OBSESSÃO VINGADORA E PERTINAZ ~
O homem é os seus actos. A soma das acções de cada ser
constitui o carácter, qualidade inalienável do indivíduo. Legatário doa
próprios feitos, o espírito evolui mediante as actividades empreendidas, ressarcindo
em cada avatar os compromissos negativos granjeados na vida passada, sob os
estímulos das realizações enobrecidas de que se tenha feito autor. Todos
conduzimos a soma das nossas qualidades, que formam o património que nos
capacita a avançar ou estagnar, aprendendo, porém, sempre e incessantemente, de
modo a crescer na direcção da Vida. O destino, portanto, estamos a tracejá-lo
cada momento, mediante as atitudes assumidas em cada etapa vencida, em cada
jornada a vencer. Fiamos e desfiamos a rede do provir, estabelecendo as medidas
necessárias à felicidade ou à desdita de que somos responsáveis, autores do
nosso sofrer ou alegria. A esse emaranhado, que faculta a ascese ao planalto da
alegria ou a descida ao vale dos sofrimentos, denominados carma, ou “lei de
causa e efeito”, perante cujas directrizes nos fazemos joguetes dos próprios
desejos. Deus, a Suprema Governação do Universo, estabeleceu leis de perfeita e
soberana harmonia, que o homem não pode desconsiderar levianamente. Toda a
acção que lhe é dada. Cada vez que desrespeitamos, por preguiça ou rebeldia, o
Estatuto Sagrado da Vida sofremos, naturalmente, a desarmonia de que nos
fizemos promotores. É Justiça e é também Amor. A todos são concedidos os
tesouros do discernimento, e a responsabilidade é valorizada, tendo-se em vista
o grau de entendimento de cada criatura. Mais lucidez, maior soma de
responsabilidade. Por isso, o Senhor Jesus foi categórico: “Mais se dará àquele
que mais haja dado.” Ante a grandiosidade da vida, que nos escapa no actual
estado de inteligência, todos somos iguais, crescendo pelo próprio esforço, a
ingentes conquistas, sob a excelsa misericórdia do Nosso Pai. Assim, o amor é a
fonte inexaurível, à disposição de quantos desejam felicidade e paz. O ódio, do
mesmo modo, é reacção do primitivismo animal, instinto em trânsito para a
inteligência, que ainda não pôde superar as expressões dos começos passados.
Portanto, o homem é o que pensa, o que faz e deseja.
Ninguém consegue evadir-se do país da consciência. Ali não
há portas escancaradas para a fuga permanente. A lucidez obliterada pelo ópio
da ilusão, ou anestesiada pelo tóxico do prazer, um dia se aclara, desperta
para o óbvio da realidade, e o indivíduo acorda para as amargas meditações em
torno do já feito, do deixado de fazer e do que poderia ter sido realizado.
Mágico desenhador, quando a razão desperta, apresenta nas telas da mente o
painel vivido das acções, e como num cinemascópio tridimensional movimentam-se
todas as acções, em carácter duplo: como fizemos e como poderíamos ou
deveríamos ter produzido. O que decorre desse encontro consigo mesmo, para o
espírito que se redescobre em falta, constitui o travo ácido do arrependimento,
que, alongado, é inoperante e negativo, e do remorso, que, demorado, é verdugo
implacável, mas que não resolve a palpitante questão. Somente a
consciencialização da responsabilidade e do legítimo desejo de reparar,
empenhando todo o esforço, sob o preço da renúncia e da abnegação, constitui
amenidade na canícula da dor superlativa que domina o ultrajante, ora ultrajado
pelo despautério em que se comprazia. O gozo furtivo e a glória indébita, a
ambição desmesurada e a sovinice soez, a inveja criminosa e a prepotência
venal, a incúria de qualquer matiz e a traição sob qualquer ângulo, o orgulho
vão e a soberba nula, a luxúria absurda e o despotismo de toda espécie, a
indiferença à dor e o egoísmo nos seus disfarces, por mais se encontrem velados
na astúcia ou na habilidade da dissimulação, diluem-se ante a luz da
consciência desperta, produzindo alucinação nos seus famanazes, que
padecem, então, séculos a fio nos sorvedores da reparação, ou nas situações
estanque da autopunição em que se depuram, para reencetar o caminho,
atravancado de escolhos que constituem barreiras a superar e testes para
avaliar o esforço despendido na recomposição das leis divinas antes
desrespeitadas. “A cada um segundo as suas obras” – afirmou Jesus, reflectindo
a Justiça e o Amor de Deus.
