fizeram uma algazarra infernal. Depois de algum tempo, enquanto algumas andorinhas se destacavam para inspeccionar o ninho, se dissolveu a assembleia e o resultado foi o casal abandonar o ninho começado, entrando logo a construir outro em lugar quiçá mais adequado.”

  Um facto ainda mais notável veio à baila recentemente. Nos arredores de uma granja de Weddendorg, perto de Magdebourg, as cegonhas, após sério debate, julgaram uma companheira adúltera. Mataram-na às bicadas e atiraram-na fora do ninho (*).

  Agassiz, mais que ninguém, exalta as faculdades intelectuais dos animais. Depois de mostrar as dificuldades que ainda não permitem estabelecer uma comparação científica entre instintos e faculdades humanas e animais, emite ele as seguintes ideias: – “O desenvolvimento das paixões é tão extenso no animal quanto no homem e, eu me encontraria seriamente embaraçado para lhes apreender diferenças específicas, naturais, ainda que as haja e, grandes, no graduamento das manifestações e na forma de expressão. Ao demais, a gradação das faculdades morais entre os animais e o homem é tão imperceptível, que, recusar aos primeiros um certo sentimento de responsabilidade e consciência fora, certo, exagerar a diferença. Além disso, há neles, limitadas às suas respectivas capacidades, individualidades tão definidas como no homem. Os criadores de cavalos, os guardadores de animais, pastores, etc., aí estão para confirmá-lo.

  E aí temos argumentos dos mais fortes a favor da existência de um princípio imaterial em todos os animais análogo ao que, por excelência e faculdades superiores, coloca o homem em plano eminente. A maior parte dos argumentos filosóficos em prol da imortalidade do homem aplica-se, igualmente, à indestrutibilidade desse princípio nos outros seres vivos (**).

  Quem se atreveria hoje a pôr em dúvida a inteligência animal? Só um tímido espírito de sistema, temeroso das consequências desta verdade, em relação a umas tantas crenças, pode fechar os olhos à evidência. A nós, cumpria-nos constatar, antes de tudo, esta verdade, a fim de mais livremente podermos falar do instinto e derrocar a argumentação dos que presumem que o instinto não existe.

  Há, certamente, uma grande diferença entre actos instintivos e actos racionais. Não que esses dois caracteres da força viva se encontrem isolados (nada o está na Natureza), mas por não se encontrarem na mesma graduação e não se poderem confundir. Não devemos insistir, maioritariamente aqui, a respeito dos factos de ordem intelectual. Vamos, porém, compará-los aos factos inerentes ao domínio do instinto e que revelam existir uma providência universal presidindo à vida em geral e que não explicam de modo algum, pela instrução, o raciocínio ou o julgamento nos animais em que se deparam.

  Chama-se instinto ao conjunto das directivas que impelem o animal, obedecendo a uma necessidade constante. O instinto é inato, actua à revelia da instrução, inexperiente e invariavelmente e, não realiza progresso algum. É em tudo a antítese da inteligência. Tanto mais notáveis são os fenómenos do instinto quanto mais se afirmam inteiramente involuntários. “Não podemos fazer uma ideia nítida do instinto – dizia Georges Cuvier – senão admitindo que os animais sejam submetidos a imagens ou sensações inatas constantes, que os obrigam a proceder como levados por sensações acidentais. É uma espécie de sonho ou visão que os persegue incessante e, em tudo que se reporta ao instinto, podemos julgar os animais assim uma espécie de sonâmbulos.”

  Frédéric Cuvier consagrou parte da vida a descobrir a linha que separa o instinto da inteligência. Pode dizer-se, sem paradoxo, que não há linhas divisórias na Natureza. Aqui, porém, não se trata de metafísica. Contentemo-nos, assim, em ouvir o que diz o Sr. Flourens, das laboriosas observações do esforçado naturalista.

  O castor é um mamífero da ordem dos roedores, isto é, da ordem menos inteligente, e, contudo, possui um instinto maravilhoso, qual o de construir uma cabana sobre a água, com calçadas e diques e, tudo à mercê de uma indústria que demandaria inteligência elevadíssima, se de inteligência dependesse.

  O essencial, portanto, fora provar essa independência e foi isso o que fez F. Cuvier. Com castores muito novos, educados longe de seus pares e, por conseguinte, nada havendo com eles ou deles aprendido. Esses castores, assim isolados, solitários, postos numa jaula expressamente destinada à experiência e de forma a dispensá-los do seu trabalho peculiar construtivo, não se cobriram de o realizar, impelidos por uma força maquinal cega, ou seja um puro instinto.

  A mais completa antítese separa o instinto da inteligência. No instinto tudo é cego, necessário, invariável; na inteligência é tudo elevado, condicional, modificável. O castor que constrói uma cabana, o pássaro que constrói um ninho, só o fazem por instinto. O cão e o cavalo, que chegam a compreender o sentido de algumas palavras e nos obedecem, o fazem por inteligência.

  No instinto é tudo inato: o castor constrói sem haver aprendido. Dir-se-ia que o faz por uma fatalidade, dirigido por uma força constante e incoercível.

  Na inteligência é tudo resultado da experiência e da instrução: o cão obedece quando ensinado. E aí tudo é livre, o cão obedece porque quer.

