experiência no | Tempo
O homem realiza a experiência de Deus no tempo, ao longo de
sua evolução natural. Não se pode ter uma experiência artificial de
Deus em alguns minutos ou algumas horas de meditação. Essa experiência
é natural – e de natureza vital –, faz parte integrante da vida e da existência
humana. Podemos lembrar a expressão de Descartes: A
ideia de Deus no homem é a marca do obreiro na sua obra. Descartes foi
o precursor de Kardec, como João Baptista o
foi do Cristo. Temos,
assim, uma curiosa correlação histórica entre o advento do Cristianismo e o
advento do Espiritismo,
que se completa em numerosos outros aspectos.
Lembrando a teoria da reminiscência em Platão, em que as
almas nascem na Terra marcadas pela recordação do mundo das ideias,
compreenderemos mais facilmente a existência da ideia inata de Deus no homem. Essa
ideia inata não é apenas marca, mas também o marco inicial e o pivô em torno do
qual se processa todo o desenvolvimento espiritual da criatura humana. Podemos
acompanhar esse processo desde a adoração dos elementos naturais pelo homem
Primitivo (a partir da litolatria,
adoração da pedra e de outras formações minerais) até à eclosão do monoteísmo,
com a ideia do Deus Único, que Kant considerou o mais
elevado conceito formulado pela mente humana. E vemos então que a ideia de Deus
representa, histórica e antropologicamente, uma espécie de marca-passo de toda
a evolução do homem.
No episódio do Cogito, da cogitação de Descartes sobre
a realidade ou não da existência, temos o momento em que ele descobre, no mais
profundo de si mesmo, uma ideia estranha, que é a da existência de um Ser
Absoluto e portanto absolutamente perfeito. Essa ideia não podia ter sido
originada pelas suas experiências de ser relativo e imperfeito. Descartes
considerou-a estranha porque só poderia vir de fora dele, da existência real
desse Ser Absoluto. Descobria assim que tivera uma experiência de Deus,
inteiramente independente de todas as suas experiências terrenas.
A importância desses factos históricos e culturais foi
negligenciada pela cultura leiga que se desenvolveu na Renascença e deu
forma ao mundo moderno. O predomínio crescente das conquistas materiais da Civilização
Ocidental asfixiou essas
conquistas do espírito. O homem se esqueceu do significado desses factos,
desses episódios culminantes da cultura humana, e as religiões dogmáticas transformaram a ideia
de Deus em simples crença desprovida
de raízes experimentais. Coube ao Espiritismo restabelecer
a verdade e colocar a experiência de Deus no seu devido lugar,
no vasto panorama da evolução da Humanidade. Trata-se da mais importante e
profunda experiência do homem, uma experiência vital que deverá levá-lo à
compreensão da sua verdadeira natureza e do seu verdadeiro destino. Impossível
reduzi-la a uma conquista particular e eventual de algumas criaturas que hoje
se entregam a práticas de meditação.
Claro que com isso não pretendo negar nem diminuir o valor
da meditação como disciplina mental e como recurso de elevação
espiritual. Sustento apenas que a meditação é o produto e não a
produtora da experiência de Deus, pois essa experiência já marcava o
homem muito antes que ele houvesse adquirido o poder do pensamento abstracto e
pudesse meditar. A vivência religiosa,
pelo simples facto de ser vivência e não reflexão, é inerente ao
homem desde o seu aparecimento no planeta. Essa é uma questão que hoje se
coloca de maneira evidente.
