Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Deus na Natureza ~


A Vida ~ Circulação da Matéria ~

   O poder que rege os astros e desata os esplendores de sua riqueza na imensidão dos céus; a força que regula a construção de minerais e plantas, na Terra; a ordem que espalha a harmonia no mundo, vão apresentar-se-nos agora sob um outro aspecto, dando-nos testemunho não menos irresistível do princípio inteligente que preside aos nossos destinos.

 Enquanto o olhar penetrante do telescópio percorre os espaços infinitos, a visão analítica do microscópio visita os habitáculos minudenciosos da vida na superfície da Terra.

  Aqui, já não é apenas a grandeza e o carácter formidando da energia que nos vão falar, mas, antes, o engenho, a beleza do plano, a delicadeza de sua execução e, sobretudo, a sabedoria sobre-humana que domina a matéria e a molda às leis de uma vontade omnipotente.

 Quando penetramos com os olhos da Ciência o espectáculo do mundo, toda a Natureza nos aparece à feição de imenso dinamismo, em cujo seio se associam ou se transformam as forças extraordinárias da Física e da Química.

  Fenómenos efémeros, que ao vulgo parecem isolados, apresentam-se-nos entramados numa rede única, cujos fios são mantidos por uma força misteriosa.

 O mundo envolve-se em grande unidade, nenhum elemento está isolado, nem na extensão presente, nem na Histórica.

 São irmãos a luz e o calor, quer se nos mostrem juntos, numa união indefectível, quer mutuamente se façam o sacrifício de sua própria existência. A afinidade e o magnetismo casam-se nos mistérios do mundo mineral. A ponta inquieta do íman procura incessantemente o pólo. A planta eleva-se apaixonada para a luz. A Terra volta para o Sol o seu rosto matinal. Estende o crepúsculo o seu manto sobre a noite e os tépidos perfumes dos vales aquecem os pés gelados da noite. Aproximando-se a aurora, o beijo do orvalho deixa o seu traço na corola entreaberta das flores. Átomos e mundos são levados por um só impulso universal. Na atmosfera mil ondulações se entrecruzam, mil variedades de força se combinam. Noite e dia, tarde e manhã, em todas as estações, o mesmo movimento simultaneamente insensível e grandioso, que a nossa vista não apreende e que, aberrante de qualquer avaliação numérica (i), se vai exercendo no laboratório do cosmos. Pois o resultado desse movimento é a Vida.

  Fora deste resultado, o mundo só oferece uma atracção medíocre aos espíritos curiosos. É pelo aspecto ou pelas sensações da vida que o ser pensante se liga à Natureza. Se a contemplação dos céus, de noites silenciosas, nos causa uma tristeza indefinível; se o aspecto de vastos desertos calcinados por um sol ardente nos deixam impassíveis; se o estudo das mais extraordinárias combinações químicas, operadas numa retorta, nos impressiona menos intimamente do que a visão de um pássaro no seu ninho, ou ainda a de uma violeta vicejando humildemente junto de um tronco, é porque essas manifestações não revelam uma vida imediata. A nossa alma é sobretudo acessível às impressões provindas de seres viventes como nós e, de entre estes, os que mais se aproximam da nossa natureza. O timbre de uma voz amada tem maior ressonância no nosso coração do que o ribombar de um trovão. Um raio do olhar eleito penetra-nos mais fundo do que um raio de Sol. Um sorriso adorado tem sempre maior encanto que a mais encantadora das paisagens. No colo, nos braços, nos cabelos da mulher idolatrada, não há diamantes nem safiras, esmeraldas e pérolas, cujo brilho se não degrade ao de simples pedras decorativas. É que neste caso, sobretudo, a vida aparece-nos sob a sua mais bela e mais esquisita manifestação terrestre, pois que ela – a vida – é bem verdadeiramente a grande atracção da Natureza.