  Finalmente, tudo no instinto é particular; essa indústria admirável que o castor utiliza ao construir a cabana não pode ele utilizá-la senão com esse fim; ao passo que, na inteligência, tudo se generaliza, uma vez que essa mesma maleabilidade de atenção e de concepção do cavalo e do cachorro pode aproveitar-lhes para fazer diversas coisas.

  Distinção que se impunha, esta. Na história da Natureza importa reconhecer em cada qual o que lhe pertence e exactamente o que lhe pertence, sem restrição sistemática, sem prevenção tendenciosa. Descartes e Buffon (este contraditório, às vezes) negam aos animais qualquer partícula de inteligência. Condillac e G. Leroy, ao contrário, chegam a conceder-lhes operações intelectuais das mais elevadas. É um erro duplo. Os animais não são plantas nem são homens. Weinband não tem razão em pretender que isso que designamos como instinto não passa de “indolência do espírito para livrar-se dos penosos esforços que o estado da alma animal reclama”. Não a tem, tampouco, Sachus, quando adita que “não há necessidade imediata, resultante da organização intelectual, nem pendores cegos e arbitrários que impulsem os animais”. Não hesitamos em reconhecer que esta questão, como todos os grandes problemas da Natureza, é difícil de resolver. Pensamos que, no seu estudo, como de resto noutras questões sucede, o homem se tem protegido mais com palavras que com ideias. Quando não se compreende o acto inteligente de um animal, é comum ligar-se ao embaraço, utilizando a palavra instinto, assim como um véu lançado ao objecto que se quer examinar; mas, à parte este processo ilusório, restam factos que não são certamente resultado de reflexão, nem de julgamento. Em vão o Sr. Darwin, e com ele Lamarck, afirmam que o instinto é um hábito hereditário. Esta explicação não transfere o instinto para os domínios da inteligência e, ainda menos, para os domínios do materialismo puro. Tampouco está demonstrado seja o instinto um hábito hereditário. Consideremos essas borboletas que vivem no ar e que, chegando à terceira fase da sua maravilhosa existência, se entreabrem aos beijos da luz e aos eflúvios do amor.

  Célere, depositarão em círculos concêntricos minúsculos ovos brancos, sobre talos ou folhas. Esses ovos não vingarão antes da próxima estação, quando surgem as pequenas lagartas e, isso depois de transcorridos muitos dias, quando as borboletas já dormem na poeira o sono da morte. Que voz teria ensinado a estas novas borboletas que as futuras lagartas, ao desovarem, hão de encontrar tal ou tal alimentação? Quem lhes aponta os talos e as folhas em que hajam de depositar os seus ovos? Os pais? Mas, se os não conhecem? Será, então, das folhas e talos que lhes advém a memória?

  Que memória, porém, se elas viveram três existências após essa época longínqua e substituíram os alimentos inferiores pelo manjar delicado das corolas olentes? Eis aqui, porém, outras espécies que protestam, ainda mais vivamente, contra as explicações humanas. Os necróforos (nome lúgubre) morrem imediatamente após a postura e as gerações jamais se conhecem. Nenhum ser desta espécie viu a mãe nem verá os filhos e, contudo, as mães têm grande cuidado em dispor cadáveres ao lado dos ovos, para que aos filhos não falte alimento logo ao nascer. Em que parte aprenderam esses necróforos que os seus ovos contêm germe de insectos que em tudo se lhes assemelham? Há outras espécies nas quais o regime alimentar é inteiramente oposto, para a larva e para o insecto. Nos pompilídeos as mães são herbívoras e os filhos carnívoros. Em fazerem a postura sobre cadáveres, contrariam os próprios hábitos. E aqui não colhe admitir o acaso, nem o hábito lentamente adquirido. Qualquer espécie que aberrasse desta lei não poderia subsistir, visto que os rebentos morreriam de fome logo após o nascimento. A estes insectos podemos juntar os odíneros e os sphex. As larvas destes últimos são carnívoras e o ninho precisa ser provido de carne fresca. Para preencher essa condição, a fêmea que vai desovar busca uma presa conveniente, tendo o cuidado de não a matar, limitando-se a feri-la de paralisia irremediável. Coloca, depois, sobre cada ovo um certo número desses enfermos incapazes de se defenderem da larva que os há de devorar, mas com vida bastante para que o corpo não se corrompa. Em algumas famílias acresce o cuidado pela alimentação da presa, até à eclosão da larva.

  Os nossos elementos de argumentação, neste particular, são tão numerosos que seria impossível reuni-los a todos. Limitamo-nos, assim, a citar alguns exemplos, convidando o leitor a tirar da letra o espírito. Entre estes exemplos, incluamos o da abelha xilófaga, com a qual o Sr. Milne-Edwards entreteve recentemente, na Sorbonne, a curiosidade dos seus ouvintes.

  Essa abelha que vemos adejar na Primavera, que vive solitária e pouco sobrevive à postura, não viu nunca os genitores e não viverá o tempo suficiente para assistir ao nascimento das pequeninas larvas vermiformes, desprovidas de patas e incapazes, não só de se protegerem, como de angariar alimento. E, contudo, elas precisam permanecer em repouso cerca de um ano, numa habitação bem fechada, sob pena de se extinguir a espécie.

