Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quinta-feira, 27 de março de 2014

Da sombra do dogma à luz da razão ~


Natureza da Revelação Espírita (VI)

   Se Cristo não conseguiu desenvolver os seus ensinamentos de forma completa, foi porque faltavam aos homens conhecimentos que estes não podiam adquirir antes de tempo e sem os quais não o podiam compreender; havia coisas que teriam parecido um contra-senso na fase de conhecimentos de então. Completar os seus ensinamentos deve-se portanto entender no sentido de explicar e de desenvolver, muito mais que no de lhes acrescentar verdades novas, pois neles tudo se encontra em germe; simplesmente, faltava a chave para captar o sentido das palavras.

   Mas quem se atreve a interpretar as escrituras sagradas? Quem tem esse direito? Quem possui a sabedoria, a não ser os teólogos?

   Quem se atreve? Primeiro a ciência, que não pede licença a ninguém para dar a conhecer as leis da natureza e salta a pés juntos para cima dos erros e dos preconceitos. Quem tem esse direito? Neste século de emancipação intelectual e de liberdade de consciência, o direito de exame pertence a toda a gente e as Escrituras já não são a arca sagrada na qual ninguém ousava tocar nem com um dedo, por correr o risco de ficar fulminado. Quanto à sabedoria especial necessária, sem contestar a dos teólogos e, por muito esclarecidos que fossem os da Idade Média, em particular os padres da igreja, não o eram no entanto o suficiente para não condenarem como heresia o movimento da Terra e a crença nos antípodas; e, sem ir tão longe, os dos nossos dias não lançaram um anátema sobre os períodos de formação da Terra?

   Os homens só conseguiram explicar as Escrituras com a ajuda do que sabiam, das noções falsas ou incompletas que tinham sobre as leis da natureza mais tarde reveladas pela ciência; eis porque razão os próprios teólogos puderam, de muito boa-fé, equivocar-se quanto ao sentido de certas palavras e de certos factos dos Evangelhos. Querendo a qualquer custo encontrar neles a confirmação de uma ideia preconcebida, giravam sempre no mesmo círculo, sem abandonarem o seu ponto de vista, de tal maneira que só viam ali o que queriam ver. Por muito sábios que fossem, não podiam perceber as causas dependentes de leis que não conheciam.

   Mas quem será juiz das interpretações diversas e por vezes contraditórias feitas fora da teologia? O futuro, a lógica e o bom senso. Os homens, cada vez mais esclarecidos à medida que novos factos e novas leis se vão revelando, saberão separar as teorias utópicas da realidade; ora, a ciência dá a conhecer certas leis; o Espiritismo dá a conhecer outrasumas e outras são indispensáveis à inteligência dos textos sagrados de todas as religiões, desde Confúcio e Buda até ao cristianismo. Quanto à teologia, não poderia judiciosamente alegar que as contradições da ciência constituem excepções, quando nem sempre está de acordo consigo mesma.

   O ESPIRITISMO, tomando como ponto de partida as próprias palavras de Cristo, assim como Cristo foi buscar bases a Moisés, é consequência directa da doutrina.

   À ideia vaga da vida futura, acrescenta a revelação da existência do mundo invisível que nos rodeia e povoa o espaço e, com isso, dá precisão à crença; dá-lhe um corpo, uma consistência, uma realidade no pensamento.

   Define os elos que unem a alma e o corpo e levanta o véu que escondia aos homens os mistérios do nascimento e da morte.

   Pelo Espiritismo o homem sabe de onde vem, para onde vai, por que está na Terra e por que nela sofre temporariamente, vendo em tudo a justiça de Deus.

   Sabe que a alma evolui constantemente através de uma série de existências sucessivas, até ter atingido o grau de perfeição que a pode aproximar de Deus.

   Sabe que todas as almas, tendo um mesmo ponto de partida, são criadas iguais, com uma mesma aptidão para evoluir por virtude do seu livre-arbítrio; que todas são da mesma essência e que entre elas só há a diferença da evolução conseguida; que todas têm o mesmo destino e atingirão o mesmo fim, mais ou menos prontamente consoante o seu trabalho e a sua boa-vontade.