  Mas, a característica que mais vivamente impressiona o observador, no conjunto da vida terrestre, é a lei geral que preside à vida do Universo. À primeira vista, afigura-se-nos que todos os seres estão isolados. O abeto que colma os cimos alpestres parece nada ter de comum com a lebre que corre nas planuras. Certo que a rosa dos nossos jardins não conhece o leão dos desertos. A águia e o condor dos planaltos asiáticos jamais provaram o fruto dos nossos pomares. O trigo e a vinha, em nada parece ligarem-se à vida dos peixes. E se nos cingirmos a divisões menos marcantes, ninguém suspeitará qualquer relação imediata entre a vida do homem e a do vegetal que matiza os campos e as florestas.

  E contudo, a verdadeira realidade é que a vida de todos os seres terrícolas homens, animais, plantas - é uma e única, sujeita a um mesmo sistema, tendo por ambiente o ar e por base o solo. E essa vida universal outra coisa não é senão uma permuta constante de matéria. Todos os seres se formam das mesmas moléculas, a passarem sucessiva e indiferentemente de uns aos outros, de sorte que nenhum ser dispõe de um corpo propriamente seu. Pela respiração e pela alimentação, nós absorvemos, cada dia, uma certa porção de alimentos. Pela digestão, pelas secreções e excreções, perdemos outra determinada porção de alimentos. Assim, se renova o corpo e, depois de algum tempo, já não possuímos um só grama do corpo material de antes. A sua renovação foi total, completa. Mediante essa permuta é que se entretém a vida. Enquanto o movimento renovador se opera em nós, a mesma coisa se dá com os animais e as plantas. Os milhões, os biliões de seres viventes na superfície do globo mantêm-se, portanto, em permuta constante dos seus organismos. O átomo de oxigénio, que agora estás respirando, foi ontem, possivelmente, expirado por alguma das árvores que orlam o bosque, além. O átomo de hidrogénio que, neste momento, humedece a pupila vigilante do leão do deserto, será o mesmo que, não há muito, molhava os lábios da mais pudica donzela da austera Albion. O átomo de carbono que neste momento arde no meu pulmão, ardeu talvez na candeia que serviu a Newton para as suas experiências de óptica; e as fibras mais preciosas do cérebro de Newton talvez se encontrem, agora, na concha de uma ostra ou numa dessas miríades de animálculos microscópicos, que povoam os mares fosforescentes. O átomo de carbono que se escapa, no momento, da combustão do nosso charuto, terá talvez saído, há alguns anos, do túmulo de Cristóvão Colombo, que demora, como sabes, na catedral de Havana. Toda a vida não passa de uma constante permuta de elementos materiais. Fisicamente falando, nós nada possuímos de nós mesmos. Só o ser pensante é o nosso eu. Só ele é que nos constitui verdadeira, imutavelmente. Quanto à substância que nos forma o cérebro, os nervos, os músculos, os ossos, os membros, a carne, essa não a retemos; vai, vem, passa de um ser ao outro. Sem metáfora, podemos dizer que as plantas são as nossas raízes, pelas quais extraímos dos campos a albumina do sangue, o cálcio para os ossos. O oxigénio de sua respiração nos dá vigor e beleza, assim como, reciprocamente, o ácido carbónico que restituímos à atmosfera vai cobrir de verdura os vales e as colinas.

 Quando se tem a convicção profunda dessa permuta universal da matéria, que irmana, do ponto de vista da composição orgânica, o feto e o pássaro, o peixe e a plaga, o homem e a fera, considera-se a Natureza sob a impressão da grande unidade que preside à marcha das coisas. Ela, a Natureza, se nos apresenta, então, completamente transfigurada e não deixa de ser com um interesse mais íntimo que encaramos o sistema geral da vida planetária. A. de Humboldt traçou a sua fisionomia num esboço amplo, que tem o mérito de reivindicar considerações especiais a respeito. “Quando o homem interroga com argúcia penetrante a Natureza – diz ele (ii) – ou quando mede, na sua imaginação, os vastos espaços da criação orgânica, de todas as emoções experimentadas e a mais poderosa e profunda é a da plenitude da vida, universalmente difundida. Por toda a parte, até nos pólos congelados, o ar repercute o canto das aves e o zumbido dos insectos.