  Como, então, supor que a abelha gestante, antes de pôr o primeiro ovo, tenha podido adivinhar as necessidades da prole futura e o que deve fazer para lhe assegurar o bem-estar? Tivesse ela em partilha a inteligência humana e, nada soubera a tal respeito, visto que todo o raciocínio requer premissas. Este insecto, que nada pôde aprender, tudo prepara e opera sem hesitação, como se o futuro lhe estivera devassado e uma previdência racional a norteasse. Apenas lhe despontam as asas e logo a xilófaga trata de preparar a casa dos filhos. Com as mandíbulas, broca um tronco de madeira exposto ao Sol, escava uma longa galeria e vai depois buscar, longe, no pólen das flores, o néctar açucarado. É o cibo do recém-nascido e que lhe há de bastar, o “quantum satis”, para bem-viver até à Primavera próxima.

  Uma vez provida a despensa, aí deposita o ovo e ei-la amalgamando com terra a serragem prudentemente guardada e fazendo como que uma argamassa, de maneira que o leito dessa primeira cela se transforme em tecto de uma segunda despensa e berço da larva a nascer de outro ovo. Assim se constrói um edifício de alguns andares, no qual cada alojamento recolhe um ovo e servirá, mais tarde, à larva desse ovo.

  “Admira – diz Edwards – como diante de factos tão significativos e numerosos ainda haja quem nos venha dizer que todas as maravilhas da Natureza não passam de obras do acaso ou, então, de consequências das propriedades gerais da matéria; desta Natureza que faz a substância da pedra como da madeira e que os instintos da abelha, assim como as mais altas expressões da genialidade humana, não são mais que resultado de um jogo de forças físicas ou químicas, as mesmas que determinam o congelamento da água, a combustão do carvão e a queda dos corpos... Essas hipóteses balofas, ou melhor, essas aberrações do espírito, que se mascaram, às vezes, com o nome de ciência positiva, só podem ser repelidas pela verdadeira Ciência. O naturalista não poderia acreditá-lo.

  “Por pouco que penetremos num desses obscuros redutos onde se esconde o débil insecto, nele ouvimos distintamente a voz da Providência ditando às criaturas a sua conduta diária.”

  Em todas as províncias da vida – acrescentamos nós – a mão do Criador inteligente e previdente se revela aos olhos que sabem verdadeiramente ver. E sempre que a dúvida nos perturbe, nada melhor se nos impõe que o estudo acurado da Natureza, porquanto todos os que tiverem consigo o sentimento do belo e do verdadeiro, perante o espectáculo maravilhoso da Criação, logo terão dissipadas as nuvens qual floração de luz.

/…
(*) Temos numerosos documentos comprobatórios da inteligência dos animais. Aqui, porém, não nos podemos alongar no assunto. Ao exemplo precedente, acrescentemos que a dar crédito a uns tantos barqueiros ingleses, chamados “panters”, os patos selvagens fazem reuniões parlamentares e votam. Estes, como todos os animais, têm expressões próprias para traduzir alegria, dor, fome, amor, medo, ciúme, etc. Esses termos variam, conforme as espécies. Antes da revoada matinal, uma discussão muito viva se empenha durante dez a vinte minutos, e só depois de assente uma resolução é que se opera a debandada. Conta-se, também, que uma ave, tombada num choque, apelou a seu modo para uma outra, que, procurando alentá-la, ficou a seu lado por uma hora mais ou menos, até que a outra morresse. Segundo E. W. Gruner, os gansos têm inflexões e tonalidades vocais muito variadas. O cão alegre late de modo muito diverso de quando está raivoso. A linguagem mímica e sónica dos insectos (abelhas, formigas, escaravelhos, etc.), por meio das antenas e movimentos de asas, é, como sabemos, muito rica e variada. Não iremos ao extremo de os traduzir em francês com Dupont de Nemours, mas a verdade é que se não pode negar que os animais se permutem nas suas impressões. Eles têm mesmo, sobre nós, o privilégio de compreender as nossas palavras, ao passo que nós não compreendemos as suas. Mais: compreendem-se em qualquer latitude, ao passo que um francês não compreende um alemão, nem um chinês.
(**) Contribuitions to the Natural History of the United States of North America volume 1 – 1ª parte.

(Referências: – Leis que presidem à conservação das espécies. – Faculdades instintivas especiais. – Não se explica o instinto pela suposição de hábitos hereditários. – Distinção fundamental entre os factos instintivos e os racionais. – Desígnio nas obras da Natureza. – Ordem geral e as harmonias universais. – Qual a distinção geral do mundo? – Magnitude do problema. – Insuficiência da razão humana.)


