A FILOSOFIA CIENTÍFICA DE GUSTAVE GELEY
(II de II)
Seguindo o fio do seu pensamento filosófico, vê-se que Geley continuou
a analisar a constituição do Ser, segundo os princípios da nova ideia.
Considerou o Eu como um dinamopsiquismo essencial, em
contraposição à psicologia clássica, que o considera como a soma de estados de
consciência e, que o consciente e o inconsciente se interpenetram para se
condicionar reciprocamente. Conceituou, sempre apoiado nos factos, que o
dinamopsiquismo inconsciente ou subconsciente tende, pela evolução, a
converter-se em dinamopsiquismo consciente; por isso é que todas as aquisições conscientes
são assimiladas e convertidas em faculdades do espírito.
Dessa maneira, o Ser se desenvolve, ou se manifesta e,
adquire, fixando-as, as novas faculdades do sentir, do conhecer e do saber. O
progresso espiritual e psicológico resume-se, portanto, na conversão
dos conhecimentos em faculdades, o que a filosofia espírita denomina evolução
palingenésica. O Ser alcança, pela experiência científica e pela
indução filosófica, a síntese do indivíduo, que, como essência
manifestante que é, se objectiva em representações hierárquicas, que se
condicionam reciprocamente e, que, segundo os conhecimentos metapsíquicos
actuais, são:
— O mental.
— O dinamismo vital.
— A substância orgânica única.
Consequentemente, mostrou-nos que os factos psicológicos (em
psicologia clássica são ainda um mistério puro) resultam, para a
parapsicologia, de estados anormais, que têm pontos de contacto inevitáveis e
recíprocas relações, que se interpenetram frequentemente.
A evolução universal era, para Geley,
como já sabemos: a passagem do inconsciente ao consciente no
Universo. Concebeu o Cosmos como um dinamopsiquismo
essencial e, também como representação.
“Da mesma maneira que o indivíduo, — escreveu
— o Universo deve conceber-se como representação temporária e como
dinamopsiquismo essencial e real. Do mesmo modo que o organismo do
indivíduo é apenas o produto ideoplástico de um dinamopsiquismo essencial,
assim o Universo se apresenta como a formidável materialização da
potencialidade criadora.”
Dentro deste princípio, a evolução é a aquisição da
consciência, tanto no microcosmo como no macrocosmo. Por isso explicou Geley que
as faculdades evolutivas, que no transformismo clássico não têm um
esclarecimento racional, se tornam compreensíveis quando vemos
que o mais pode sair do menos, desde que a
imanência criadora, que está na própria essência das coisas, possui todas as
capacidades potenciais de realização. Em resumo, proclamou: “que a evolução
colectiva, como a evolução individual, pode resumir-se nesta fórmula: passagem
do inconsciente ao consciente.”
Para corroborar esta concepção, escreveu Geley:
“No indivíduo, o Ser aparente, submetido ao nascimento e
à morte, limitado nas suas capacidades, efémero na sua duração, não é o Ser
real; não é senão uma representação ilusória, atenuada e fragmentária.”
“O Ser real, aprendendo pouco a pouco a conhecer-se a si
mesmo e a conhecer o Universo, é a centelha divina a caminho de
realizar a sua divindade, infinita nas suas potencialidades, criadora e
eterna. No Universo manifestado, as diferentes aparências das coisas não são
mais do que a representação ilusória, atenuada e restrita, da unidade divina,
realizando-se numa evolução indefinida.”
“A constituição dos mundos e dos indivíduos — dizia — não
é, também, senão a realização progressiva da consciência eterna, pela
multiplicidade progressiva de criações temporárias ou de objectivações”'.
É neste ponto que o génio filosófico de Geley atinge
o coroamento do seu idealismo metapsíquico, o qual,
segundo René Sudre, constituía um ensinamento superior do
espiritismo. Sem exaltadas declamações, já que frente ao materialismo
resultariam estéreis, refutou o “grito lacerante” de pessimismo que lançava “um
grande príncipe árabe do século X, no reinado que marcou o apogeu do Califado
de Córdoba.”