Na aferição dos valores, a renúncia ante o gozo não fruído,
a abnegação face ao sofrimento, tendo em vista a felicidade de outrem, o
sacrifício ignorado, praticado na intimidade do silêncio, com o objectivo de
ajudar o próximo, o perdão indistinto, a bondade generosa e ampla, o amor
dilatado até mesmo aos inimigos, as lâmpadas acesas da caridade, toda expressão
de virtude incendeia o céu interior do homem e fá-lo dulcificado pela paz,
multiplicando nele as bênçãos do júbilo, que pode continuar a esparzir como
semente de felicidade pela senda por onde segue. Por isso, o Mestre Divino
acentuou que são bem-aventurados os padecentes, os sacrificados, os pacíficos,
os que amam, deles sendo o Reino dos Céus, desde a Terra, na qual estabelecem
as balizas da superior construção.
Em sentido oposto, todo o homem que ludibria equivoca-se em
si mesmo. Aquele que consuma um crime infelicita-se. Quem proscreve o dever,
prescreve a aflição para o provir. Ninguém há, portanto, que atravesse a
evolução sem a experiência conseguida a pesado tributo de amor, para poupar-se
ao afligente joeirar na dor, a perene mestra e sábia amiga dos corruptos e
corruptores, defraudadores todos eles das leis soberanas. O carma, pois, é a
verdade estabelecendo os critérios, os arbítrios do futuro, emboscada em nossa
consciência vigilante que, a seu turno, é “Deus connosco”.
O ar fresco da noite, penetrando em lufadas pelas janelas da
carruagem, conseguiu acalmar Girólamo, que parecia angustiado e exaltado
simultaneamente. Estacando o carro antes da Porta Ovile, saltou ainda
esfogueado e, com Francesco, se adentrou pela estalagem regurgitante, sorvendo
amplo caneco de fino chianti, que fazia famosa a bisca. Transcorridos alguns
minutos, e estimulado pelo suave licor, cuja dosagem de álcool lhe penetrava o
sangue, convidado pelo amigo, ambos saíram na direcção do Palácio T., para a
ceia e posterior surtida pelas casas de prazer espalhadas pela cidade
libertina.
Os tocheiros ardentes e as lâmpadas de óleo crepitantes
ofereciam à residência de Francesco aspecto festivo. A movimentação de servos
activos e a agradável música que chegava da Via del Moro produziam nos moços,
excitados pelo vapor alcoólico, estranhas satisfações. O repasto, servido no
pátio interno da mansão, próximo a caprichoso repuxo de água cristalina,
cantarolante, foi acompanhado de finos vinhos e de alacridade. A anfitriã,
igualmente acostumada às explosões dos sentidos, apesar da sua juventude,
proporcionava a Girólamo antevisões de facilidades que lhe seriam ofericidas
ali, sem a necessidade da evasão para os centros embriagantes das profissionais
do comércio dos desejos.
- Música! Desejo música! – gritou Francesco, açulado pelos
licores.
Rubro e entusiasmado, avançou na direcção da esposa e,
arrebatando-a com ruído, ensaiou passos de dança ligeira, entre palmas e gritos
dos servos e do hóspede, arriando, por fim, exausto, sobre a cadeira de alto
espaldar, acolchoada e bordada de
gobelinos, à guisa de trono, reservada ao dono da casa.