Camille Flammarion, Deus na Natureza, Quarta Parte (4); O Destino dos Seres e das Coisas, (2) Plano da Natureza, O Instinto e a Inteligência (1 de 3), 34º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva) 1895, pintura de James Jebusa Shannon)

sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

metapsíquica | humana


~~~ análise crítica de uma alínea sofística

Lamento sinceramente ter de interromper aqui o exame dos argumentos que o nosso autor, profusamente, espalha em volta das experiências feitas com a Sra. Piper. Se me fosse dado continuar esse exame, dele resultaria uma crítica bastante instrutiva, pois teria de continuar, através dos factos, a demonstrar que, na sua maioria, os incidentes verificados com esta médium são inexplicáveis pelas hipóteses da “prosopopese-metagnomia (clarividência, *)”, embora não seja necessário mais do que ficou dito para fazer ruir, nesse primeiro embate, o castelo de sofismas e paralogismos, tão laboriosamente edificado por Sudre. Impus-me, entretanto, o dever de analisar todos os pontos abordados por ele num livro exageradamente parcial; longo, portanto, é o percurso a cobrir e minguado o espaço para refutar as inexactidões, as afirmações gratuitas, os paralogismos e os sofismas que como serpentes se entrelaçam uns nos outros, não raro amontoando-se às dezenas numa só página. A maior dificuldade está na escolha. Eis uma pequena amostra. Na página 338, apresenta-nos ele este parágrafo surpreendente:

“Hoje os espíritas foram compelidos a reconhecer, de um lado, que a metagnomia, a telergia e a teleplastia se podem exercer sem terem de apelar para a intervenção dos mortos e, de outro, que no fenómeno espírita transborda sempre o animismo, isto é, os elementos tirados do subconsciente dos vivos. Discutem então sobre algumas categorias de fenómenos, em que se entrincheiraram e que declaram inexplicáveis pelas teorias metapsíquicas, quando não se vêm apoiar audaciosamente no animismo, para provar o Espiritismo, sem a necessária preparação para distinguirem um do outro. Mas os espíritas que o fanatismo não cega desistem de encontrar nos factos provas cruciais. Sabem que as suas presunções serão aceites como provas, segundo a concepção que cada um tem “das probabilidades dramáticas da Natureza” (para usar a expressão original de William James). Como Myers, como Geley, eles pedem o acto de fé necessário a um sistema metafísico, fundado noutras ciências, que não a Metafísica, quando não sobre postulados morais. Assim o Espiritismo dito “científico”, inaugurado por Delanne, parece haver entrado em falência, nada mais sobrando para a grande massa do que o velho Espiritismo moral de Allan Kardec (i) que, em si, não é, de todo, mau e que serve para levar aos aflitos ilusões consoladoras.”

Não existe no trecho acima uma única afirmação que não seja errónea, gratuita, insidiosa ou sofística. Sudre começa dizendo: “Hoje os espíritas foram compelidos a reconhecer que a metagnomia, a telergia e a teleplastia se podem exercer sem terem de apelar para a intervenção dos mortos.” Ora, os espíritas sempre o reconheceram; foi justamente um espírita, Alexandre Aksakof, que, há quarenta anos, classificou os fenómenos medianímicos em três categorias; fenómenos de Personismo, de Animismo e de Espiritismo, demonstrando que as duas primeiras categorias provinham das faculdades supranormais inerentes à subconsciência humana, sem qualquer intervenção do Espírito dos mortos.

Com que direito, pois, dizer que os espíritas foram “hoje” compelidos a reconhecer esse facto?

Continua Sudre afirmando que (“hoje” sempre) os espíritas foram obrigados a concordar que no “fenómeno espírita transborda sempre o animismo, isto é, os elementos tirados do subconsciente dos vivos”. Abstracção feita do “sempre”, que é aí demasiado, posso afirmar que os espíritas, pelo contrário, reconheceram o facto desde a alvorada do movimento espírita. Eis, por exemplo, como se exprime um espírita, de primeira, Adin Ballou, na página 67 do seu livro Spirit Manifestation, vindo à luz em 1852:

“O que se passa através do médium deve, em verdade, estar sujeito à influência do espírito dos vivos. As ideias preconcebidas, a vontade, a imaginação, os sentimentos, os pontos de vista particulares não podem deixar de exercer uma influência, mais ou menos acentuada, sobre as comunicações que os Espíritos dos mortos procuram transmitir, por intermédio de um cérebro alheio. Além disso, as influências mesméricas e psicológicas da parte da mentalidade dos experimentadores, que podem dominar a do médium, devem igualmente produzir um efeito perturbador análogo. Segue-se que certas comunicações provenientes de Espíritos elevados são transmitidas ou, mais acertadamente, são traduzidas de um modo vulgar, não raro completamente diferentes, daquilo que foi ouvido pelo Espírito comunicante. É como se um francês se comunicasse com um inglês por intermédio de um dinamarquês, pouco familiarizado com aqueles dois idiomas. O interlocutor inglês teria não pequena dificuldade de apreender o sentido do recado transmitido. Nos casos desta natureza, nunca podemos estar certos de ser a comunicação recebida uma tradução perfeita do que tinha o Espírito comunicante intuito de transmitir.”

Eis o raciocínio de Adin Ballou, há setenta e cinco anos e, esta sua opinião encontra-se transcrita nas obras de Capron (1858), do professor Robert Hare (1855), do Dr. Wolfe (1869), de Alexandre Aksakof (1889); mas para Sudre só “hoje” os espíritas foram obrigados a reconhecê-lo e, isso mesmo, graças à força esclarecedora das pesquisas dos metapsiquicos destes últimos tempos.

