Tudo tem a sua utilidade na Natureza. O Universo é
teleológico (i),
finalista, busca sempre em tudo uma finalidade. Os filósofos anti-finalistas
apoiam as suas teorias no erro humano, de todos os tempos, que interpreta a
Natureza como criada especialmente para o homem. Esse erro surgiu nas selvas,
permaneceu nas civilizações primitivas e projectou-se nas civilizações
posteriores. Os próprios deuses e demónios de toda a Antiguidade foram postos
ao serviço do homem, que embora os reverenciando, pretendiam utilizá-los como
seus auxiliares. O Universo tem, naturalmente, uma finalidade única
e superior, em que todas as finalidades se conjugam num resultado único. Mas
esse resultado escapa às nossas possibilidades de pesquisa, de compreensão e
mesmo de imaginação. A mais inútil das coisas e os mais prejudiciais dos seres
são necessários. E o ser necessário é o ser indispensável,
é pertencer a um elo da cadeia inimaginável que Kardec (i) nos apresenta
nesta frase tantas vezes repetida n’O Livro dos Espíritos: Tudo
se encadeia no Universo.
Os problemas ecológicos da actualidade, surgidos com o
desenvolvimento tecnológico, deram ênfase à importância da Ecologia, ciência
das relações entre o sujeito e o meio e mesmo entre o objecto e o meio. O meio
físico em que vivemos, com os seus elementos naturais configurando determinada
situação mesológica (i) humana,
é formado por uma infinidade de substituições necessárias à vida vegetal e
animal. A ignorância do homem a este respeito, tentando aniquilar elementos
nocivos ao meio, provoca o desencadeamento de desequilíbrios perigosos e até
mesmo fatais. Minerais, vegetais e animais considerados perniciosos, quando
retirados do meio, revelam a sua função necessária e têm de
ser repostos ou substituídos por outros que os compensem. Esse delicado
equilíbrio das mínimas coisas apresenta-se também nas coisas máximas, como no
jogo de forças que sustentam o equilíbrio planetário e o próprio equilíbrio das
galáxias no espaço sideral. O mesmo acontece na nossa estrutura corporal, com
os seus vários aspectos físicos, psíquicos e espirituais. Por isso o
Espiritismo (i) é
contrário a todas as práticas de mortificação, extinção, asfixia ou
desenvolvimento de funções, instintos, percepções e poderes inferiores ou
superiores na criatura humana. Estas devem ser respeitadas na sua
integridade, com os seus defeitos, deformações, deficiências e assim por
diante, cabendo-nos apenas o direito, que é também um dever, de auxiliar as
criaturas no seu processo natural de aperfeiçoamento e reajustamento, nos rumos
naturais da transcendência. Nem mesmo a mediunidade (i) deve ser
desenvolvida por supostas técnicas provindas de tradições místicas ou da
invenção de pretensos mestres espirituais. O Espiritismo opõe-se a todas essas
tentativas imaginosas, que podem levar, como tem levado, muitas pessoas a
desequilíbrios graves.