  “A vida transpira, não somente nas camadas inferiores da atmosfera, onde flutuam pesados vapores, mas, também, nas regiões serenas, eterizadas. Todos quantos remontaram, quer as cumeadas da cordilheira Andina, quer os píncaros do Monte Branco debruçados sobre o lago de Genebra, jamais deixaram de aí encontrar seres animados. No Chimborazo, e numa altitude excedente de 2600 metros ao pináculo do Etna, vimos borboletas e outros insectos alados. Mesmo supondo que houvessem sido levados por correntes aéreas, e que lá errassem como estrangeiros, naquelas paragens a que só o ardente desejo de conhecer conduz os homens, a sua presença atesta, todavia, que, mais flexível, a organização animal resiste além dos limites traçados à vida vegetal. Muitas vezes vimos o rei dos abutres – o condor – planar acima das nossas cabeças, em altitudes excedentes aos picos nevados dos Pireneus, e até mesmo dos indianos. O possante carnívoro alado era, naturalmente, atraído pelos sedosos vigonhos, que às manadas procuravam aquelas pastagens coalhadas de neve.”

  Esta vida que vemos difundida, em todas as camadas atmosféricas, não é mais que pálida imagem da vida mais compacta, que o microscópio nos revela. Os ventos arrebatam, à superfície das águas em evaporação, turbilhões de animálculos invisíveis, imóveis e com todas as aparências de morte; seres que flutuam no ar, até que as orvalhadas os devolvam ao solo nutriz, que lhes dissolve o invólucro e, graças provavelmente ao oxigénio sempre contido na água, comunica-lhes aos órgãos uma nova irritabilidade. Nuvens de microrganismos cruzam as regiões aéreas do Atlântico e carreiam a vida de um ao outro continente.

  Com o autor de Cosmos, podemos acrescentar que, independentemente dessas existências, a atmosfera também contém inumeráveis germes de vida futura, óvulos de insectos e de plantas, que, sustentados por coroas de pêlos ou de plumas, garram para as longas peregrinações do Outono. O pólen fecundante que as flores masculinas semeiam nas espécies de sexo extremado, é também, ele próprio, levado pelos ventos e por insectos alados através de continentes e mares, às plantas femininas que vivem em solidão. Onde quer que o observador da Natureza mergulhe os olhos, aí encontrará vidas, ou um germe pronto a recebê-la.

  As formas orgânicas penetram no seio da Terra a grandes profundidades, por toda a parte as águas se espalham e infiltram, seja em interstícios formados pela Natureza, ou feitos pela mão do homem.

  Ninguém poderia dizer com segurança qual o ambiente em que a vida se difundiu com maior profusão. De facto, ela repleta os oceanos, das zonas tropicais aos gelos polares; o ar se povoa de germes invisíveis e o solo é sulcado por miríades de espécies, quer animais, quer vegetais. Estes incessantemente procuram dispor, mediante combinações harmoniosas, da matéria bruta do solo, como que tendo a função de preparar e misturar, por virtude de sua energia vital, as substâncias que, após inumeráveis modificações, hão de ser elevadas ao estado de fibras nervosas.

 Abrangendo no mesmo olhar a camada vegetal que reveste o solo, depara-se-nos em plenitude a vida animal, nutrida e conservada pelas plantas.

  Por intermédio do ar é que se operam essas transformações incessantes, universais, e não por outro meio que não esse, os elementos podem transitar de um corpo ao outro. Proposição é esta, tão exacta, que os fisiologistas há muito repetem que todo o ser vivo é produto do ar organizado. Como se opera essa organização? A partir de Lavoisier, sabemos que a respiração do homem e dos animais é acto análogo às combustões mediante as quais nos aquecemos e aclaramos. Insistamos um tanto neste ponto. A respiração estabelece uma solidariedade universal entre os homens, animais e plantas. Ela é resultante da união do oxigénio com o carbono e o hidrogénio dos alimentos, tanto quanto a combustão resulta da união desse mesmo oxigénio com o hidrogénio e o carbono da vela, da madeira, ou combustível qualquer. A respiração verifica-se sob a influência da vida, enquanto a combustão, propriamente dita, se opera sob a influência de um calor intenso. Um e o outro actos têm por fim produzir calor. É o calor desprendido da nossa respiração que entretém no corpo a temperatura de 37 graus, necessária à manutenção da vida.