   Sabe que não existem criaturas deserdadas, nem umas que sejam mais favorecidas do que outras; que Deus não criou privilegiados, estando dispensados do trabalho imposto a outros para poderem evoluir; que não existem seres perpetuamente votados ao mal e ao sofrimento; que os designados com o nome de demónios são Espíritos ainda atrasados e imperfeitos, que praticam o mal na qualidade de Espíritos como o faziam na situação de homens, mas que evoluirão e melhorarão; que os anjos ou Espíritos puros não são entes à parte na criação, mas Espíritos que atingiram o seu objectivo depois de terem seguido as etapas do progresso; que assim não existem criações múltiplas, nem diferentes categorias entre seres inteligentes, mas que toda a Criação resulta da grande unidade que rege o Universo e que todos os seres gravitam na direcção de um objectivo comum que é a perfeição, sem que uns sejam favorecidos à custa dos outros, sendo todos filhos das suas obras.

/…


ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo I NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA números de 28 a 30, 8º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de ilustração: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

terça-feira, 18 de março de 2014

Inquietações Primaveris ~


O Acto Educativo |

Por tudo o que vimos até agora, estamos numa fase histórica em que o mistério da morte foi ampla e seguramente resolvido. Não é mais possível a menor dúvida no tocante à sobrevivência de todos os seres vivos ao fenómeno universal da morte. Nada se acaba; a duração das coisas e dos seres é infinita. Esse é um aspecto da realidade que esteve sempre exposto à observação humana, provando-se incessantemente por si mesmo, desde as selvas até às mais elevadas civilizações. Essas provas chegaram no nosso tempo a um ponto decisivo, graças ao desenvolvimento das Ciências, ao esclarecimento cultural que afastou das mentes mais desenvolvidas e capacitadas as dúvidas criadas pelas superstições e pelo comércio religioso da morte em todo o mundo. Apesar disso, a posição da Ciência a respeito da questão permaneceu invariável nos últimos séculos, particularmente nos séculos XVIII e XIX. O entusiasmo pelas conquistas técnicas, pelas vitórias na luta contra a dogmática da Igreja e a esperança ilusória de uma rápida e fácil explicação do mundo pelas teorias mecanicistas, geraram o materialismo simplório e alegre que Marx e Engels chamariam de utópico, reservando para si mesmos a classificação pomposa e temerária de materialismo científico.

Nessa mesma época surgia a Ciência Espírita e abria-se para o mundo uma visão mais séria e grave da realidade total do Universo. Como acentuou Conan Doyle, às invasões inconsequentes e dispersas dos espíritos no nosso mundo terreno, sucedia uma invasão organizada, dirigida por Espíritos Superiores, com a finalidade clara e definida de revelar a verdade cristã, até então trapaceada, na sua pureza essencial. Só então a morte começou a mostrar aos homens a sua face oculta, revelando ao mesmo tempo o sentido verdadeiro da vida e, como acentuou Léon Denis, a sua pesada responsabilidade. Às práticas misteriosas e aterradoras da preparação dos homens para a morte sucediam as primeiras tentativas, pelas mãos de Denizard Rivail, discípulo e continuador de Pestalozzi, no desenvolvimento de uma educação para a morte.