— Em que consiste esta existência? – perguntava o príncipe a
si mesmo.
— Em trabalhar um quarto de século para adquirir os meios de
vida; em lutar outro quarto de século em incessantes sobressaltos, para que
estes meios produzam um rendimento suficiente e; depois morrer, sem saber, na
verdade, por que vivemos, – respondeu-lhe o seu próprio sentido pessimista da
vida.
“Quantas dores e tristezas, — anotou Geley — sobressaltos
e medos, durante o pequeno quarto de século em que o homem “desfruta” das suas
aquisições! Juventude efémera, com as suas ilusões perdidas; vida empregada em
se preparar para viver; esperanças sempre falidas e sempre ressurgindo; algumas
flores apanhadas à beira do caminho, quase sempre emurchecidas ao toque das
mãos; alguns momentos de repouso e em seguida a marcha apressada que recomeça!
Naufrágios pessoais; naufrágios familiares; trabalho rude e descanso; medos,
desilusões e decepções: isso é o corrente para o comum dos mortais. Para
aqueles que têm um “ideal”, é pior ainda: alguns destinos em busca da ilusão e,
inauditos esforços para alcançá-la.”
Esta é a vida humana, do ponto de vista do
existencialismo ateu e do materialismo histórico, sobre o qual se funda a
concepção marxista.
Perante esta concepção sombria do mundo, Geley analisa o conceito optimista
daquelas escolas que dizem se poder esperar uma era de menos dores, menos
miséria e menos enfermidades. Numa palavra: em vez de uma noite escura de
infortúnios e sofrimentos, iluminada apenas por alguns raios de gozo efémero,
devemos esperar, — segundo estas escolas, — uma aurora de bem-estar, em
que as sombras da dor farão apenas ressaltar melhor a sua refulgente
harmonia e beleza.
A este falso optimismo da vida, Gustave
Geley responde da seguinte maneira:
“Sim, podemos esperar tudo isso! Mas esta humanidade,
chegando a gozar desse ideal, verá o seu triunfo e a sua felicidade
erguerem-se sobre a hecatombe das gerações passadas; isto é, desfrutará de
uma felicidade que os homens não terão merecido, do mesmo modo que os seus
antepassados não mereceram as suas misérias!”
“Há nesta concepção, — acrescentava, — uma
tão grande injustiça que basta por si só para acarretar irresistivelmente o
mais cru pessimismo filosófico.” Ao contrário, para que a visão mude, para que
o pensamento das misérias humanas e da morte se despoje do seu carácter sombrio
e da sua aparência maldita, é preciso a ideia e o ensinamento da doutrina palingenésica.
Então: “tudo se esclarece, — dizia Geley, — os
túmulos deixam de ser túmulos; são asilos passageiros para o fim da
jornada.” E continuava: “Assim como desaparece, com a ideia
palingenésica, o carácter fúnebre da morte, assim também desmorona o monumento
da injustiça, edificado pelo evolucionismo clássico. Já não há, na evolução,
sacrificados nem privilegiados. Todos os esforços individuais e colectivos,
todos os sofrimentos e amarguras terão acabado na realização da justiça e na
preparação do bem; mas o bem e a justiça para todos, porque todos
teremos contribuído para isso.”
E antepondo-se às falsas interpretações dos fenómenos
metapsíquicos, como se falasse ao mais puro da espécie, disse:
“Não; a essência una, seja qual for o nome que se lhe dê,
criadora das representações sem número, não acaba materializando-se nessa vã
fantasmagoria de mundos, de formas e de seres sem passado e sem futuro;
representações absurdas, mundos sem coerências, de obscuridades ou de loucura;
vãos fantasmas desvanecidos quase ao mesmo tempo que criados e, desvanecidos
sem deixar rasto! Não; a essência una não acaba,
com maior razão, criando mundos de dor, para que sirvam de marco ao sofrimento
universal imerecido, inútil e, infecundo.”