O egoísmo, a vaidade, o orgulho, a pretensão, a ambição
representam elementos negativos da constituição do ser humano, que
devem ser eliminados. Mas essa eliminação não se dá pelos métodos antigos das
corporações religiosas, até hoje empregados, apesar dos terríveis malefícios
causados. Kardec e os Espíritos Superiores, nas suas comunicações,
consideraram o egoísmo como a verdadeira praga que impediu o desenvolvimento
real do Cristianismo na Terra. Mas jamais aconselharam métodos artificiais para
os combater. As penitências, os cilícios, o isolamento, as auto-flagelações de
toda a espécie tornaram mais negra a Idade Média e ainda hoje se escondem nas
furnas da ignorância religiosa que só serviram para desequilibrar milhões de
criaturas que constituem o triste e pesado legado da Antiguidade para o nosso
tempo. São Tomás de Aquino (i) advertiu:
“Mães, os vossos filhos são cavalos” e, a educação das crianças transformou-se
em domesticação, processo esmagador da sensibilidade infantil e das esperanças
da adolescência. Gerações recalcadas saíram das estrebarias escolares em que os
mestres domavam crianças e jovens à pancada e com castigos brutais, para
moldá-los segundo os modelos estabelecidos para a formação de multidões
padronizadas. Todos nós carregamos ainda hoje as marcas profundas e
dolorosas, deformantes, do relacionamento humano na Terra. Com a caridade
os homens vão aprendendo a sair do egoísmo para o altruísmo, a não pensar
apenas nos seus problemas particulares, a não dividir o seu tempo e bem-estar
apenas com os familiares, mas levar um pouco de si mesmos e
dos seus recursos para a família maior que sofre lá fora. É essa a finalidade
do princípio cristão da caridade no Espiritismo. Por isso a caridade espírita
não pode cercar-se de barreiras e dificuldades, de exigências e desconfianças.
Deve ser ampla e generosa, acessível a todos, evitando constranger ou
humilhar os que a recebem. O ego é como uma flor que primeiro se fecha no
botão para depois desabrochar na corola e por fim doar-se nos frutos.
Tentemos visualizar o processo de formação do ego (i), para compreendermos a função
do egoísmo. A dialéctica espírita ensina-nos que o espírito (não
individualizado, mas como elemento espiritual catalisador, capaz de atrair e
aglutinar a matéria esparsa no espaço) liga-se à matéria
para lhe dar forma, estrutura. Podemos seguir esse processo no caso humano, em
que o ego aparece como um pivô da personalidade em formação, desde a infância.
A criança é egocêntrica, é um pivô em torno do qual giram as atenções e as
afeições da família. Ela se torna, naturalmente, no centro do mundo. Porque
esse é o meio de consolidação da sua individualidade. Tudo quanto ela atrai e
absorve do ambiente, do exemplo familial, das relações progressivas
na escola e nos brinquedos, é automaticamente centralizado no ego, que é o seu
ponto interior de segurança perante a dispersividade do mundo. O botão
fechado centraliza as suas energias, preparando o momento de abrir-se na corola
colorida e perfumada. Essa é a primeira função do ego e, essa função não é
egoísta, mas centralizadora por necessidade de estruturação interna. Quando
essa estruturação se define como tal, a criança abre-se timidamente para
oferecer ao mundo a sua contribuição inicial de beleza e ternura. É um
novo ser que surge no mundo, vestido com a roupagem da
inocência, como diz Kardec (i) e, ao mesmo
tempo trazendo a incógnita de um passado que se revelava pouco a pouco no
esquema de um destino com ideias e hábitos negativos que nos foram impostos à
força de milénios de brutalidade civilizadora. Por isso no nosso
tempo, em que tomamos consciência do absurdo desse massacre universal realizado
em nome de Deus, se mostra dominado por inquietações e desesperos, revolta e
loucura, psicopatias e obsessões que levam a espécie humana a todos os
desvarios e ao suicídio individual e colectivo. Temos de examinar
essa situação à luz do Evangelho desfigurado e mal interpretado, muitas vezes
contraditado frontalmente pelas teologias do absurdo. E temos de confrontar
esse mundo-hospício, em que a loucura mansa dos clérigos e dos fascinados pela
mentira consciente ou inconsciente é a mais perigosa de todas, gerando a
hipocrisia das vozes impostadas (i) e do
comportamento social simulado. A simulação na luta pela vida,
estudada por Giuseppe Ingegnieri (i) num
livro assustador, é o sintoma mais evidente das condições patológicas do homem
actual, que se tornou num ego atrofiado, por isso mesmo vazio e faminto,
