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terça-feira, 16 de julho de 2024

O Homem e a Sociedade ~


Capítulo VIII
~ Perspectivas de Um Homem Infinito ~

  O tema referente a um homem infinito é o mais apropriado para nos dar a certeza de que a humanidade, a história e o Planeta possuem em si mesmos uma finalidade que ultrapassa as aparências do existir quotidiano. Porque existir como um homem medíocre seria insuportável, do ponto de vista moral; viver como um homem impotente seria desesperador; e vegetar como um homem estúpido estaria em desacordo com a superioridade de quem conseguiu a desintegração atómica. Mas, em compensação, existir e ser um homem desconhecido já é algo e nos dá o direito espiritual e humano de ser alguma coisa, frente ao singular mistério do mundo. Antes que medíocre, impotente e estúpido, é preferível para a inteligência humana ser um homem desconhecido, (') já que dentro dessa condição há sempre a possibilidade de uma sorte ou uma descoberta nova, que faça do homem uma entidade superior, com vistas à existência do ser humano vale muito pouco, se a razão do seu existir está unicamente na sua efémera vida física e no acto mecânico de vestir-se todos os dias. Se o homem é apenas um Ser que come e faz negócios, então não haverá palavras para condenar a sua insípida natureza e a sua frágil existência.

  Mas é que existir, ser homem, ou melhor, ser humano, é pertencer a um mundo superior, onde não existam as contradições terrenas. O homem, de acordo com a realidade espírita, leva em si mesmo o poder de transformar-se em algo mais que uma pessoa de bons costumes. O seu instinto está divinizado pelo fogo criador das mais belas aspirações cósmicas, e a sua mente pode intuir, ao calor de seu próprio ser espiritual, o imenso destino que se oculta no fundo desse homem desconhecido, isto é, na sua natureza supranormal, ainda não explorada pela antropologia Filosófica('')

  Existir como ser humano, e no humano, é possuir um alto sentido teleológico, que sem dúvida alguma dará fim ao homem medíocre. Não esqueçamos que a vida possui particularidades que revelam a grandeza criadora do homem, mesmo que a cultura, confundida por enganosas aparências, queira ainda ignorá-lo. E é por esse engano que triunfa o inócuo saber das coisas fugazes, intranscendentes e mortais.

  A força existencial do homem radica na sua própria infinitude, pois nela se encontra a raiz de toda a sua virilidade social e espiritual, já que ser, — existir no eterno e para o eterno, — é a única maneira de existir para elaborar a mais poderosa ética criadora.

  Na ideia da sua própria finitude radica todo o pessimismo, pois ela engendra no homem uma tristeza impossível de eludir, e é com ela que se afirma o conceito materialista da vida. O triunfo do mundo material sobre o espiritual tem como causa a noção imanente da existência, a qual, por um reflexismo ideológico, absorve todo o ser vivo do indivíduo.

  A finitude da pessoa humana foi o que determinou a morte dos valores espirituais: e se coube realmente à alma humana, como quer o existencialismo, uma sorte cega, não pode haver existência infinita, eternidade, nem mundo dos espíritos. Com tal critério, Deus não seria mais que uma entidade para gerar a morte e determinar a de todo o ser existente, e não um Ser para criar a vida eterna da alma e com ela a divina verdade.

  Se o homem levasse consigo a morte como uma enfermidade, isso se deveria à inexistência de Deus e de qualquer outro poder supratemporal, que pudesse preservá-lo de tão aterrador destino, como o do nada. Daí que, se no homem desconhecido se conseguisse descobrir apenas um sinal de sua própria infinitude, o mundo adquiriria imediatamente um sentido espiritual e a existência de Deus se tornaria de fácil demonstração. Se o homem é e existe dentro do Infinito, o Criador também existirá na sua própria infinitude e, como é lógico, com maior profundidade espiritual que o ser humano.

  Desta maneira, a imagem divina que se oculta no homem desconhecido seria o factor especial que daria infinitude à pessoa humana e a força necessária para vencer os obstáculos antidivinos do mundo. O homem infinito aparece assim como um desdobramento do poder criador que emana de Deus; essa força possui em si mesma a substância do eterno; daí que poderá perdurar infinitamente, apesar de todas as catástrofes espirituais e geológicas que se sucedam na Terra. Assim, a morte se transforma num facto relativo, circunscrito ao material, e o seu aspecto negativo, tão temido em todas as idades da humanidade, se esfuma, e a sua sombria face se renova, transfigurando-se.

  A existência real de um homem infinito é a única possibilidade de um mundo do Espírito e dos valores morais, pois espírito e valor, sem a existência infinita do Ser, seriam duas irrealidades: significariam morrer ou estar morrendo a todo instante, mesmo quando se estivesse em plena euforia da vida.

  O homem comum acostumou-se, por meio de culturas niilistas, a considerar a vida como coisa limitada pela sua própria impotência e, assim, a única ética que impulsionou a natureza humana foi sempre a ideia de uma finitude fatal e aniquiladora. Este conceito do Ser alcançou grande divulgação; mas os seus corifeus se esqueceram de que ele leva dentro de si mesmo o homem desconhecido, cujo poder supranormal pode vencer, em circunstâncias especiais, as leis conhecidas da natureza. Contudo, esse homem desconhecido, em vez de ser procurado pelo moderno quefazer filosófico, foi posto à margem, para, ao revés, aprofundar-se o estudo do homem medíocre, estúpido e impotente, que já não está em concordância com as novas dimensões de um Universo cheio do espírito imortal.