Girólamo, conhecedor que se fizera da alma humana
pervertida, antegozou a embriaguez do amigo, imaginando apropriar-se da sua
invigilante esposa, logo os bons fados lho permitissem. Sabendo que melhor e
mais eficiente técnica de conquista é fazer-se distante, ignorando a oferta e
espicaçando, habilmente, o desejo naquele que se permitiu arrastar pela
viciação, o moço pretextou visita a amigos, dispensando Francesco, que se
apresentava incapaz de acompanhá-lo, e, com estudada cortesia, demandou a via
pública. Teria tempo de cuidar da reprochável mulher, em momento próprio, sem
qualquer perigo para a sua condição de hóspede e amigo.
Toda a cidade vivia, naquele Agosto, o entusiasmo e agitação
próprios dos dias que precedem as festas do “Palio”. Hóspedes chegavam das
cercanias, das cidades mais distantes, e as casas de estalagem, alberghi,
pensões encontravam-se abarrotadas. Os trajes coloridos inundavam as ruas e os
lampiões, presos às paredes ou pendurados sob os arcos das estreitas alamedas e
becos, ofereciam claridade avermelhada, contrastando com o luar sonhador e argênteo
que a tudo inundava.
De taberna em taberna, usufruindo até ao cansaço os prazeres
imediatos. Girólamo parecia esquecido dos acontecimentos do dia que ainda não
findara.
Em um único período diurno, a vida lhe facultara muito
conhecer. Desabituado, porém, às cogitações menos vulgares, não se apercebia de
que, estando à borda do abismo, aqueles eram os seus minutos finantes de
loucura inconsciente. Afogava-se, pois, mais e mais, na taça da volúpia: se
buscando viver, ou tentando finar-se, nem ele mesmo poderia saber. Certo é que,
após os voluteios noctivos, refugiava-se em afamado bordel, em que a inconsciência
o dominara horas sem-termo, até ao despertar no dia imediato, sol alto, dorido,
cansado, em desassossego. Informando-se do tempo transcorrido, procurou recobrar
o ânimo e saiu precipite, na direcção do lar que o hospedava, procurando justificar
a falta em que incorrera, granjeando o perdão dos anfitriões, sem dúvida
igualmente dissolutos.
Aqueles dias eram dias de festa e em tais comenos se
perdoavam todos os deslizes morais, sob uma tolerância de falsa compreensão das
fraquezas que os nobres se podiam permitir, em detrimento das classes
desfavorecidas pela cornucópia da fortuna e pela condição do berço.
Depois de refrescar-se confortavelmente e narrar a Francesco
a odisseia dos gozos exaustivos da véspera, aceitou o repasto frugal e procurou
o leito para recobrar energias vitais, a fim de desperdiçá-las logo mais em
nova diferente dissipação.
Eram vésperas da grande festa. A Praça do Campo, também
chamada Conchiglia, estava ricamente decorada. O Palácio Público exibia já as
bandeiras representativas dos diversos bairros que disputariam o palio. Coberturas
foram distendidas sobre os balcões que circundavam o largo e as cores da
cidade, em guarnições e arazzi bem cuidados, de tecidos valiosos, se
encontravam desfraldadas, dando movimento e vida ao local das disputas. Colchões
foram espalhados pela periferia circular do Campo, para forrar as paredes dos
edifícios, impedindo-se quedas de consequências lutuosas. No centro do
picadeiro se aglutinaria o povo e, em volta, na pista aladeirada, a grande
Mossa daria começo à parte mais importante dos jogos. Na Torre do Mangia
tremulava, desde cedo, a bandeira da cidade, em vermelho vivo, com a loba simbólica.
E, contrastando com toda a luz e cor, as lajes do campo, divididas em nove
sectores, como evocando o Governo dos Nove, sobressaiam entre as listas
longitudinais de pedra branca.
A cidade estava esplendente e as ansiedades espocavam nos
peitos intumescidos de júbilo.
/…
VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO,
7. OBSESSÃO VINGADORA E PERTINAZ 1 de 4, 22º fragmento da obra. Texto
mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem: L’âme de la forêt _1898, tempera e
folha de ouro sobre painel de Edgar Maxence)