  Lavoisier e Lieb demonstraram, há muito tempo, que todo o animal é um foco e todo o alimento um combustível. Se a respiração não se acompanha, como a combustão, de claridades incandescentes, é por ser uma combustão lenta, menos activa. Mas, por muito lenta que seja equivale, contudo, à de uma dose assaz forte de carbono. Um homem queima 10 a 12 gramas de carbono por hora, ou 250 por dia, mais ou menos, além de uma certa quantidade de hidrogénio.

  A combustão e a respiração viciam o ar destruindo-lhe o elemento salutífero – o oxigénio, substituindo-o por um gás mefítico – o ácido carbónico. Esta e outras causas espalham na atmosfera, de maneira constante, esse elemento insalubre. Experiências feitas com o vapor de água condensada nas janelas dos teatros de Paris, patentearam uma combinação particularmente mortal.

  A raça humana retira do ar, anualmente, 160 biliões de metros cúbicos de oxigénio e os permuta por igual volume de ácido carbónico. A respiração dos animais quadruplica o resultado. Só a hulha que se extrai do solo fornece mais ou menos 100 biliões de metros cúbicos de ácido carbónico, ao mesmo tempo que outros combustíveis aumentam consideravelmente essa cifra. Junte-se-lhe ainda o produto das decomposições e considere-se que, a despeito, esse gás não se encontra no ar atmosférico senão na proporção diminuta de 4 a 5 litros por 100 hectolitros. O ácido carbónico é solúvel na água, a chuva o dissolve e carreia nas suas bátegas, o transporta aos rios, leva-o enfim aos oceanos. Aí, ele une-se à cal e temos o carbonato de cal, as pedras calcáreas, mármore, alabastro, ónix, polipeiros, etc.

  Os vegetais, a seu turno, preenchem, em escala imensa, função inversa à respiração dos animais, essencialíssima à harmonia da Natureza, pois não somente fixa o hidrogénio da água e subtrai da atmosfera o ácido carbónico, como lhe restitui o oxigénio. (Uma folha de nenúfar dá, em 10 horas, 15 unidades de oxigénio, proporcionais ao seu volume.)

  A que transformações submetem os vegetais o carbono, o hidrogénio, o azoto, que eles absorvem do ar? É toda uma produção variada. Conjugando cinco moléculas de carbono e quatro de hidrogénio, a Natureza forma, no citrão e no salgueiro, duas essências que, diversas radicalmente em odorância, provêm da mesma composição. Frequentemente, a Natureza junta a estes dois elementos o oxigénio. Assim é que solda doze moléculas de carbono e dez de hidrogénio e oxigénio, formando, a seu prazer, seja a madeira, seja a batata. Outras vezes, o seu trabalho é mais complexo e reúne os quatro elementos: carbono, hidrogénio, oxigénio e azoto, originando os mais diferentes produtos, tais como o trigo – precioso alimento – e a estricnina – activíssimo tóxico.

  Como explicar, por exemplo, juntando um equivalente de água à substância característica da madeira, a celulose (C12H10O10), a Natureza nos dê o açúcar? Sínteses maravilhosas, a Natureza as produz silenciosamente, ao influxo da vida!

  O reino vegetal é uma usina imensa. Sob a acção do calor solar, todas as roldanas entram a movimentar-se. A exemplo do mecânico que nutre a sua máquina, a Natureza renova o combustível e os princípios do ar, e estes se transformam em madeira ou amido, em açúcar ou veneno, que constituem a polpa saborosa do fruto, o perfume subtil das flores, o rendilhado das folhas, a coriácea tessitura dos troncos.

