Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 14 de julho de 2019

o grande desconhecido ~

~ função do egoísmo no desenvolvimento humano ~

Tudo tem a sua utilidade na Natureza. O Universo é teleológico (i), finalista, busca sempre em tudo uma finalidade. Os filósofos anti-finalistas apoiam as suas teorias no erro humano, de todos os tempos, que interpreta a Natureza como criada especialmente para o homem. Esse erro surgiu nas selvas, permaneceu nas civilizações primitivas e projectou-se nas civilizações posteriores. Os próprios deuses e demónios de toda a Antiguidade foram postos ao serviço do homem, que embora os reverenciando, pretendiam utilizá-los como seus auxiliares. O Universo tem, naturalmente, uma finalidade única e superior, em que todas as finalidades se conjugam num resultado único. Mas esse resultado escapa às nossas possibilidades de pesquisa, de compreensão e mesmo de imaginação. A mais inútil das coisas e os mais prejudiciais dos seres são necessários. E o ser necessário é o ser indispensável, é pertencer a um elo da cadeia inimaginável que Kardec (i) nos apresenta nesta frase tantas vezes repetida n’O Livro dos EspíritosTudo se encadeia no Universo.

Os problemas ecológicos da actualidade, surgidos com o desenvolvimento tecnológico, deram ênfase à importância da Ecologia, ciência das relações entre o sujeito e o meio e mesmo entre o objecto e o meio. O meio físico em que vivemos, com os seus elementos naturais configurando determinada situação mesológica (i) humana, é formado por uma infinidade de substituições necessárias à vida vegetal e animal. A ignorância do homem a este respeito, tentando aniquilar elementos nocivos ao meio, provoca o desencadeamento de desequilíbrios perigosos e até mesmo fatais. Minerais, vegetais e animais considerados perniciosos, quando retirados do meio, revelam a sua função necessária e têm de ser repostos ou substituídos por outros que os compensem. Esse delicado equilíbrio das mínimas coisas apresenta-se também nas coisas máximas, como no jogo de forças que sustentam o equilíbrio planetário e o próprio equilíbrio das galáxias no espaço sideral. O mesmo acontece na nossa estrutura corporal, com os seus vários aspectos físicos, psíquicos e espirituais. Por isso o Espiritismo (i) é contrário a todas as práticas de mortificação, extinção, asfixia ou desenvolvimento de funções, instintos, percepções e poderes inferiores ou superiores na criatura humana. Estas devem ser respeitadas na sua integridade, com os seus defeitos, deformações, deficiências e assim por diante, cabendo-nos apenas o direito, que é também um dever, de auxiliar as criaturas no seu processo natural de aperfeiçoamento e reajustamento, nos rumos naturais da transcendência. Nem mesmo a mediunidade (i) deve ser desenvolvida por supostas técnicas provindas de tradições místicas ou da invenção de pretensos mestres espirituais. O Espiritismo opõe-se a todas essas tentativas imaginosas, que podem levar, como tem levado, muitas pessoas a desequilíbrios graves.

O egoísmo, a vaidade, o orgulho, a pretensão, a ambição representam elementos negativos da constituição do ser humano, que devem ser eliminados. Mas essa eliminação não se dá pelos métodos antigos das corporações religiosas, até hoje empregados, apesar dos terríveis malefícios causados. Kardec e os Espíritos Superiores, nas suas comunicações, consideraram o egoísmo como a verdadeira praga que impediu o desenvolvimento real do Cristianismo na Terra. Mas jamais aconselharam métodos artificiais para os combater. As penitências, os cilícios, o isolamento, as auto-flagelações de toda a espécie tornaram mais negra a Idade Média e ainda hoje se escondem nas furnas da ignorância religiosa que só serviram para desequilibrar milhões de criaturas que constituem o triste e pesado legado da Antiguidade para o nosso tempo. São Tomás de Aquino (i) advertiu: “Mães, os vossos filhos são cavalos” e, a educação das crianças transformou-se em domesticação, processo esmagador da sensibilidade infantil e das esperanças da adolescência. Gerações recalcadas saíram das estrebarias escolares em que os mestres domavam crianças e jovens à pancada e com castigos brutais, para moldá-los segundo os modelos estabelecidos para a formação de multidões padronizadas. Todos nós carregamos ainda hoje as marcas profundas e dolorosas, deformantes, do relacionamento humano na Terra. Com a caridade os homens vão aprendendo a sair do egoísmo para o altruísmo, a não pensar apenas nos seus problemas particulares, a não dividir o seu tempo e bem-estar apenas com os familiares, mas levar um pouco de si mesmos e dos seus recursos para a família maior que sofre lá fora. É essa a finalidade do princípio cristão da caridade no Espiritismo. Por isso a caridade espírita não pode cercar-se de barreiras e dificuldades, de exigências e desconfianças. Deve ser ampla e generosa, acessível a todos, evitando constranger ou humilhar os que a recebem. O ego é como uma flor que primeiro se fecha no botão para depois desabrochar na corola e por fim doar-se nos frutos.