que tudo quer exclusivamente para si mesmo. E isso a tal ponto que a palavra caridade, definida pelo
Apóstolo Paulo (i) numa
síntese insuperável e adoptada por Kardec como o fundamento da evolução
humana, se transformou na linguagem actual como sinónima de hipocrisia. No
próprio meio espírita encontramos os desavisados que condenam essa palavra, sem
lhe aprofundarem o sentido. E há-os que pretendem disciplinar a caridade,
fiscalizar o seu aproveitamento pelos beneficiados e obrigá-los a determinadas
exigências para socorrê-los. Há também os que alegam a inutilidade dessa forma
de ajuda. Esses não pensam no bem que uma palavra amiga e confortadora, uma
visita de solidariedade, um socorro de emergência a quem está desprovido de
roupas para enfrentar o inverno ou do remédio para uma chaga, podem
representar. A caridade espírita não é esmola, é doação de amor,
solidariedade humana que vale não só pelo amparo material, mas acima
de tudo pelo conforto da relação humana. A sua prática não tem por
finalidade sanar os males sociais com remendos eventuais, mas mudar as formas
egoístas da relação humana na Terra, ampliando-a e aprofundando-a nas dimensões
superiores do altruísmo. Nesse estranho panorama de castas privilegiadas, o
povo necessitado e as multidões miseráveis, o Espiritismo considera a mecânica
da caridade como o instrumento ideal para abrir corações, despertar
consciências e alentar esperanças. As ideologias políticas
apresentam fórmulas de efeitos superficiais e na reforma muitas vezes penosa de
estruturas, mas o Espiritismo restabelece a técnica simples do
Cristo (i), que
toca o íntimo das criaturas para atingir as causas profundas dos desajustes. Em
cada reencarnação (i) o ser repete
ao mesmo tempo a filogénese (i) material
e a espiritual do homem, no desenvolvimento do embrião e na abertura
progressiva do egoísmo ao meio social. Vejamos os vectores desse processo duplo
nas linhas da transcendência:
a) Na magia do amor, reminiscência das atracções misteriosas
da selva, o par humano liga-se sob a impulsão dos instintos reprodutores e os
genes se fundem no ventre materno produzindo o embrião, síntese das formas
animais superadas pela espécie. A recapitulação genésica (i) reintegra
o espírito na linha filogenética (i) e
restabelece o pivô do ego no seu poder centralizador. Na gestação, o
paralelismo psicofísico reordena as forças da evolução nos rumos da ascensão. A
forma humana resulta das formas anteriores na sublimação do caos instintivo e
da sua hereditariedade psicobiológica. O espírito ligado ao caos exerce as
funções discriminadoras na conformação do novo ser,
disciplinando as energias conscienciais que marcam as conquistas do passado e
as auto-punições de erros e crimes anteriores. A Providência Divina
envolve o novo ser na sua bênção com aparência da inocência,
que lhe permitirá atrair a afeição dos familiares no restabelecimento de
afectividades perturbadas ou o aprofundamento das afeições sobreviventes. O
novo cérebro está virgem como a tabula rasa dos empiristas
ingleses, pronto a gravar um novo rol de lembranças na nova memória em
organização. No arquivo do inconsciente (nessa consciência subliminar de
Myers (i))
as heranças válidas permanecem ocultas, mas prontas a emergir na consciência de
relação pelo mecanismo de associação de ideias e sentimentos.
b) Vencida a etapa uterina e a primeira infância, o ser mostra-se
pronto a enfrentar as vicissitudes de uma nova existência. Recobrou
a sua vida terrena nas entranhas da mãe, sob as influências psicofisiológicas
do organismo gerador do seu novo corpo. Revela anomalias ou perfeição física e
mental, segundo o seu passado. É de novo o centro do mundo e
traz em si mesmo os factores do seu desenvolvimento e amadurecimento. No lar
esses factores se manifestam desde logo, mas vão sofrer as influências
modificadoras da família e da escola, para o seu ajuste necessário às novas
condições de vida. O instinto de imitação lhe favorece a adaptação ao novo
mundo. O ego centralizado volta a abrir-se nessas relações primárias, através
do desenvolvimento da afectividade em termos electivos. As suas
preferências são ainda impulsivas, provocadas por factores ambientais e
circunstanciais, mas pouco a pouco define-se a linha preferencial da razão em
desenvolvimento, revelando as afinidades ocultas. O ser põe o
pé na realidade e manifesta as suas tendências vocacionais. É o momento de
reintegração nos esquemas frustrados do passado ou de renovação do esquema em
face de novas exigências da nova realidade.