Toda a longa fase anterior, envolta em superstições mágicas e misticismo alienante, dos tempos primitivos até à primeira metade do século XIX, foi apenas de preparação dramática, sombria e trágica da criatura humana para o mistério insondável em que toda a Humanidade seria fatalmente tragada. É incrível que as igrejas cristãs se esforcem tanto, até hoje, para manter essa situação desesperante no mundo. Ainda há pouco o Papa Paulo VI, mostrando-se preocupado com a sua morte próxima, declarou que nada fala a Igreja sobre a morte, a não ser que sobrevivemos a ela numa forma de vida misteriosa. De mistério em mistério, como se vê, os problemas fundamentais da vida e da morte foram escapando das mãos dos clérigos. Hoje esses assuntos passaram para o âmbito da Ciência. Mas é à Educação e à Pedagogia que, em última instância, cabe hoje a obrigação de elaborar os programas de orientação educacional de todos nós para o acto de morrer. Na didáctica especializada dessa nova disciplina ressalta, como ponto central o novo campo educacional, o acto educativo. Nele se concentra, como no núcleo do átomo, todo o poder organizador e orientador do processo a se desenvolver. Para René Hubert e Kerchensteiner, o acto educativo é um acto de amor. Nas pesquisas sobre a Educação primitiva, entre os selvagens, evidenciou-se que a natureza da Educação é essencialmente afectiva, amorosa. Isso nos mostra que a Educação para a Morte não pode ser coercitiva, autoritária, constrangedora e muito menos aterrorizadora. As religiões da morte, portanto, se negaram a si mesmas ao optar pelo terrorismo das maldições e das ameaças para educar os homens no difícil ofício de morrer e de suportar a morte à sua volta. Simone de Beauvoir observou, em contacto com materialistas ideologicamente convictos, que morrer é uma necessidade natural do homem, que os materialistas temem, principalmente, a solidão da morte. Nada sabem, como os religiosos, sobre os segredos da morte. Deve ser por isso que sempre morrem de olhos abertos, deixando aos vivos o trabalho de fechá-los. Se os materialistas pudessem ser filósofos, não se importariam com a solidão da morte, pois se nela tudo se acaba, não pode haver solidão. E é também por isso que não pode haver uma Filosofia materialista. A essência da Filosofia é a liberdade e o seu objecto é ela mesma. A Filosofia é a captação livre da realidade que nos dá uma livre concepção do mundo. O materialista não é livre, pois está preso à ideia fixa de que tudo é matéria. Foi essa posição incomoda que levou e afastou Marx da escola hegeliana e o levou à correcção errada da dialéctica certa de Hegel, virando de cabeça para baixo o que estava evidentemente de pé. Por isso, Marx e Hegel, o profeta bíblico extemporâneo e o seu anjo anunciador, transformaram a Filosofia num jogo de xadrez cujos resultados estão marcados desde o início da partida. A concepção do mundo do Marxismo é um tabuleiro com peças fixas e invariáveis e jogadas pré-fabricadas. Daí o impasse marxista na Filosofia, rodando sempre num círculo vicioso, um labirinto em que se perdeu o fio de Ariadne. A própria Revolução Russa, que devia modificar o mundo, acabou produzindo o impasse do constante retorno às fórmulas capitalistas. Para livrar o homem da exploração capitalista, a URSS teve de capitalizar-se e recorrer, desde os primeiros momentos, à exploração horripilante do trabalho forçado. Não há uma porta de saída para a concepção solipsista do mundo no Marxismo, a não ser a do Anarquismo, que não pode ser usada porque esvairia em breve as bases filosóficas artificiais. Enquanto não devolver o Espírito à sua concepção do mundo, o Marxismo não levantará voo. Ficará rodando no chão por falta de uma asa, como explicava o Prof. Bressane de Lima nas suas palestras espíritas. O mesmo acontece com o Capitalismo, que tem as suas asas presas na torquês histórica formada pelas pinças agressivas e impiedosas da economia burguesa e das religiões da morte, com os seus aparatos e as suas encenações cerimoniais. Não é por acaso que estamos num mundo tão cheio de conflitos e angústias. Pagamos caro o mundo fantasioso que orgulhosamente construímos sobre o mundo natural da Terra. Readaptar esse mundo humano à realidade planetária é tarefa urgente, que cabe a todos e a cada um de nós.

O acto educativo, no processo da educação para a morte, revela-se ainda mais profundo e significativo do que na educação comum. Começa pelo chamado de uma consciência esclarecida e madura às consciências imaturas, para se elevarem acima dos conceitos erróneos a que se apegam. Temos de revelar e justificar para essas consciências, com dados científicos actuais, o mecanismo individual e colectivo da morte. Urge convencer o homem de que a morte não é um mal, mas um bem da natureza e uma necessidade para o homem. Temos de mostrar que o morto não é um cadáver, mas um ser imortal que, ao passar pela vida e a morte enriqueceu-se de novas experiências, adquiriu mais saber, desenvolveu as suas faculdades ou potencialidades divinas. Temos de esclarecer o sentido da palavra até hoje empregada de maneira alienante, esclarecendo que a condição divina do homem é simplesmente o produto de uma existência de trabalho, amor e abnegação, em que a criatura supera, nas vias da transcendência, o condicionamento animal do corpo material e a ilusão sensorial que o imante ao viver animal. Temos de quebrar a sistemática habitual das escolas e das igrejas, que se apegam ao pragmatismo, às subfilosofias do viver por viver, desvendando o verdadeiro significado do prazer e do amor, como elementos de sublimação da criatura humana nas funções vitais e genésicas da espécie. O mandamento do amor ao próximo deve ser colocado em plano racional, livre das ameaças opressivas e do emaranhado das conveniências imediatistas. Mostrar que o Amor a Deus, a mais elevada forma de amor existente na Terra, não é feito de medo e terror, mas de compreensão; não se dirige a um mito, mas a uma Consciência que nos impulsiona na prática da justiça e da bondade, sem discriminações de espécie alguma. Temos de esclarecer que a morte está em nós mesmos e não fora de nós, que convive com a vida em nós. Como ensinava Buda, “a morte visita-nos 75 vezes em cada uma das nossas respirações”. Temos de mostrar que, na verdade, morrer é simplesmente deixar o condicionamento animal e passar à vida espiritual.