Tentemos visualizar o processo de formação do ego (i), para compreendermos a função do egoísmo. A dialéctica espírita ensina-nos que o espírito (não individualizado, mas como elemento espiritual catalisador, capaz de atrair e aglutinar a matéria esparsa no espaço) liga-se à matéria para lhe dar forma, estrutura. Podemos seguir esse processo no caso humano, em que o ego aparece como um pivô da personalidade em formação, desde a infância. A criança é egocêntrica, é um pivô em torno do qual giram as atenções e as afeições da família. Ela se torna, naturalmente, no centro do mundo. Porque esse é o meio de consolidação da sua individualidade. Tudo quanto ela atrai e absorve do ambiente, do exemplo familial, das relações progressivas na escola e nos brinquedos, é automaticamente centralizado no ego, que é o seu ponto interior de segurança perante a dispersividade do mundo. O botão fechado centraliza as suas energias, preparando o momento de abrir-se na corola colorida e perfumada. Essa é a primeira função do ego e, essa função não é egoísta, mas centralizadora por necessidade de estruturação interna. Quando essa estruturação se define como tal, a criança abre-se timidamente para oferecer ao mundo a sua contribuição inicial de beleza e ternura. É um novo ser que surge no mundo, vestido com a roupagem da inocência, como diz Kardec (i) e, ao mesmo tempo trazendo a incógnita de um passado que se revelava pouco a pouco no esquema de um destino com ideias e hábitos negativos que nos foram impostos à força de milénios de brutalidade civilizadora. Por isso no nosso tempo, em que tomamos consciência do absurdo desse massacre universal realizado em nome de Deus, se mostra dominado por inquietações e desesperos, revolta e loucura, psicopatias e obsessões que levam a espécie humana a todos os desvarios e ao suicídio individual e colectivo. Temos de examinar essa situação à luz do Evangelho desfigurado e mal interpretado, muitas vezes contraditado frontalmente pelas teologias do absurdo. E temos de confrontar esse mundo-hospício, em que a loucura mansa dos clérigos e dos fascinados pela mentira consciente ou inconsciente é a mais perigosa de todas, gerando a hipocrisia das vozes impostadas (i) e do comportamento social simulado. A simulação na luta pela vida, estudada por Giuseppe Ingegnieri (i) num livro assustador, é o sintoma mais evidente das condições patológicas do homem actual, que se tornou num ego atrofiado, por isso mesmo vazio e faminto, que tudo quer exclusivamente para si mesmo. E isso a tal ponto que a palavra caridade, definida pelo Apóstolo Paulo (i) numa síntese insuperável e adoptada por Kardec como o fundamento da evolução humana, se transformou na linguagem actual como sinónima de hipocrisia. No próprio meio espírita encontramos os desavisados que condenam essa palavra, sem lhe aprofundarem o sentido. E há-os que pretendem disciplinar a caridade, fiscalizar o seu aproveitamento pelos beneficiados e obrigá-los a determinadas exigências para socorrê-los. Há também os que alegam a inutilidade dessa forma de ajuda. Esses não pensam no bem que uma palavra amiga e confortadora, uma visita de solidariedade, um socorro de emergência a quem está desprovido de roupas para enfrentar o inverno ou do remédio para uma chaga, podem representar. A caridade espírita não é esmola, é doação de amor, solidariedade humana que vale não só pelo amparo material, mas acima de tudo pelo conforto da relação humana. A sua prática não tem por finalidade sanar os males sociais com remendos eventuais, mas mudar as formas egoístas da relação humana na Terra, ampliando-a e aprofundando-a nas dimensões superiores do altruísmo. Nesse estranho panorama de castas privilegiadas, o povo necessitado e as multidões miseráveis, o Espiritismo considera a mecânica da caridade como o instrumento ideal para abrir corações, despertar consciências e alentar esperanças. As ideologias políticas apresentam fórmulas de efeitos superficiais e na reforma muitas vezes penosa de estruturas, mas o Espiritismo restabelece a técnica simples do Cristo (i), que toca o íntimo das criaturas para atingir as causas profundas dos desajustes. Em cada reencarnação (i) o ser repete ao mesmo tempo a filogénese (i) material e a espiritual do homem, no desenvolvimento do embrião e na abertura progressiva do egoísmo ao meio social. Vejamos os vectores desse processo duplo nas linhas da transcendência:

a) Na magia do amor, reminiscência das atracções misteriosas da selva, o par humano liga-se sob a impulsão dos instintos reprodutores e os genes se fundem no ventre materno produzindo o embrião, síntese das formas animais superadas pela espécie. A recapitulação genésica (i) reintegra o espírito na linha filogenética (i) e restabelece o pivô do ego no seu poder centralizador. Na gestação, o paralelismo psicofísico reordena as forças da evolução nos rumos da ascensão. A forma humana resulta das formas anteriores na sublimação do caos instintivo e da sua hereditariedade psicobiológica. O espírito ligado ao caos exerce as funções discriminadoras na conformação do novo ser, disciplinando as energias conscienciais que marcam as conquistas do passado e as auto-punições de erros e crimes anteriores. A Providência Divina envolve o novo ser na sua bênção com aparência da inocência, que lhe permitirá atrair a afeição dos familiares no restabelecimento de afectividades perturbadas ou o aprofundamento das afeições sobreviventes. O novo cérebro está virgem como a tabula rasa dos empiristas ingleses, pronto a gravar um novo rol de lembranças na nova memória em organização. No arquivo do inconsciente (nessa consciência subliminar de Myers (i)) as heranças válidas permanecem ocultas, mas prontas a emergir na consciência de relação pelo mecanismo de associação de ideias e sentimentos.

b) Vencida a etapa uterina e a primeira infância, o ser mostra-se pronto a enfrentar as vicissitudes de uma nova existência. Recobrou a sua vida terrena nas entranhas da mãe, sob as influências psicofisiológicas do organismo gerador do seu novo corpo. Revela anomalias ou perfeição física e mental, segundo o seu passado. É de novo o centro do mundo e traz em si mesmo os factores do seu desenvolvimento e amadurecimento. No lar esses factores se manifestam desde logo, mas vão sofrer as influências modificadoras da família e da escola, para o seu ajuste necessário às novas condições de vida. O instinto de imitação lhe favorece a adaptação ao novo mundo. O ego centralizado volta a abrir-se nessas relações primárias, através do desenvolvimento da afectividade em termos electivos. As suas preferências são ainda impulsivas, provocadas por factores ambientais e circunstanciais, mas pouco a pouco define-se a linha preferencial da razão em desenvolvimento, revelando as afinidades ocultas. O ser põe o pé na realidade e manifesta as suas tendências vocacionais. É o momento de reintegração nos esquemas frustrados do passado ou de renovação do esquema em face de novas exigências da nova realidade.

c) A crise da adolescência vai revelar em breve a sua posição ôntica (i) precisa ou indecisa do novo serherdeiro de si mesmo e das contribuições paternas e maternas, familiais e sociais, excitados pelo meio cultural e reorientadas pela influência espiritual das entidades espirituais que o protegem e assistem constantemente. Está completa a tarefa da ressurreição na carne. Daí por diante, o novo destino do ser na transcendência dependerá de sua própria consciência. Ele está preparado e aparelhado para enfrentar os problemas da juventude e as suas graves opções, da madureza e os seus desafios, da velhice e a recapitulação de toda a odisseia existencial que deve tê-lo elevado acima do passado no processo irreversível da transcendência. O egoísmo do adulto será a marca de um distúrbio psíquico: o infantilismo. O altruísmo (i) será o troféu conquistado de sua vitória na escalada evolutiva.

O seu regresso à vida espiritual o colocará face à sua verdadeira situação. Será certamente um vitorioso em muitos aspectos de sua personalidade, mas o fracasso na transcendência do egoísmo lhe mostrará que todas as conquistas secundárias não podem compensá-lo. Terá de voltar à existência terrena em reencarnações (i) de abnegação forçada, não compulsórias, mas de sua própria escolha, para conseguir a superação difícil do apego a si mesmo. Por sua própria natureza do elemento centralizador da estrutura ôntica (i), responsável pela sua unidade, o ego é a grande barreira contra a qual se quebram os impulsos da transcendência. O seu solipsismo (i) tautológico (itransforma-o numa viragem do espírito, imantando-o (i) a si mesmo. A parábola do jovem rico, no Evangelho, dá-nos o mais claro exemplo do apego ao mundo gerado pelo egoísmo nos Espíritos que se deixam fascinar pelas ilusões materiais. O ego gera as falsas ideias de superestimação individual, de segregação do indivíduo e a sua grei, considerando os demais como estranhos e impuros. Age como um centro hipnótico absorvente, impedindo o ser de abrir-se no altruísmo, fechando-lhe o entendimento para tudo o que não se refira aos seus interesses individuais. A vaidade, a arrogância, a prepotência, a insolência, a brutalidade formam-se no cortejo de estupidez das pessoas egoístas e dos Espíritos egoístas.

Por isso, o Espiritismo proclama a caridade como a virtude libertadora, fora da qual não há salvação para o homem do mundo. A mecânica da caridade pode ser desencadeada, no homem do mundo, por situações aflitivas; de saúde ou de problemas familiais ou financeiros, levando-o a dar, não raro por vaidade, a primeira moeda a um mendigo. Essa doação insignificante abre uma pequena brecha no egoísmo. A seguir virão outras doações mais generosas, até que a fortaleza do ego se abale e o ser orgulhoso possa perceber a sua própria imagem reflectida no espelho doloroso de um rosto de pedinte esfomeado. O Espiritismo nos ensina a dar, além da moeda, o nosso amor a toda a Humanidade, sem discriminações raciais, religiosas, políticas ou de qualquer espécie. A estrutura social da civilização perfeita não surgirá das mãos dos opressores que tudo prometem, mas das mãos humildes da viúva que depositou a sua pequenina moeda e única no cofre em que os ricos despejaram tesouros para comprar o Céu.

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José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, XIII – Função do Egoísmo no Desenvolvimento Humano, 13º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, pintura em acrílico de Costa Brites)

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