Mas continuemos. O nosso autor ainda assim se exprime: “Então discutem (os espíritas) sobre algumas categorias de fenómenos, em que se entrincheiraram e que declaram inexplicáveis pela teoria metapsíquica.” Estas “algumas” categorias de fenómenos inexplicáveis pela teoria metapsíquica” são antes numerosas e nada mais natural que os espíritas as declarem inexplicáveis pela hipótese naturalista, pois, de facto, o são. Os próprios metapsiquistas anti-espíritas de tal forma o compreendem e, com isso, tal embaraço experimentam, que evitam prudentemente discuti-las, contentando-se de apenas a elas aludir, de modo geral, em nada concludente ou a elas não se referindo de modo algum, o que ainda é mais cómodo. Isso não impede, porém, que esses mesmos metapsiquistas continuem a inculcar a sua argumentação anti-espírita, como se houvessem respondido, refutado, destruído a dos seus opositores. Mais tarde voltaremos a este ponto, particularmente importante.

A continuação do trecho, cujo exame empreendemos, é curiosíssima. Com efeito, ele faz-nos saber que os espíritas “se apoiam audaciosamente no animismo para provar o Espiritismo, sem terem a necessária preparação para distinguir um do outro”. A primeira parte desta objecção é estupenda e, a segunda completamente falsa. Estou eu entre aqueles que, de há trinta anos para cá, se apoiam “audaciosamente” no animismo para provar o Espiritismo; nos números de Novembro-Dezembro de 1925 e de Janeiro-Fevereiro de 1926, da Revue Spirite fiz sair um longo artigo, rigorosamente documentado, com o fim de demonstrar que o Animismo, sob o ponto de vista de demonstração científica da existência e da sobrevivência da alma, era mais importante e decisivo do que o próprio Espiritismo; e nesse artigo fiz ressaltar a circunstância, altamente eloquente, de Frank Podmore, isto é, o adversário mais encarniçado da hipótese espírita, haver, mesmo ele, reconhecido essa verdade, nos termos que se seguem:

“Seja ou não verdade que as condições do além permitem, às vezes, aos que lá se encontram, entrar em comunicação com os vivos, é, em todo o caso, claro que essa questão se tornaria de importância secundária se se chegasse a demonstrar, sobre a base das faculdades inerentes ao espírito, que a vida da alma não está ligada à vida do corpo. Noutros termos, deve necessariamente admitir-se que, se é verdade que no sono medianímico ou extático, o Espírito conhece o que, à distância, se passa, percebe coisas escondidas, prevê o futuro e lê no passado, como num livro aberto, então – considerando que estas faculdades não foram certamente adquiridas no processo de evolução terrena, cujo meio lhes não é próprio nem lhes justifica a emergência – então, dizia, parece que se poderá inferir que estas faculdades demonstram a existência de um outro mundo mais elevado, no qual elas se deverão exercer livremente, em harmonia com outro ciclo evolutivo, que já não seria regido pelo nosso meio terreno. É importante acrescentar que a teoria aqui esboçada não é nenhuma especulação filosófica, fundada em suposições não verificáveis; é uma hipótese científica, baseada na interpretação de uma categoria precisa de factos... Seria inútil contestar que, se se pudesse provar a autenticidade dos fenómenos de premonição, de clarividência e tantos outros que testemunhassem que no nosso espírito se encontram faculdades psíquico-sensoriais transcendentais, então o facto da independência do espírito do corpo seria manifesta.”

Por conseguinte, segundo Podmore “seria inútil contestar” a sobrevivência da alma, desde que se provasse a existência de fenómenos de “metagnomia”. E não é outra coisa o que, por minha vez, tenho sustentado desde sempre. O que pensa disto Sudre? Amarga decepção deve ter sido a sua, quando viu, pelo meu artigo anterior, que o próprio Podmore, audaciosamente, pensava que o Animismo constituía prova para o Espiritismo! E o que de mais “trágico” se verifica na situação de Sudre é que Podmore pelo menos se mantinha dentro da ilusão de poder reduzir todos os fenómenos metapsíquicos exclusivamente à telepatia e de, consequentemente, poder negar os fenómenos de metagnomia propriamente dita. Com isto ele se sentia garantido na sua qualidade de campeão mundial do anti-espiritismo; enquanto que Sudre não deve ter fácil a porta de saída, ele que está firmemente convencido da existência das faculdades supranormais em questão.

Como, pois, salvar do naufrágio inevitável o frágil barquinho do seu anti-espiritismo materialista? Com as “bolsas de vento” que lhe prende às bordas? Não; nem será com as frases ocas e retumbantes, das que lança mão nos momentos críticos, que poderá enfrentar a argumentação que, intimamente, reconhecendo invulnerável, não ousa atacar de frente. É o que ainda agora se dá ao ter de enfrentar o caso da demonstração irrefutável do Espiritismo pelo Animismo; interpõe no período a palavra audaciosamente, com a qual pretende insinuar que as pretensões dos espíritas a esse respeito são injustificáveis e temerárias.