A fase mais difícil do acto educativo é a que dá a compreensão do desapego aos bens passageiros do mundo, sem desprezá-los, como forma de preparação para as actividades de abnegação amorosa que devemos exercer depois da morte. Mas não devemos exagerar nas promessas de além-túmulo, pois não se promete o que não se pode dar, mas ensinar que só se levará, na mudança da morte, a bagagem das conquistas que se realizar aqui, na vida terrena. Não seremos premiados, mas pagos na outra vida, justamente pagos por tudo o que demos gratuitamente nesta vida. Esse ensino, acompanhado de exemplos vivos da nossa própria vivência, mostrará aos educandos que não usamos palavras de piedade, mas os convidamos a caminhar ao nosso lado, fazendo o que fazemos. Devemos substituir as ideias de recompensa pelas de consequência. Mas se fizermos tudo isso sem amor, pensando apenas em nós mesmos, os nossos actos não terão repercussão, pois nada mais fizemos do que cumprir o nosso dever, no contrato social e universal da convivência humana. Ninguém faz sem ter aprendido, mas ninguém aprende sem fazer. Assim, a reciprocidade do nosso fazer nos liga profundamente aos outros nas malhas da lei de acção e reacção, mostrando-nos de maneira objectiva e subjectiva que somos todos necessários uns aos outros. A convivência humana é entretecida de interesses, desconfianças, despeitos e aversões, sobre um pano de fundo em que o amor, a simpatia e o respeito oferecem precária base de sustentação. Grande parte dessa tessitura de malquerenças recíprocas provêm de motivos ocultos, provenientes de invejas e ciúmes. Porque uns são mais dotados do que outros e a vaidade humana não permite aos inferiorizados perdoar os mais agraciados pela natureza ou pela fortuna. O problema da reencarnação explica essas diferenças, muitas vezes chocantes, e alenta os infelizes com esperanças racionais, mostrando-lhes que cada um de nós é o responsável único pelo seu condicionamento individual. Os homens aprendem a tolerar as suas derrotas hoje para alcançar vitórias futuras, e nesse aprendizado já se superam a si mesmos, modificando o teor inferior das relações sociais. As pesquisas científicas actuais sobre a reencarnação fazem parte necessária da educação para a morte, que no caso perde a maioria de seus aspectos negativos e se transforma em promessa de recompensa possível. Ao mesmo tempo, substituindo as ameaças religiosas absurdas pelo socorro das boas acções na vida de prova, que é sempre passageira, predispõe às criaturas condições espirituais na vida presente. As provas científicas do poder do pensamento, que hoje se revela como forma de comunicação permanente na sociedade humana, mostra-nos a conveniência da conformação e da alegria íntima nas relações sociais.

O acto educativo, nessa extensão e nessa profundidade, torna-se o mais poderoso instrumento de transformação do homem, levando-o a descobrir em si mesmo as mais poderosas fontes de energia de que podemos dispor no mundo, e basta isso para nos dar a Nova Consciência que apagará em nós todos o fermento velho de que falava Jesus aos fariseus, os resíduos animais da nossa condição humana.