A concepção espírita vai mais longe e mais fundo, negando ao
homem actual o direito de isolar-se do mundo para buscar a Deus e, portanto, de
buscar a Deus ou aos poderes espirituais através de processos artificiais. O meio natural de evolução, para o
homem e para todas as coisas e todos os seres, é a relação. Se nos
afastamos do relacionamento social e cultural para nos elevarmos, estamos nos
colocando em posição errada e tomando um caminho ilusório. A busca solitária de
Deus é um acto egocêntrico e preferencial. O místico vulgar não mergulha em si
mesmo para encontrar em Deus a relação com o mundo, como o fez Descartes, mas, pelo
contrário, para desligar-se do mundo e ligar-se isoladamente a Deus. Não
é guiado pelo amor à Humanidade, mas pelo amor a si mesmo. Prefere
elevar-se acima dos outros para encontrar em Deus o refúgio e a fortaleza em
que poderá construir e usufruir sozinho a sua felicidade particular. Prefere a
fuga ao mundo, em termos de superioridade pessoal e portanto egoísta,
anti-religiosa, à ligação com o mundo e com Deus para a realização da unidade
global que é o objectivo da religião.
A diferença absoluta entre a posição do Cristo e a Posição do Buda e das chamadas
religiões orientais é precisamente essa. Enquanto o Buda abandona o
mundo para buscar a Deus na solidão, o Cristo mergulha no mundo para religar os
homens a Deus. A acção do Buda é subjectiva e contrária à
experiência do mundo, enquanto a acção do Cristo é objectiva, considerando a experiência
do mundo como necessária ao desenvolvimento da experiência de Deus no homem.
Meio milhão de pessoas entregues à meditação para tentar a ligação pessoal de
cada uma delas com Deus não representa um esforço colectivo de unidade – uma
acção religiosa –, mas a simples coincidência de esforços particulares e
isoladas, como vemos na busca do ouro nas regiões auríferas. Não se trata,
pois, de uma acção colectiva e sim de milhares de acções individuais e
egoístas.
Não quero de maneira alguma negar o valor espiritual do
Buda, cuja posição correspondia à necessidade de orientação de uma comunidade de almas
estranhas à Terra, exiladas no
nosso planeta, que tinham por objectivo a volta aos seus mundos de
origem. Nesse caso, a negação individual do mundo (do nosso mundo)
tornava-se colectiva em virtude do objectivo comum do retorno ao paraíso
perdido. A teoria espírita da migração entre os mundos – apoiada na teoria
cristã das muitas moradas da Casa do Pai – é a chave
indispensável à compreensão desse problema.
A evolução de cada mundo atinge o momento em que a sua
população se divide em dois campos bem diferenciados, como vemos hoje na Terra.
Um deles evoluiu o suficiente para integrar uma humanidade planetária superior, o outro continua em
estado inferior. A
população desse campo inferior precisa ser transferida para outro mundo que
esteja ao seu nível evolutivo, a fim de que as criaturas refaçam ali o tempo
perdido. Quando essa população atingir ali, no outro planeta o nível
de evolução necessário, voltará ao
seu mundo de origem. Nessa situação, a vivência isolada nas práticas
solitárias da meditação constitui uma recapitulação de aprendizado. Era a essas
almas emigradas que
o Buda dirigia a sua mensagem superior, como outros haviam feito antes dele.
Na nossa humanidade terrena somente a acção do Cristo – vencendo o mundo,
segundo as suas próprias palavras – nos impulsionou ao aceleramento
evolutivo que vem transformando a Terra não só nas áreas cristãs, mas em toda a
sua extensão. O Cristianismo institucional, igrejeiro, absorvendo
elementos espirituais das religiões orientais, que se opunham aos princípios
de entrega ao mundo das religiões mitológicas, mergulhou no
ascetismo das ordens monásticas do Oriente e no isolacionismo da concepção
sócio-cêntrica de Israel. As seitas cristãs fecharam-se em si mesmas,
desde a comunidade apostólica do Livro de Actos dos Apóstolos,
estabelecendo uma divisão arbitrária entre os escolhidos de Deus e os
abandonados por Ele. A prática do baptismo do espírito, do
tempo de Jesus, que dava
à criatura a experiência directa da realidade espiritual, converteu-se
nas formas de evocação ritual e privilegiada do Espírito Santo, que dá
ao crente a ilusão de uma separatividade conferida pela graça. As
igrejas cristãs transformaram-se em ilhas de santidade e pureza no meio da
impureza do mundo, como a Israel antiga no mundo mitológico. A experiência
de Deus, pessoal e
intransferível, substituiu a experiência de Deus no mundo, a vivência universal do
ensino e do exemplo de Jesus. É por isso que os cristãos de hoje se formalizam
em grupos sócio-cêntricos fechados.