Deve ele compreender bem que as frases apenas para armar não produzem refutação, não constituem provas e são de duração efémera; mas ele se dá por satisfeito, desde que elas produzam pelo menos uma pequena impressão deletéria no espírito dos leitores menos prudentes e pouco ao corrente da discussão. É possível que consiga isso algumas vezes, o que não impede, entretanto, que, demonstrando não poder responder à argumentação firme e lógica dos espiritualistas, ele vote a sua causa a irremediável desastre. E o seu livro transborda dessas frases, do mesmo modo que os seus artigos delas vêm salpicados. Por mais de uma vez fui visado pelos rasgos, um tanto embotados, dessa fraseologia, rasgos que, antes, me divertiram, porque, nas circunstâncias em que me procuraram atingir, não representaram para o seu autor mais do que uma satisfação demasiado efémera. O meu contraditor não havia conseguido responder à refutação de uma das suas teses, apesar de imprudentemente haver prometido pronta resposta que, a seu ver, não poderia deixar mesmo de ser “muito fácil”. Chegado, porém, o momento, a coisa lhe pareceu, ao contrário, bem difícil, ou, para ser mais claro, só então se convenceu de ser logicamente impossível refutar aqueles argumentos.

Mesmo assim, Sudre continua a servir-se da hipótese reduzida a zero, tal como se a houvesse vitoriosamente defendido, ou pelo menos refutado com algum êxito a minha argumentação.

Voltando ao assunto, deixo aqui consignado que se Sudre lançar uma das suas frases habituais, a propósito da afirmação irrefutável de que o Animismo constitui uma prova para o Espiritismo, não me hei de assustar, antes farei ao meu antagonista um apelo formal – em nome da investigação sincera e apaixonada da Verdade pela Verdade – para que nos oriente do modo pelo qual explica a existência, na subconsciência humana, de faculdades e sentidos supranormais, independentes da lei da evolução biológica.

O que peço a Sudre é que, ao elucidar-nos, o faça do único modo plausível, isto é, destruindo com lógica os argumentos por mim, nesse sentido, expostos no artigo, cujo texto já dei e que pode ser por ele encontrado na Revue Spirite, artigo em que eu demonstrava, de modo decisivo, que sempre que os nossos antagonistas pensam combater a hipótese espírita, recorrendo aos poderes da metagnomia, nada mais fazem, na realidade, do que demonstrar a existência e a sobrevivência da alma, apenas colocando a questão, antes, sob o ponto de vista do Animismo que do Espiritismo, o que, em suma, vem a ser uma e a mesma coisa.

Espero o meu contraditor no terreno da prova; mas sinceramente digo estar, de antemão, convencido de que ele terá o cuidado de não responder a esta questão de valor decisivo para o ponto de vista espiritualista. Não impedirá isso, no entanto, de continuar a fazer prevalecer imperturbável a sua opinião contrária à sobrevivência da alma e a tachar de audaciosos os argumentos que ele é incapaz de demonstrar que sejam falsos. São inconsequências fatais naqueles que têm o espírito obscurecido por irredutíveis preconceitos.

Poderiam objectar-me ser inútil a minha insistência em procurar convencer os que se obstinam em não querer compreender, mas a minha insistência não visa convencer o meu competidor e tão-somente a levar a tranquilidade de espírito àqueles poucos que, por acaso, se tenham deixado perturbar pelas suas insinuações sofísticas.

Abro aqui um parêntesis para tratar com o professor Charles Richet.

Havia acabado de escrever as páginas acima, quando recebi o número de Janeiro-Fevereiro da Revue Metapsychique, 1926, onde, num breve artigo, o Prof.Richet, fazendo notar a existência, nos nossos dias, de um certo número de sensitivos clarividentes, pensa que pode isto traduzir o prelúdio do próximo aparecimento, no homem, de um “sexto sentido”. Passando a examinar cientificamente a origem presumível desse novo sentido, procura explicar o facto pela teoria muito conhecida do Dr. Vries, sobre as “mutações bruscas” transmissíveis à descendência, tal como se observa no reino vegetal.

Ouso lembrar ao Prof. Richet que a frequência actual de sensitivos clarividentes – frequência aliás muito relativa – decorre exclusivamente do facto de, nestes últimos anos, entre os povos civilizados, serem esses indivíduos muito procurados e observados, ao passo que antigamente eram em geral conduzidos à fogueira, o que, em muito, lhes reduzia o número. Nada, entretanto, de novo sobre o caso. Se interrogarmos a respeito a história da antiguidade clássica, bíblica, egípcia, babilónica, se ascendermos a eras mais remotas, até às crónicas sagradas dos povos do Oriente, encontraremos os melhores elementos para nos provar que as faculdades de clarividência permanecem em estado absolutamente estacionário, através dos séculos, não obstante as civilizações e as raças, o que já não é pouco para condenar aquela hipótese.

Mas outra circunstância de facto, que contradiz a tese do Prof. Richet, de modo decisivo, é a frequência de fenómenos de clarividência, sob as suas múltiplas formas, no meio dos povos selvagens.

Pessoalmente estudei o assunto, em longa monografia que, como todas que a precederam, não é fruto de pesquisas superficiais, mas de acurado estudo, em longo período de 35 anos. Adquiri, portanto, certa competência no assunto e posso afirmar não existir tribo selvagem que não tenha o seu feiticeiro-curador, com predicados absolutamente análogos aos dos clarividentes, entre os povos civilizados.

Os relatórios dos exploradores e dos missionários estão repletos de casos dessa natureza, que se contam por centenas. Daí podermos concluir em sentido diametralmente oposto ao que nos sugere o Prof. Charles Richet, isto é, que, se as faculdades de clarividência sob todas as formas são mais frequentes entre os povos primitivos que entre os civilizados, não há razão para admitirmos a hipótese do aparecimento, no homem, de um “sexto sentido” graças à lei biológica das “mutações bruscas”.