  A cultura filosófica e a civilização preferiram um homem impotente; e por isso não descobriram na sua alma as origens pré-universais e preexistências, que se escondem no seu profundo mistério pessoal. Acreditou-se num tipo de indivíduo de criação espontânea, num ser originado nos abismos do nada; e assim se ignorou que o homem, esse desconhecido, vem de alguma parte e se encarna na realidade material, para transfigurar-se a si mesmo e avançar continuamente para o futuro.

  São chegados os tempos de reconhecer que o homem possui um secreto recurso, com o qual pode abrir as portas da história. Mas não para ver o seu cadáver e os de seus antepassados, nessa fúnebre sucessão que sugere, como único fim da pessoa humana, — a morte. Não; a história, ao abrir os seus misteriosos portais, mostrará ao Ser as múltiplas imagens que lhe pertenceram, ora fúlgidas, ora cambiantes, todas elas sintetizadas no seu rosto presente, divina figura de sua própria infinitude. É de supor-se, então, que o homem regresse de um remoto existir, com um espírito vigoroso e profundo, para vencer o homem-que-morre.

  Vemos, assim, que o homem se valoriza, quando se rebela contra a sua própria finitude. Nietzsche teve grandes vislumbres do homem infinito, mas aniquilou-se a si mesmo, quando pretendeu desafiar a divindade espiritual do Nazareno. Ao contrário, para o saber espírita, o homem criador e infinito se engrandece como Jesus, na sua natureza finita, para dar vida e eternidade a quem está morto de tanto pensar na sua própria finitude.

  Um conhecimento exclusivamente natural é um saber que redundará, iniludivelmente, na impotência e na finitude. Por meio de um saber terrestre, o homem só cultiva e reafirma o seu angustiado conceito niilista, isto é, alimenta a sua mente inferior com o nada, para logo aniquilar-se com ela. Mas o infinito criador que se aloja no mais profundo do homem desconhecido, se resiste a esse conhecimento natural, no seu anseio de viver no eterno, nutre-se daquilo que não vem da impotência e da morte, mas da substância divina, para ser e existir dependendo de Deus.

  Se o homem continuasse pensando na sua própria finitude, não haveria dúvida de que a civilização terminaria na mais terrível das catástrofes espirituais. Porque, se o homem-que-morre é quem deve reger o desenvolvimento humano, tudo será relativo e tenderá a malograr com a ideia do nada. Não haverá nenhum valor espiritual que se salve da morte definitiva. O homem finito, com os seus afectos e aspirações, resultará em tragédia e fatalidade.

  Se o destino do homem fosse viver somente para o Nada, isso indicaria, não a perpetuidade do homem medíocre ou impotente, mas o existir do homem estúpido, que se alucina a si mesmo por meio de algumas ilusórias comodidades materiais. Este modo social do existir representaria uma morte antecipada, ainda que o Ser não conseguisse ter consciência do facto.

  De todos os heroísmos espirituais, o mais belo é o que se opõe ao nadificar do homem. O nada é uma enfermidade contraída pela espécie e que ainda se mantém como incurável, mas já se aproxima o tempo de sua cura total: a medicação necessária já está ao alcance do Ser. Contudo, essa massa formada de medíocres, impotentes e estúpidos opõe-se à cura de tão perigoso mal: prefere ser um tipo de homem atacado de finitude e voltado para o Nada.

  Esta repulsa do eterno, tal como a apresenta a filosofia espírita, poderia explicar-se pôr um temor ao futuro. É por isso que o homem comum nos dá a impressão de carecer de forças morais para enfrentar o futuro. Vencido pela impotência psíquica, só procura aniquilar-se, mas vivendo com a maior fruição possível o seu instante presente, única vida, segundo ele crê, do seu mortal existir. (*)

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(') Títulos dos seguintes livros: O Homem MedíocreJosé IngenierosO Homem Impotente O Homem EstúpidoCharles RichetO Homem, Esse DesconhecidoAlexis Carrel.
('') O conceito de existir, nas filosofias da existência, corresponde a um viver consciente, activo e criador. Os animais vivem, apenas, mas o homem existe. É também esse o conceito existencial na filosofia espírita. (Nota de J.H.Pires).
(*) Quando Mariotti cita o exemplo de Jesus, que, sendo “criador e infinito, se engrandece em sua natureza finita”, dá ao leitor um caso concreto, que mostra a dupla natureza humana: a infinitude do espírito na finitude da encarnação. Esses dois termos, infinitude e finitude, são de uso filosófico, mas bem compreensíveis. — O emprego que Mariotti faz do termo existir, referindo-se ao homem inferior, parece contrariar o conceito existencial desse termo, mas espiriticamente é admissível, pois o homem, na conceituação espírita, é sempre um existente, não podendo renunciar a essa condição humana. — A referência ao “temor do futuro”, no caso da “repulsa ao eterno”, lembra uma recente teoria do prof. Rémy Chauvin, da Escola de Altos Estudos de Paris, sobre a existência de uma lei de “alergia ao futuro”, no campo científico, responsável pela repulsa às novas descobertas. Veja-se o volume de L'Encyclopédie Planète intitulado Nos pouvoirs inconnus. — A palavra existente é da terminologia existencialista para designar o homem como um ser que tem consciência de existir. (Nota de J.H.Pires).


Humberto MariottiO Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, Do Materialismo Histórico a uma Dialéctica do Espírito, 1ª PARTE O NÚMENO ESPIRITUAL NOS FENÓMENOS SOCIAIS, Capítulo VIII PERSPECTIVAS DE UM HOMEM INFINITO, 13º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Alrededores de la ciudad paranóico-crítica: tarde al borde de la historia europea | 1936, Salvador Dali)

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