“As representações fugitivas, — acrescentava,
— não são nem incoerentes nem desventuradas; graças a
elas e por - elas, a essência única, a única realidade chega
paulatinamente, por inumeráveis experiências, a conhecer-se pouco a pouco a si
mesma, individual e colectivamente, nas partes e no todo.”
“As representações, compreendidas finalmente,
revelam uma soberana harmonia. Delas se depreende o fim supremo, a
finalidade verdadeiramente divina. A harmonia é o acordo imanente de
umas com as outras, a estreita solidariedade das parcelas individualizadas do
princípio único e de sua união irrefragável no todo.”
“O objecto é a aquisição da consciência, o passo
indefinido do inconsciente ao consciente. E é assim que se
desenvolvem todas as potencialidades (sendo a realização a evolução) da
soberana inteligência, da soberana justiça e do supremo bem”.
O que nos parece estranho e incompreensível é a cultura
filosófica continuar ignorando a teoria do dinamopsiquismo, exposta sobre bases
experimentais por Gustave
Geley, no seu livro Do Inconsciente ao Consciente. Esta
obra, que deveria ser o fundamento da nova filosofia idealista, permanece quase
esquecida ao lado do Tratado de Metapsíquica, de Charles Richet. Não reparam os pensadores que é nos
princípios ali expostos que se encontra a autêntica raiz do pensamento
metafísico. Se a filosofia se detivesse por um momento no pensamento
metapsíquico de Geley, encontraria a mais sólida base para realizar um novo e
firme trabalho filosófico. Acreditamos que, com a filosofia idealista
da metapsíquica, a filosofia passará, a bem do conhecimento, da filosofia à
teosofia, isto é, de uma ciência naturalista a uma ciência cósmica e
espiritualista. Tinha muita razão o Dr.
J. B. Rhine ao reclamar a colaboração dos filósofos nos problemas
levantados pela parapsicologia. (1)
A teosofia (2) é o mais perfeito saber que
pode orientar o homem, através dos seus sentidos mediúnicos e
espirituais. O ser humano possui duas formas de compreender a
verdade: uma, a objectiva; outra, a subjectiva. Disto se conclui que o
saber não é uma questão somente física ou sensorial; é também uma problemática
psíquica e intuitiva.
O homem compreende e conhece o mundo pelas vias da razão e
do seu contacto com o mundo material, mas pode compreendê-lo e reconhecê-lo
também por meio do espírito, isto é, por vias extras-sensoriais, tal como o
confirmaram a parapsicologia e a metapsíquica.
A possibilidade de um conhecimento místico do mundo é uma
justa aspiração e um direito legítimo do homem. Penetrar os recessos da
natureza é talvez descobrir a própria alma das coisas. Isso constituiria uma
teosofia do Conhecimento e não somente uma filosofia. Além disso,
significaria descobrir o segredo oculto das existências, o desvelar
poético das Idades, conhecer o enigma das aventuras, lendas e heroísmos do
homem, na certeza de que tudo vive, existe e se relaciona, através do
grande curso e recurso das almas.
/…
(1) A participação dos filósofos é um sinal inequívoco
do progresso da parapsicologia, rumo à sua maturidade. (Revista de
Parapsicologia n° 2, Buenos Aires, 1955).
(2) A palavra teosofia é aqui empregue pelo
autor em sentido espírita, na sua significação etimológica de “sabedoria de
Deus” ou “conhecimento de Deus”, filosoficamente entendida como “ciência do
Ser”. Não confundir, portanto, com as doutrinas teosóficas conhecidas, que são
apenas aproximações à verdadeira teosofia. (Nota de José
Herculano Pires).
Humberto Mariotti, O Homem e a Sociedade numa Nova
Civilização, Do Materialismo Histórico a uma Dialéctica do Espírito, 1ª
PARTE O NÚMENO ESPIRITUAL NOS FENÓMENOS SOCIAIS; – Capítulo IV A
Filosofia Científica de Gustave Geley, (II de II), 7º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Alrededores de la ciudad
paranóico-crítica: tarde al borde de la historia europea | 1936, Salvador
Dali)
Sem comentários:
Enviar um comentário