  Os animais nutrem-se dos vegetais, gaseificam, por assim dizer, o ar solidificado e o devolvem à atmosfera, onde ele recomeça o ciclo das transformações que, graças a ele – o ar – agente primaz da vida, elo universal, jamais se interrompem.

  A comparação que Liebig (iii) foi o primeiro a fazer, da combustão respiratória do animal com a dos combustíveis de uma fornalha, só é exacta se fizermos uma ideia material do fogo nesse aparelho. No animal, todo o corpo arde lentamente, o que não se dá com a fornalha, que não arde. Na retorta humana, continente e conteúdo queimam juntos e, assim, é mais justo tomarmos a vela como elemento comparativo.

 O calor é o regulador da vida. Descartes antecipara-se aos progressos da experimentação escrevendo este significativo conceito: “Importa não conceber nas máquinas humanas outra alma vegetativa nem sensitiva, nem princípio algum de movimento e vida, além do sangue e seus espíritos, agitados pelo calor do fogo que arde continuamente no seu coração e cuja natureza é idêntica à que inflama os corpos inanimados.” (Sabemos que Descartes, como Platão, considerava a alma humana como retirada num santuário, no âmago de nós mesmos, numa espécie de oposição à matéria. A vida e as funções orgânicas dependiam inteiramente do corpo e só ao pensamento era atributo do espírito.)

 Tal, sumariamente, o papel do ar na Natureza. Assim são os vegetais, habilíssimos físico-químicos, a nos prepararem ao mesmo tempo a alimentação, a respiração, a indumentária, o combustível e os elementos materiais da nossa existência terrestre. Importa, por conseguinte, deixarmos de considerar a Natureza sob um prisma vulgar, para fazê-lo, doravante, com olhos atentos e apercebidos. Quando fixarmos a ervilha tenra que reponta nos jardins, não admiraremos apenas o risonho tapete de verdura e a gracilidade das flores que o esmaltam. Elevemos mais alto o pensamento, imaginemos que cada um desses rebentos, que vamos pisando, é um benfeitor silencioso, pois, se de um lado contribuímos para embelezá-lo fornecendo-lhe ácido carbónico, sem o qual se estiolaria, por outro lado ele nos dá benévolamente todo o necessário à nossa vida material: imaginemos que essa harmonia é de uma perfeição sublime, visto que, se umas regiões mergulham, longos meses, nos rigores do Inverno, os ventos não deixam de estabelecer entre esses países deserdados e o nosso uma permuta constante, que reconduz aos nossos bosques e prados o ácido carbónico expirado pelo lapónio e o esquimó, levando-lhes o oxigénio exalado dos milhões de bocas dos nossos vegetais.

/…
(i) Pudesse o homem apreciar as forças diariamente accionadas na Natureza e ficaria confundido, na sua admiração. Para não citar mais que um exemplo fácil de entender, digamos que o vapor de água ao elevar-se do solo para formar as nuvens, essas nuvens que se resolvem em chuva, parece não acusar, à primeira vista, um deslocamento de energias colossais. No entanto, admitindo que caia anualmente, em toda a superfície terráquea, uma camada de água da espessura de um metro e que a altura média das nuvens seja de 3000 metros, seria preciso para esse trabalho uma força de 1500 biliões de cavalos, a trabalharem 7 horas diárias. E a Terra não teria como alimentá-los!
(ii) Tableaux de la Natura, parte 4ª.
(iii) Liebig – Chemische Brief, 400.



Camille FlammarionDeus na Natureza, Segunda Parte – A Vida 1, Circulação da Matéria (1 de 6), 17º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

terça-feira, 10 de outubro de 2017

agonia das religiões ~


experiência no | Tempo

O homem realiza a experiência de Deus no tempo, ao longo de sua evolução natural. Não se pode ter uma experiência artificial de Deus em alguns minutos ou algumas horas de meditação. Essa experiência é natural – e de natureza vital –, faz parte integrante da vida e da existência humana. Podemos lembrar a expressão de DescartesA ideia de Deus no homem é a marca do obreiro na sua obra. Descartes foi o precursor de Kardec, como João Baptista o foi do Cristo. Temos, assim, uma curiosa correlação histórica entre o advento do Cristianismo e o advento do Espiritismo, que se completa em numerosos outros aspectos.