Não é com sermões tecidos de palavras mansas e palavrório emotivo, nem com piedade fingida, bênçãos formais do profissionalismo religioso, promessas de um céu de delícias ao lado de ameaças de condenações eternas que podemos despertar os homens para uma vida mais elevada. Temos de colocar os problemas humanos em termos racionais, sem contradições amedrontadoras. O homem reage, consciente ou inconscientemente, a todas as ameaças e condenações e a todas as injustiças da sociedade e das potências divinas. Até hoje, fomos tratados como animais em fase de domesticação e reagimos intensificando a violência e a revolta por toda a Terra. De agora em diante precisamos pensar seriamente na educação positiva do homem na vida, com vistas à sua educação para a morte. O instinto de posse e as ambições do poder desencadearam na Terra a onda de violências que hoje nos assombra. Mas o homem é racional e pode superar essa situação desastrosa ante a revelação das molas secretas do amor e da bondade. Na sua consciência está a marca divina do Criador, na ideia de Deus que Descartes descobriu nas profundezas de si mesmo. Num mundo e numa sociedade em que os estímulos são, na maioria negativos, os exemplos deploráveis, as leis injustas, as religiões mentirosas entregues ao tráfico da simonia, a moral hipócrita e assim por diante, em que os bons se afundam na miséria para que os maus vivam à tripa forra, não há condições para o desenvolvimento das virtudes do espírito, mas somente para os vícios da carne.

O acto educativo, na Educação para a Morte, constitui-se num processo complexo que deve abranger todas as faculdades humanas, para elevá-las ao plano das funções superiores do espírito. Começando no indivíduo, primeira brecha pela qual se pode injectar a ideia nova em relação constante com a morte, esse acto de amor se estende às comunidades, contagiando o mundo. É o que Jesus comparou à acção do fermento numa medida de farinha, para levedá-la. É também a pitada de sal que dá gosto à insipidez do mundo, através daqueles que se disponham a salgar-se a si mesmos para transmitir aos outros o sal estimulador. Todas essas coisas não são novas, são velhas, mas na verdade não envelhecem. Há dois mil anos Jesus de Nazaré, carpinteiro e filho de carpinteiro, ensinou ao mundo os princípios da Educação para a Morte e enriqueceu os seus ensinos com o seu exemplo pessoal. Exemplificou a própria imortalidade, ressuscitando no seu corpo espiritual – o corpo bioplásmico que os materialistas descobriram e se apressaram a esconder da Humanidade. Mas a Educação para a Morte foi logo transformada nas Religiões da Morte pelos mercadores dos templos e o mundo retornou às trevas, apegado aos mitos e enriquecendo o panteão mitológico com a imagem do carpinteiro crucificado por judeus e romanos em conluio. Cabe-nos agora, na antevéspera científica e tecnológica da Era Cósmica, dispor-nos a lutar pela reimplantação da Educação para a Morte, que ensinará aos homens a bem viver para bem morrer, ou seja, morrer conscientes de que não morrem, pois a lei do Cosmos não é a morte, mas a vida sem fim, indestrutível na realidade infinita da Criação.

A Hora da Magia esgotou-se nas selvas, nas tentativas ingénuas dos homens primitivos, de descobrir e controlar as leis naturais, dominando a natureza por meios ilusórios e grotescos. A Hora das Religiões escoou-se nas ampulhetas de areia ou nas clepsidras gotejantes. A Hora da Ciência esvaiu-se nas minúcias da técnica. Mas surgiu afinal a Hora da Verdade, em que toda a realidade se transforma em estruturas invisíveis, na poeira atómica e sub-atómica das inversões da antimatéria. É a Hora Esperada da Ressurreição do Espírito.

/…



José Herculano Pires – Educação para a Morte, O Acto Educativo, 16º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

quarta-feira, 12 de março de 2014

O Mundo Invisível e a Guerra ~


VIII

Acção dos Espíritos sobre os Actuais Aconteci-mentos

|Janeiro de 1917|

   A guerra vem representando o seu terrível drama há dois longos anos e a França padeceu cruelmente. Todo o peso dos seus erros – leviandade, imprudência, cepticismo e o desenfreado amor material – recaiu sobre ela.

   Apesar disso, a França não podia morrer, e no correr das hostilidades um valoroso espírito nos afirmava: “Os orgulhosos alemães, traidores e criminosos, não dominarão o mundo.”