Devemos, além disso, ter presente uma outra consideração, teoricamente de grande importância, qual a do Prof. Richet se não haver lembrado da impossibilidade de se tratar de um “sexto sentido” em gestação, por isso que os fenómenos de clarividência se produzem pela utilização dos sentidos existentes: visão, audição e tacto. Acrescentaremos que, por outro lado, deixou ele de considerar que esses fenómenos, ao contrário de serem determinados pela percepção directa, isto é, da periferia para o cérebro, como se deveriam produzir para todo e qualquer sentido biológico passado, presente ou futuro, eles se determinam por percepção inversa, ou seja, do cérebro para a periferia, sob a forma de visões ou audições subjectivas, projectadas fora e quase sempre de natureza simbólica, mais ou menos manifesta. Ora, a natureza simbólica de quase todas as percepções supranormais reveste-se de alto valor teórico, porque mostra que essas percepções independem, não somente dos sentidos periféricos, mas também dos centros cerebrais correspondentes. Com efeito, o simbolismo das percepções prova que os centros cerebrais não percebem activamente, mas registam passivamente o que lhes é transmitido, por um terceiro agente a elas estranho, único a perceber directamente, para depois transmitir os seus conhecimentos ao sensitivo, sob a forma de representações simbólicas. Isto, evidentemente, porque sendo as suas percepções qualitativamente diferentes das que podem assimilar os centros cerebrais do sensitivo, ele é obrigado a transmiti-las sob a forma de objectivações alucinatórias, que o sensitivo ou os interessados podem, facilmente, interpretar. E como esse terceiro agente estranho ao cérebro, outro não pode ser senão a personalidade integral subconsciente do sensitivo, conclui-se que, baseando-se nas circunstâncias expostas, nós veremos emergir, manifesta e incontestável, a contraprova de que a “personalidade integral subconsciente” é uma “entidade espiritual” independente de toda a ingerência funcional, directa ou indirecta, do órgão cerebral. Resulta ainda, disso, que as faculdades supranormais, esporadicamente assinaladas, de todos os tempos e em todos os lugares, na Humanidade são, na realidade, as faculdades de sentidos espirituais da personalidade integral subconsciente, em estado latente, na subconsciência humana, para emergir e se exercer num meio espiritual, após a crise da morte; do mesmo modo que no embrião se encontram formadas, de antemão e em estado latente, as faculdades de sentidos terrenos, à espera do momento que lhes há de permitir se exerçam no seio do meio terrestre, após a crise do nascimento.

Como se pode verificar, as induções sobre a base dos factos nos arrastam para longe da hipótese aventada pelo Prof. Richet, hipótese que aparece insustentável, sob o ponto de vista biológico, psicológico e metapsíquico.

Dito isto, devo confessar sinceramente que o artigo do Prof. Richet me produziu, pessoalmente, uma impressão dolorosa, de profundo desalento. Revela-me a inutilidade dos esforços intelectuais, a que me submeto há trinta e cinco anos, com o fim de dar a minha contribuição à investigação da ciência metafísica. Se o Prof. Richet, antes de expor a sua hipótese, houvesse demonstrado o erro da minha argumentação, eu teria testemunhado o meu reconhecimento àquele que assim me houvesse esclarecido sobre problema do mais alto valor científico. Mas o Prof. Richet enuncia a sua hipótese sem fazer a mínima alusão à existência de um estudo recente sobre o assunto, estudo que o contradiz no terreno dos factos. Ora, como do choque das ideias é que ressalta a centelha da Verdade, se no meio metapsíquico, uma das partes segue o seu caminho sem se preocupar com o que faz a outra, não se chegará, nesse ramo de ciência, a qualquer conclusão. Nessas condições, tanto vale não escrever coisa alguma, cada um se limitando egoisticamente a estudar apenas para si, deixando que os demais pensem como melhor lhes parecer.

Agora que já me expliquei com o Prof. Richet, fecho o longo parêntesis e retomo a discussão com o Sr. René Sudre, examinando a segunda parte do curto mas virulento trecho do seu trabalho, em cuja análise me detive.

Havia eu dito que a primeira parte deste trecho era estupenda e a segunda inteiramente falsa. Com efeito, nesta segunda parte, o autor tem a “audácia” (para usar-lhe do termo) de escrever que os espíritas afirmam que o Animismo prova o Espiritismo “sem estarem preparados para entre os dois poderem discernir”. Para colocar logo as coisas nos seus lugares (pois a insinuação de Sudre tem por fim apenas embaralhar), devo lembrar que a questão que acabamos de tratar, relativamente aos fenómenos anímicos, que só por eles demonstram a sobrevivência da alma, nada tem de comum com aquela que distingue os casos de animismo dos de Espiritismo. Referindo-se, agora, de um modo directo, à objecção formulada e, segundo a qual, os espíritas não estão em condições de poder distinguir os fenómenos anímicos dos espíritas, lembro ao meu opositor que toda a discussão, que vimos de sustentar a propósito da Sra. Piper, prova, ao contrário, a existência de critérios analíticos capazes de permitir fácil distinção entre os fenómenos positivamente espíritas e aqueles que não o são ou, mais precisamente, aqueles que não apresentam suficientes garantias científicas nesse sentido.

Reservo-me a voltar posteriormente ao assunto, trazendo novos factos e novos argumentos. Convido, pois, o meu contraditor a me responder também sobre este ponto, refutando toda a argumentação que a precede e a que se vai seguir. Se, porém, ele preferir o meio mais cómodo do silêncio, isto quererá dizer que ele reconhece não poder responder. Quanto a mim, pelo contrário, reconheço estar em condições de responder em todas as circunstâncias – graças, é certo, não ao meu mérito, mas à qualidade da causa que defendo. Assim, não deixarei passar uma só objecção contrária sem convenientemente a refutar.

Continuando a análise do trecho referido, vemos que Sudre diz: “Mas os espíritas que o fanatismo não cega e, que têm uma cultura científica suficiente, renunciam a encontrar nos factos provas cruciais.”

Se se trata de “provas cruciais”, no sentido de “provas absolutas”, a renúncia, de facto, existe, por isso que não há quem ignore ser absurdo e impossível pretender uma “prova absoluta” num ramo de saber qualquer ou numa circunstância da vida, seja ela qual for. Esperamos que os nossos contraditores comecem por nos fornecer a “prova absoluta” daquilo que adiantam, em sentido negativo. Não o podem fazer, assim como também nós, porque nenhum representante da ciência oficial nunca poderá fornecer a “prova absoluta” de qualquer coisa. E isso pela simples razão de que nós mesmos, pobres individualidades condicionadas, vivemos no “relativo”, não podendo, por isso, jamais afirmar uma coisa em termos de certeza absoluta. Mas se Sudre, ao contrário, pela expressão de que faz uso, quer aludir às provas científicas suficientes para legitimar uma hipótese, então labora em grande erro, pois os espíritas de “cultura científica” são da opinião do professor Hyslop, que tinha essa cultura e que solenemente afirmou esta verdade nos seguintes termos:

“Não existe outra explicação racional dos factos senão a hipótese da sobrevivência da alma; as provas cumulativas, que convergem em seu favor, são por tal forma peremptórias que não hesito em declará-las em tudo equivalentes, senão mesmo superiores, àquelas que confirmam a teoria da evolução.” (Contacts with the other world, pág. 328.)

Acrescenta, afinal, Sudre: “Como Myers e Geley, eles pedem o acto de fé necessário a um sistema metafísico edificado sobre outras ciências que não a metafísica, quando não sobre postulados morais.” Ignoro a que se quer referir o nosso autor quando cita Myers e Geley, mesmo porque, ao se citarem autoridades deste valor em defesa de uma tese, tem-se por dever reproduzir as opiniões para as quais se apela, sem o que os nomes invocados não representam mais do que simples expediente de retórica.

Em todo o caso, afirmo, por meu lado, que nada pode haver de tão contrário à verdade, como de supor que os defensores da hipótese espírita firmem o seu ponto de vista sobre a base de um “acto de fé”. É justamente o contrário que se verifica. A força de expansão do Espiritismo, precisamente, reside no facto de haver ele banido para sempre os “actos de fé”, baseando-se exclusivamente nas induções e nas deduções dos factos, do mesmo modo que sobre a convergência das provas, tudo exactamente como em todo o outro departamento do saber humano. Quanto a mim, posso mesmo acrescentar que sempre tive pelos actos de fé uma espécie de “fobia”, que ressalta em todos os meus escritos, baseados sempre nos factos e na dedução dos factos.

Eis-nos, enfim, diante das conclusões a que chega Sudre, no trecho em análise. Elas valem o resto. Com efeito, ele conclui: “Assim, o Espiritismo dito científico e, inaugurado por Delanne, parece haver entrado em falência, nada mais sobrando para a grande massa que o velho Espiritismo moral de Allan Kardec que, em si, não é de todo mau e que serve para levar aos aflitos ilusões consoladoras.”

É de supor que as vãs ilusões, de que fala Sudre, devam referir-se às próprias esperanças iludidas, no que se prende ao Espiritismo científico, cuja falência esperava, mas que, na realidade, nunca teve vitalidade e pujança como actualmente.

É que ele contempla as fases evolutivas da nova Ciência da Alma do cimo do observatório nebuloso dos seus preconceitos.

E basta para este parágrafo.

/…
(*) metagnomia – em metapsíquica (ver fonte ), termo usado por alguns autores para indicar o que hoje se chama comummente; conhecimento paranormal ou percepção extra-sensorial e, também como sinónimo do termo tradicional de clarividênciaNota desta publicação.

(Nesta obra, de natureza puramente científica, Bozzano faz uma minuciosa análise com o objectivo de refutar a obra anti-espírita de René Sudre, “Introdução ao Estudo da Metapsíquica". Desenvolvendo argumentação insofismável sobre aparições junto do leito de morte, fenómenos de materialização e outros, o autor demonstra que a “prosopopese-metagnomia”, hipótese fundamental sustentada por Sudre, para explicar as manifestações metapsíquicas de efeitos inteligentes, de modo algum atinge o fim que teve em vista o autor.)


Ernesto Bozzano (1862-1943) (i)A propósito da Introdução à Metapsíquica Humana, Refutação do livro de René Sudre  Título Original em Italiano; Ernesto Bozzano - Per la difesa dello spiritismo (A proposito della "Introduction à la Métapsychique Humaine" di René Sudre) Società Editrice Partenopea, Napoli (1927); III – Análise crítica de uma alínea sofística, 3º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Puro aire, uma pintura de JosefinaRobirosa)