Lembrando a teoria da reminiscência em Platãoem que as almas nascem na Terra marcadas pela recordação do mundo das ideias, compreenderemos mais facilmente a existência da ideia inata de Deus no homem. Essa ideia inata não é apenas marca, mas também o marco inicial e o pivô em torno do qual se processa todo o desenvolvimento espiritual da criatura humana. Podemos acompanhar esse processo desde a adoração dos elementos naturais pelo homem Primitivo (a partir da litolatria, adoração da pedra e de outras formações minerais) até à eclosão do monoteísmo, com a ideia do Deus Único, que Kant considerou o mais elevado conceito formulado pela mente humana. E vemos então que a ideia de Deus representa, histórica e antropologicamente, uma espécie de marca-passo de toda a evolução do homem.

No episódio do Cogito, da cogitação de Descartes sobre a realidade ou não da existência, temos o momento em que ele descobre, no mais profundo de si mesmo, uma ideia estranha, que é a da existência de um Ser Absoluto e portanto absolutamente perfeito. Essa ideia não podia ter sido originada pelas suas experiências de ser relativo e imperfeito. Descartes considerou-a estranha porque só poderia vir de fora dele, da existência real desse Ser Absoluto. Descobria assim que tivera uma experiência de Deus, inteiramente independente de todas as suas experiências terrenas.

A importância desses factos históricos e culturais foi negligenciada pela cultura leiga que se desenvolveu na Renascença e deu forma ao mundo moderno. O predomínio crescente das conquistas materiais da Civilização Ocidental asfixiou essas conquistas do espírito. O homem se esqueceu do significado desses factos, desses episódios culminantes da cultura humana, e as religiões dogmáticas transformaram a ideia de Deus em simples crença desprovida de raízes experimentais. Coube ao Espiritismo restabelecer a verdade e colocar a experiência de Deus no seu devido lugar, no vasto panorama da evolução da Humanidade. Trata-se da mais importante e profunda experiência do homem, uma experiência vital que deverá levá-lo à compreensão da sua verdadeira natureza e do seu verdadeiro destino. Impossível reduzi-la a uma conquista particular e eventual de algumas criaturas que hoje se entregam a práticas de meditação.

Claro que com isso não pretendo negar nem diminuir o valor da meditação como disciplina mental e como recurso de elevação espiritual. Sustento apenas que a meditação é o produto e não a produtora da experiência de Deus, pois essa experiência já marcava o homem muito antes que ele houvesse adquirido o poder do pensamento abstracto e pudesse meditar. A vivência religiosa, pelo simples facto de ser vivência e não reflexão, é inerente ao homem desde o seu aparecimento no planeta. Essa é uma questão que hoje se coloca de maneira evidente.

A concepção espírita vai mais longe e mais fundo, negando ao homem actual o direito de isolar-se do mundo para buscar a Deus e, portanto, de buscar a Deus ou aos poderes espirituais através de processos artificiais. O meio natural de evolução, para o homem e para todas as coisas e todos os seres, é a relação. Se nos afastamos do relacionamento social e cultural para nos elevarmos, estamos nos colocando em posição errada e tomando um caminho ilusório. A busca solitária de Deus é um acto egocêntrico e preferencial. O místico vulgar não mergulha em si mesmo para encontrar em Deus a relação com o mundo, como o fez Descartes, mas, pelo contrário, para desligar-se do mundo e ligar-se isoladamente a Deus. Não é guiado pelo amor à Humanidade, mas pelo amor a si mesmo. Prefere elevar-se acima dos outros para encontrar em Deus o refúgio e a fortaleza em que poderá construir e usufruir sozinho a sua felicidade particular. Prefere a fuga ao mundo, em termos de superioridade pessoal e portanto egoísta, anti-religiosa, à ligação com o mundo e com Deus para a realização da unidade global que é o objectivo da religião.