   Ao lado de seus erros a França apresentou, muitas vezes, qualidades generosas e, na suprema luta, nunca se rebaixou aos odiosos recursos usados pelos alemães, que desprezaram todas as leis divinas e humanas.

   O procedimento da França, durante essa guerra terrível, causou espanto e admiração à Europa e ao mundo.

   Antes que esses factos ocorressem ninguém podia prever tal despertamento das heróicas virtudes de nossa raça; pelo contrário, tudo parecia demonstrar uma decadência do carácter nacional.

   A questão Dreyfus (i) deixara marcas persistentes e profundas; o pacifismo, o antimilitarismo e as teorias internacionalistas haviam trabalhado e minado os espíritos. Já não se acreditava na possibilidade de uma guerra e procurava-se diminuir, o mais possível, as obrigações e os créditos militares.

   A lei de três anos foi motivo de longas e difíceis discussões e, mal tendo sido votada, já desejavam atenuar os seus efeitos.

   Certos oficiais inferiores me afirmavam que, no lugar de combater, devolveriam o sabre e o revólver.

   Na minha presença, os oficiais de um regimento do sul se queixavam da falta de patriotismo dos seus soldados, tentando, por meio de conferências sobre a bandeira e os grandes exemplos da História, despertar a fibra patriótica, mas como resultado só conseguiam maliciosa indiferença.

   Numa canção muito divulgada, chegou-se ao ponto de dizer que as balas dos nossos soldados seriam para os seus generais.

   A Confederação do Trabalho e os sindicatos dos ferroviários respondiam com a ameaça de greve às ordens de mobilização. Nesse ínterim a guerra rebenta e se opera rapidamente nos ânimos uma completa mudança: a mobilização se faz com presteza, gravidade e precisão.

   Todos partem conscientes das grandes responsabilidades que irão desempenhar, resolutos até ao sacrifício e até à morte, abandonando, sem hesitação, o lar, a mulher e os filhos que, talvez, jamais tornarão a ver.

   Durante dois longos anos, com uma força de vontade incapaz de enfraquecer, o soldado francês sustentará o combate do mais valente exército que o mundo viu. Consciente do seu esforço e certo dos seus recursos, sabe que está servindo à mais nobre das causas; a da pátria e a da liberdade.

   A França apresentou-se ao mundo com o seu verdadeiro carácter. Todos a julgavam debilitada, enfraquecida e decadente. Alguns atreviam-se a afirmar que o seu papel histórico havia terminado, porém, no transcurso dessa gigantesca luta, ela não conheceu uma única hora de desalento nem de desesperança.

   As mais duras provações, as maiores dificuldades encontraram a França mais corajosa, mais resoluta em continuar a sua imensa tarefa até ao triunfo do direito e da justiça.

   Durante os combates diurnos e nocturnos, nos quais se frustravam os minuciosos cálculos e as infames maquinações da estratégia alemã, uma espécie de frenesi místico se apoderava do soldado francês.

   Sob a crepitação das metralhadoras, debaixo da tempestade de ferro e de fogo, nas labaredas e nas ondas de gás asfixiante, o nosso soldado se mostrou sempre valoroso, ardente, disposto a todos os grandes feitos, a todos os esforços sublimes!

   A França representa a força moral de nossa coligação nesse terrível drama, o maior que a humanidade já conheceu.

   Foi a vitória no Marne que conteve a avalanche alemã e por muito tempo a imobilizou, dando assim aos aliados o tempo indispensável para preencher as lacunas da sua organização, remediando a sua imprudência e, num esforço comum, reagir contra o mais terrível de todos os dispositivos militares.

   Foi a França que, diante do mundo aterrado pela brutalidade alemã, defendeu, com os seus aliados, contra um adversário covarde, criminoso e desleal, a causa da justiça, da verdade, da liberdade dos povos e o direito que todo o homem tem de viver e morrer livre. Pode afirmar-se que ela salvou a Europa do mais opressor dos despotismos e, assim, se impôs à estima e ao respeito da história, oferecendo o seu sangue e os seus recursos pelo progresso e salvação da humanidade.

   Mudança tão completa e transformação tão radical só se podem explicar pelo despertamento das fortes qualidades de nossa raça, pelas lembranças evocadas e pelos heróicos exemplos que as gerações pretéritas nos deixaram como herança? É certo que tudo isso existe, porém há algo mais ainda: queremos referir-nos à imensa ajuda trazida pelas legiões invisíveis.

   Graças às orientações dos nossos guias, desde o início da guerra pudemos acompanhar, em todas as suas etapas, a acção dos poderes ocultos que lutam connosco pela salvação da França e pelos direitos da eterna justiça.

   Acima de nossas linhas, na hora dos combates, paira o incontável exército dos mortos, todas as almas dos heróis, notáveis ou obscuros, que morreram defendendo a pátria.

   Num voo glorioso, como de grandes aves, eles se equilibram sobre os nossos defensores, alentando-os na luta ardente e derramando sobre eles, com energia, as forças psíquicas e os fluidos adquiridos pelos séculos.

   O exército invisível também tem comandantes ilustres, pois os nossos médiuns videntes reconhecem Vercingétorix, Joana d’Arc, Henrique IV, Napoleão, os grandes generais da Revolução e do Império.

   Essa visão impressiona profundamente os médiuns. Cada um dos nossos comandantes, durante as operações, é secundado por um espírito poderoso que o inspira e guia na acção.

   Às vezes, todos esses espíritos se congregam e deliberam, sendo as suas decisões transmitidas pela intuição aos generais comandantes que, quase sempre, as obedecem pensando que realizam os seus planos pessoais.

   Nos momentos trágicos, o soldado francês tinha consciência desse socorro do Invisível. Sentia que uma força superior o amparava e o ajudava na grandeza da sua missão, garantindo-lhe que a sorte do seu país estava nas suas mãos.

   Aos esforços dos soldados em acção somavam-se os dos colegas que morreram, porque não dormem debaixo da terra os espíritos daqueles que, no correr de 20 meses, tombaram pela metralha alemã; tornamos a encontrá-los nessa multidão invisível, cujas ondas imensas se entrechocam com o inimigo.

/…
(i) Alfred Dreyfus (1859-1935): militar francês condenado injustamente, por espionagem, a trabalhos forçados. O caso, que comovia toda a França, despertou o interesse do escritor Émile Zola que considerava Dreyfus inocente e fez uma grande campanha em sua defesa, o que lhe valeu ser processado. Dreyfus, 12 anos após a sua condenação, depois de ser indultado e ter a sua sentença anulada, voltou ao exército no cargo de comandante. (N.R.)




LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, VIII / Acção dos Espíritos sobre os Actuais Acontecimentos / Janeiro de 1917 (1 de 2) 22º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

segunda-feira, 3 de março de 2014

Nas garras do pensamento crítico ~


Da especulação à ex-perimentação ~

   Mas Allan Kardec não fala “por ouvir dizer”, ele jamais foi um homem levado pela imaginação: foi um observador rigoroso. E é através da mais pura dialéctica que nos explica a razão dessas vagas aspirações.

   “Se a questão do homem espiritual permaneceu até aos nossos dias em forma de teoria, é porque nos faltaram os meios directos de observação, para constatar o estado do mundo material, e o campo ficou aberto às concepções do espírito humano. Enquanto o homem não conheceu as leis que regem a matéria e não pôde aplicar o método experimental, errou de sistema em sistema, no tocante ao mecanismo do Universo e à formação da Terra. Deu-se na ordem moral o mesmo que na ordem física; para determinar as ideias faltou-nos o elemento essencial: o conhecimento das leis do princípio espiritual. Esse conhecimento estava reservado à nossa época, como o das leis da matéria foi obra dos dois últimos séculos. Até ao presente, o estudo do princípio espiritual, compreendido na Metafísica, tem sido puramente especulativo e teórico; no Espiritismo é inteiramente experimental.”

   Chegados a este ponto, defrontamo-nos com o aspecto mais crítico da hora presente. De um lado, temos em marcha, com indiscutível eficácia, a aplicação do método dialéctico à história, à política, à sociologia etc., como a mais alta conquista do espírito no terreno prático e objectivo. Do outro, o abuso, que perdura, do método empírico, nas questões espirituais, com as consequentes explorações e deformações da realidade. E no meio, lutando entre as duas correntes, ambas poderosas, o Espiritismo, que não pode trair a realidade espiritual, para endossar a aplicação materialista da dialéctica, e não pode trair a sua própria natureza dialéctica, para apoiar o empirismo da prática espiritual. O resultado, infelizmente, é o que vemos: ele também, o Espiritismo, deformando-se, no aspecto sectário e místico de uma nova religião, ou na estrutura fria e materialista da simples observação metapsíquica.

   Todo o esforço do homem moderno tem de convergir para a superação dessa tremenda crise do conhecimento. E a superação somente se fará possível com a compreensão dos verdadeiros princípios do Espiritismo como doutrina dialéctica, por isso mesmo capaz de aplicar à história, à política, à sociologia, à economia, à arte, os seus métodos de análise, de observação, de pesquisa, sem se perder na mística de confessionário, nem se confundir com o tumulto dos comícios subversivos. Além do misoneísmo das religiões, do reformismo do socialismo político-liberal e da violência do materialismo-dialéctico, o Espiritismo indicará ao homem o caminho seguro das transformações substanciais da vida social, ou perderá a sua razão de ser. Como esta última hipótese não nos parece possível, o mais certo é que a história nos esteja empurrando, segundo observa Humberto Mariottiapesar da incapacidade geral e desoladora dos espíritas de hoje, na direcção do Espiritismo Dialéctico, verdadeira síntese do conhecimento, com que nos acena Allan Kardec.

   Humberto Mariotti afirma que “a realidade visível” da acção espírita no mundo se traduz no cultural, e “mais do que em qualquer outra parte, no bibliográfico”, faltando-lhe, entretanto, entrosar-se “no processo histórico da humanidade”. Esse entrosamento faz-se pela penetração nas massas através do seu aspecto “ingénuo”, de seita religiosa. Mas, se não houver, neste momento, a acção da alavanca da filosofia espírita, salvando o Espiritismo da “ingenuidade popular” e transformando-o, não mais em simples crença, mas em conhecimento, o processo natural desse entrosamento pode ser desvirtuado, pelo trabalho de sapa das forças contrárias.

   Aos espíritas, portanto, cabe o dever indeclinável de lutar para que esse entrosamento se realize. A bibliografia espírita – “quiçá insuperável pela de qualquer outro movimento filosófico” – deve descer das estantes e penetrar nas massas, não para se submeter à “ingenuidade” destas, mas para orientá-las no sentido da sua libertação moral, espiritual, intelectual e social. Para tanto, é necessário um novo trabalho de elaboração, de aglutinação, de sistematização do conhecimento espírita, na forma de compêndios culturais e de manuais populares.

   O aspecto religioso ou “ingénuo” do Espiritismo salvou-o da indiferença e da hostilidade conjugada de todas as forças dominantes dos séculos XIX e XX, escondendo-o no coração do povo, onde ele viveu e progrediu em silêncio, e permitindo, ao mesmo tempo, o trabalho cultural dos intelectuais espíritas. Temos hoje uma população espírita no mundo, e temos uma cultura espírita. Mas não temos a sociedade nem a civilização espíritas, como observa Mariotti, e nem mesmo a necessária e prévia ligação entre as massas espíritas e a cultura espírita, para a criação daquelas. Estamos, porém, no caminho dialéctico do desenvolvimento de uma nova civilização, e se compreendermos isso, lutando para alcançar o futuro, chegaremos lá.

   Humberto Mariotti fez uma concessão de boa-vontade ao “pensar naturalista” quando deu ao seu livro o título de Dialéctica e Metapsíquica. Porque o título verdadeiro do volume seria o de Espiritismo e Dialéctica. Evitou assim assustar a lebre na beira da estrada. Não se iludam, porém, os espíritas, mormente os espíritas brasileiros, tão afeitos a deixar de lado o que foge ao aspecto religioso da doutrina. As páginas de Mariotti não se referem apenas a uma controvérsia filosófica entre as duas doutrinas que lhe formam o título eventual. Elas são, pelo contrário, um brado de alerta e um convite sério à meditação e ao estudo. Principalmente ao estudo da natureza dialéctica do Espiritismo e das possibilidades imediatas da sua aplicação ao mundo – para transformá-lo.

/…



José Herculano Pires, Espiritismo Dialéctico, Da especulação à experimentação, 12º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Vi o caçador levantar o arco-íris, pintura em acrílico de Costa Brites)