Ao contrário disso, a revelação espírita considera a
graça simplesmente como a força que Deus concede ao homem
de boa-vontade para vencer as suas imperfeições, seja ele desta ou
daquela religião ou de nenhuma delas. O baptismo exclusivista e sectário é
substituído pelo antigo baptismo do espírito, acessível a todos, não segundo o
critério eclesiástico mas segundo o critério de Deus. Nada exemplifica melhor
essa questão do que o episódio de Actos em que o Apóstolo Pedro, em Jope,
se recusa a atender o centurião Cornélius, mas advertido pelo mundo espiritual
o atende e descobre o sentido universal do baptismo do espírito. Pedro, ainda
imbuído dos princípios isolacionistas do Judaísmo, não podia entender que lhe
fosse permitido socorrer uma família de romanos impuros em que a mediunidade eclodia.
Foi necessário que o Espírito o advertisse – a ele que seguira e ouvira o Cristo até ao momento da
prisão – de que Deus nada fizera de impuro, para que a sua consciência se
abrisse à verdadeira compreensão da mensagem cristã.
O egocentrismo humano, essa centralização do homem em si
mesmo, que gera e alimenta o orgulho, é um adecorrência natural
das fases de formação da consciência, de
formação do indivíduo como uma unidade espiritual específica, aposta à
pluralidade e confusão do mundo. Mas esse egocentrismo, que deve abrir-se em altruísmo na
proporção em que o homem amadurece, é alimentado pelo anseio de
privilégios que as igrejas satisfazem com as suas concessões ilusórias aos
fiéis. Tudo tem a sua utilidade no seu tempo, mas depois se torna
inútil e até mesmo prejudicial. No próprio meio espírita essa tendência a
conservar posições do passado ainda subsiste, particularmente no plano
institucional, onde os postos de comando reacendem no espírito a chama de
velhas e desvairadas ambições. O homem, espírito encarnado – envolto
na neblina da carne, como ensina Emmanuel – está
sempre e inevitavelmente propenso a reincidir nos seus erros do passado. A
volta às condições da vida material coloca-o de novo perante a possibilidade de
desfrutar as oportunidades que
lhe foram úteis ou agradáveis no passado. As ilusões renascem no
seu coração humano. As perspectivas espirituais perdem-se no nevoeiro.
Nas religiões formalistas esse apelo do passado adquire muito mais força.
Temos a cada instante, a cada minuto, diariamente na
nossa vida a experiência de Deus. Porque a própria vida é,
em si mesma, essa experiência. Desde o momento em que nascemos até ao instante
final da nossa existência estamos em relação permanente com Deus, não o
Deus particular desta ou daquela igreja, mas o Deus em espírito e matéria que
se manifesta numa haste de relva, na beleza gratuita de uma flor, no brilho de
uma estrela, num perfume, numa voz, numa nota musical isolada, num aperto de
mão e principalmente numa ideia,
num sentimento, numa aspiração que brota do anseio de transcendência da nossa
alma. O que nos falta é estar mais atentos, mais despertos para a
percepção consciente desses múltiplos e infindáveis milagres da vida
quotidiana. O homem sem Deus é somente aquele que se nega a aceitar a presença
de Deus em si e à sua volta. Para esse homem, a meditação é um ensaio no campo
da frustração, um mergulho no mundo opaco do sem-sentido.
/…
José Herculano Pires, Agonia das Religiões / Capítulo
4 – Experiência no Tempo, 5º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo
do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel).
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