A diferença absoluta entre a posição do Cristo e a Posição do Buda e das chamadas religiões orientais é precisamente essa. Enquanto o Buda abandona o mundo para buscar a Deus na solidão, o Cristo mergulha no mundo para religar os homens a Deus. A acção do Buda é subjectiva e contrária à experiência do mundo, enquanto a acção do Cristo é objectiva, considerando a experiência do mundo como necessária ao desenvolvimento da experiência de Deus no homem. Meio milhão de pessoas entregues à meditação para tentar a ligação pessoal de cada uma delas com Deus não representa um esforço colectivo de unidade – uma acção religiosa –, mas a simples coincidência de esforços particulares e isoladas, como vemos na busca do ouro nas regiões auríferas. Não se trata, pois, de uma acção colectiva e sim de milhares de acções individuais e egoístas.

Não quero de maneira alguma negar o valor espiritual do Buda, cuja posição correspondia à necessidade de orientação de uma comunidade de almas estranhas à Terra, exiladas no nosso planeta, que tinham por objectivo a volta aos seus mundos de origem. Nesse caso, a negação individual do mundo (do nosso mundo) tornava-se colectiva em virtude do objectivo comum do retorno ao paraíso perdido. A teoria espírita da migração entre os mundos – apoiada na teoria cristã das muitas moradas da Casa do Pai – é a chave indispensável à compreensão desse problema.

A evolução de cada mundo atinge o momento em que a sua população se divide em dois campos bem diferenciados, como vemos hoje na Terra. Um deles evoluiu o suficiente para integrar uma humanidade planetária superior, o outro continua em estado inferiorA população desse campo inferior precisa ser transferida para outro mundo que esteja ao seu nível evolutivo, a fim de que as criaturas refaçam ali o tempo perdido. Quando essa população atingir ali, no outro planeta o nível de evolução necessário, voltará ao seu mundo de origem. Nessa situação, a vivência isolada nas práticas solitárias da meditação constitui uma recapitulação de aprendizado. Era a essas almas emigradas que o Buda dirigia a sua mensagem superior, como outros haviam feito antes dele.

Na nossa humanidade terrena somente a acção do Cristo – vencendo o mundo, segundo as suas próprias palavras – nos impulsionou ao aceleramento evolutivo que vem transformando a Terra não só nas áreas cristãs, mas em toda a sua extensão. O Cristianismo institucional, igrejeiro, absorvendo elementos espirituais das religiões orientais, que se opunham aos princípios de entrega ao mundo das religiões mitológicas, mergulhou no ascetismo das ordens monásticas do Oriente e no isolacionismo da concepção sócio-cêntrica de Israel. As seitas cristãs fecharam-se em si mesmas, desde a comunidade apostólica do Livro de Actos dos Apóstolos, estabelecendo uma divisão arbitrária entre os escolhidos de Deus e os abandonados por Ele. A prática do baptismo do espírito, do tempo de Jesus, que dava à criatura a experiência directa da realidade espiritual, converteu-se nas formas de evocação ritual e privilegiada do Espírito Santo, que dá ao crente a ilusão de uma separatividade conferida pela graça. As igrejas cristãs transformaram-se em ilhas de santidade e pureza no meio da impureza do mundo, como a Israel antiga no mundo mitológico. A experiência de Deuspessoal e intransferível, substituiu a experiência de Deus no mundo, a vivência universal do ensino e do exemplo de Jesus. É por isso que os cristãos de hoje se formalizam em grupos sócio-cêntricos fechados.