c) A crise da adolescência vai revelar em breve a sua
posição ôntica (i) precisa
ou indecisa do novo ser, herdeiro de si mesmo e das
contribuições paternas e maternas, familiais e sociais,
excitados pelo meio cultural e reorientadas pela influência espiritual das
entidades espirituais que o protegem e assistem constantemente. Está completa a
tarefa da ressurreição na carne. Daí por diante, o novo destino
do ser na transcendência dependerá de sua própria consciência.
Ele está preparado e aparelhado para enfrentar os problemas da juventude e as
suas graves opções, da madureza e os seus desafios, da velhice e a
recapitulação de toda a odisseia existencial que deve tê-lo elevado acima do
passado no processo irreversível da transcendência. O egoísmo do
adulto será a marca de um distúrbio psíquico: o infantilismo. O altruísmo (i) será o
troféu conquistado de sua vitória na escalada evolutiva.
O seu regresso à vida espiritual o colocará face à sua
verdadeira situação. Será certamente um vitorioso em muitos aspectos
de sua personalidade, mas o fracasso na transcendência do egoísmo lhe
mostrará que todas as conquistas secundárias não podem compensá-lo. Terá de
voltar à existência terrena em reencarnações (i) de
abnegação forçada, não compulsórias, mas de sua própria escolha, para conseguir
a superação difícil do apego a si mesmo. Por sua própria natureza
do elemento centralizador da estrutura ôntica (i), responsável pela
sua unidade, o ego é a grande barreira contra a qual se quebram os impulsos da
transcendência. O seu solipsismo (i) tautológico (i) transforma-o numa
viragem do espírito, imantando-o (i) a si mesmo. A parábola do jovem rico, no
Evangelho, dá-nos o mais claro exemplo do apego ao mundo gerado pelo egoísmo
nos Espíritos que se deixam fascinar pelas ilusões materiais. O ego gera as
falsas ideias de superestimação individual, de segregação do indivíduo e a sua
grei, considerando os demais como estranhos e impuros. Age como um centro
hipnótico absorvente, impedindo o ser de abrir-se no
altruísmo, fechando-lhe o entendimento para tudo o que não se refira aos seus
interesses individuais. A vaidade, a arrogância, a prepotência, a insolência, a
brutalidade formam-se no cortejo de estupidez das pessoas egoístas e dos
Espíritos egoístas.
Por isso, o Espiritismo proclama a caridade como a virtude
libertadora, fora da qual não há salvação para o homem do mundo. A mecânica da
caridade pode ser desencadeada, no homem do mundo, por situações aflitivas; de
saúde ou de problemas familiais ou financeiros, levando-o a
dar, não raro por vaidade, a primeira moeda a um mendigo. Essa doação
insignificante abre uma pequena brecha no egoísmo. A seguir virão outras
doações mais generosas, até que a fortaleza do ego se abale e o ser orgulhoso
possa perceber a sua própria imagem reflectida no espelho doloroso de um rosto
de pedinte esfomeado. O Espiritismo nos ensina a dar, além da moeda, o
nosso amor a toda a Humanidade, sem discriminações raciais, religiosas,
políticas ou de qualquer espécie. A estrutura social da civilização
perfeita não surgirá das mãos dos opressores que tudo prometem, mas das mãos
humildes da viúva que depositou a sua pequenina moeda e única no cofre em que
os ricos despejaram tesouros para comprar o Céu.
/…
José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo,
XIII – Função do Egoísmo no Desenvolvimento Humano, 13º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo
por sobre os campos celestes, pintura em acrílico de Costa Brites)
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