Ao contrário disso, a revelação espírita considera a graça simplesmente como a força que Deus concede ao homem de boa-vontade para vencer as suas imperfeições, seja ele desta ou daquela religião ou de nenhuma delas. O baptismo exclusivista e sectário é substituído pelo antigo baptismo do espírito, acessível a todos, não segundo o critério eclesiástico mas segundo o critério de Deus. Nada exemplifica melhor essa questão do que o episódio de Actos em que o Apóstolo Pedro, em Jope, se recusa a atender o centurião Cornélius, mas advertido pelo mundo espiritual o atende e descobre o sentido universal do baptismo do espírito. Pedro, ainda imbuído dos princípios isolacionistas do Judaísmo, não podia entender que lhe fosse permitido socorrer uma família de romanos impuros em que a mediunidade eclodia. Foi necessário que o Espírito o advertisse – a ele que seguira e ouvira o Cristo até ao momento da prisão – de que Deus nada fizera de impuro, para que a sua consciência se abrisse à verdadeira compreensão da mensagem cristã.

O egocentrismo humano, essa centralização do homem em si mesmo, que gera e alimenta o orgulho, é um adecorrência natural das fases de formação da consciência, de formação do indivíduo como uma unidade espiritual específica, aposta à pluralidade e confusão do mundo. Mas esse egocentrismo, que deve abrir-se em altruísmo na proporção em que o homem amadurece, é alimentado pelo anseio de privilégios que as igrejas satisfazem com as suas concessões ilusórias aos fiéis. Tudo tem a sua utilidade no seu tempo, mas depois se torna inútil e até mesmo prejudicial. No próprio meio espírita essa tendência a conservar posições do passado ainda subsiste, particularmente no plano institucional, onde os postos de comando reacendem no espírito a chama de velhas e desvairadas ambições. O homem, espírito encarnado – envolto na neblina da carne, como ensina Emmanuel – está sempre e inevitavelmente propenso a reincidir nos seus erros do passado. A volta às condições da vida material coloca-o de novo perante a possibilidade de desfrutar as oportunidades que lhe foram úteis ou agradáveis no passado. As ilusões renascem no seu coração humano. As perspectivas espirituais perdem-se no nevoeiro. Nas religiões formalistas esse apelo do passado adquire muito mais força.

A luta contra os resíduos do passado exige oração e vigilância, como Jesus ensinou. Não obstante a idealização do Diabo, como personificação mitológica do Mal, todas as grandes religiões reconhecem que a tentação está dentro de nós mesmos. Muito mais que a influência dos espíritos inferiores, o que nos arrasta de volta aos velhos caminhos do erro são as próprias tendências que trazemos no nosso íntimo. A oração consciente, feita com sinceridade e fé, areja o nosso íntimo, lança a sua luz sobre as escuras paisagens interiores da alma, fazendo-nos discernir o contorno real das coisas. Nada se modifica em nós, mas iluminamo-nos por dentro. E se mantivermos a nossa vigilância na intenção verdadeira de acertar, facilmente veremos o que nos convém e o que não nos convém. Poderemos então repetir com PauloTudo me é lícito, mas nem tudo me convém. E, seguindo assim o caminho que a prudência esclarecida nos indica, tudo modificaremos para melhor em nós mesmos, tornando-nos aptos a auxiliar os outros a se melhorarem.

Temos a cada instante, a cada minuto, diariamente na nossa vida a experiência de Deus. Porque a própria vida é, em si mesma, essa experiência. Desde o momento em que nascemos até ao instante final da nossa existência estamos em relação permanente com Deus, não o Deus particular desta ou daquela igreja, mas o Deus em espírito e matéria que se manifesta numa haste de relva, na beleza gratuita de uma flor, no brilho de uma estrela, num perfume, numa voz, numa nota musical isolada, num aperto de mão e principalmente numa ideia, num sentimento, numa aspiração que brota do anseio de transcendência da nossa alma. O que nos falta é estar mais atentos, mais despertos para a percepção consciente desses múltiplos e infindáveis milagres da vida quotidiana. O homem sem Deus é somente aquele que se nega a aceitar a presença de Deus em si e à sua volta. Para esse homem, a meditação é um ensaio no campo da frustração, um mergulho no mundo opaco do sem-sentido.

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José Herculano Pires, Agonia das Religiões / Capítulo 4 – Experiência no Tempo, 5º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel).