amor e família em novos tempos |
Ninguém colocou melhor o problema da família do que Allan Kardec, pois não se
apoiou apenas na pesquisa das aparências formais, mas penetrou na substância da
questão, no plano das causas determinantes. Por isso nos oferece um esquema
tríplice das formações da família do nosso tempo, a saber:
a) a família carnal, formada a partir dos clãs primitivos,
evoluindo nas miscigenações
raciais, através de inumeráveis conflitos ao longo das civilizações
progressivas, na fermentação dialéctica do amor e do ódio. Os
grupos assim formados subdividem-se, nas reencarnações progressivas,
em inumeráveis subgrupos, que também crescerão e se subdividirão na
temporalidade, ou seja, na imensa esteira do tempo, que, segundo Heidegger, acolhe
o espírito. São essas as famílias consanguíneas, que se
desfazem com a morte.
b) a família mista, carnal e espiritual, em que os conflitos
do amor e do ódio entram em processo
de solução, nos reajustamentos das lutas e experiências comuns, definindo-se
e ampliando-se as afinidades espirituais
entre diversos grupos, absorvendo elementos de outras famílias, nas
coordenadas da evolução colectiva. O condicionamento da família, nas
relações endógenas e
necessárias da vivência em comum, quebra a pouco e pouco as arestas do ódio e
das antipatias, restabelecendo na medida do possível as relações simpáticas que se
ampliarão no futuro. A desagregação provocada pela morte permitirá reajustes mais eficazes
nas sucessivas reencarnações dos
grupos.
c) a família espiritual, resultante de todos esses processos reencarnatórios,
que aglutinará os espíritos afins no plano espiritual, nas comunidades dos
espíritos superiores que se dedicam ao trabalho de assistência e orientação aos
dois tipos de família anteriores, mesclando-as de elementos que nelas se
reencarnam para modificá-las com o seu exemplo de amor e dedicação
ao próximo. Essa família não perece, não se desfaz
com a morte, crescendo constantemente para a formação de Humanidades
Superiores. É fácil, usando-se as medidas da Escala Espírita em O
Livro dos Espíritos, identificar nas famílias terrenas a presença de vários
tipos descritos na referida escala, percebendo-se claramente as funções que
exercem no processo evolutivo em família.
A concepção espírita da família,
como se vê, é muito mais complexa e de importância muito maior que a das
religiões cristãs, que conferem eternidade e inviolabilidade ao sacramento do
matrimónio, mas não podem impedir que, na morte, o marido vá parar às garras do
Diabo, a esposa estagiar no Purgatório e os filhos inocentes curtir a sua
orfandade nos jardins do céu. A concepção jurídica e terrena da família não vai além dos
interesses materiais de uma existência. O mesmo se dá com a concepção
sociológica, que faz da família a base da sociedade, ambas perecíveis e
transitórias. As pessoas que acusam o Espiritismo de
aniquilar a família através da reencarnação revelam
a mais completa ignorância da Doutrina ou o fazem por má-fé, na defesa de
interesses religiosos-sectários.
A família nasce do amor e dele se alimenta. Não é
apenas a base da sociedade, mas de toda a Humanidade. É na família que as
gerações se encontram, transmitindo as suas experiências de uma para a outra.
Combater a instituição da família, negar a sua necessidade e a sua eficácia no
desenvolvimento dos povos e dos mundos é revelar miopia ou cegueira espiritual,
na cultura ou desequilíbrio mental e psíquico, falta de ajustamento à
realidade, esquizofrenia
não raro catatónica. Isso
é evidente no estado de alienação em que essa atitude se manifesta, em pessoas amargas ,ressentidas ou
extremamente pretensiosas,
que desejam mostrar-se originais. Em geral, são criaturas carentes de
afectividade. Quando se desligam da família natural ligam-se a grupos de
criaturas afins, engajam-se noutras famílias ou tornam-se misantropas destinadas
à neurastenia ou à loucura. O instinto gregário da espécie é
uma exigência da evolução humana, a que ninguém pode furtar-se sem pagar pelo seu egoísmo.
Os ideólogos da solidão individual esquecem-se de que todas
as tentativas nesse sentido fracassaram ao longo da História. Esparta morreu de
inanição por falta de relações da família, enquanto Atenas cresceu e se
projectou num futuro glorioso, pela solidez de seu sistema da família. Roma
caiu nas mãos dos bárbaros quando as suas famílias se entregaram à degeneração.
Os próprios nómadas jamais dispensaram o seu sistema de famílias ambulantes.
Anarquistas e socialistas delirantes, que sonhavam com sociedades anti-sociais,
formadas de indivíduos avulso e dotadas de grandes depósitos de crianças
avulsas – os filhos do Estado – morreram protegidos pelo carinho dos
familiares. Robinson
Crusoe é a imagem do homem arrebatado ao seu meio, sem perspectivas. Sartre, que rompeu com
a tradição da família e demonstrou os inconvenientes da convivência, fazendo
uma tentativa de misantropia estóica, nunca dispensou a companhia de Simone de Beauvoir e
o cosmopolitismo parisiense, formulou o célebre veredicto: Os outros
são o inferno, mas jamais os dispensou. Escrevia no Café de Fiori e quando
visitou a URSS exigiu a inclusão no programa oficial de horas de solidão
absoluta, mas nessas horas se ralava inquieto, segundo o testemunho de Simone. O
homem é relação e a família é o meio de relação em que ele absorve a
seiva humana que o faz homem.
Não há interesse maior para a criatura humana no mundo
que o seu semelhante,
porque é nele que nos realizamos.
Uma paisagem solitária é um motivo edénico de
contemplação, e quando alguém aparece, como Sartre observou,
imediatamente nos tira a liberdade e nos transforma em objecto. Mas o próprio
acto de objectivar-nos permite-nos recuperar a nossa subjectividade dispersada
na paisagem. Essa dinâmica de projecção e retroacção revela ao mesmo
tempo a natureza dialéctica do
ser, estável no somático e instável na psique. Dessa dialéctica resulta a síntese total da consciência estética,
em que o real objectivo
e o irreal subjectivo
se fundem na percepção estética
do amor.
Por isso, no Espiritismo o amor não é instinto
(necessidade orgânica) nem desejo ou simples fazer sexual
(sensorialidade) mas a aspiração suprema de beleza e espiritualidade nas
perspectivas da transcendência. A superação de objectivo e subjectivo
se resolve na globalidade do Amor. Por isso o Apóstolo
João, no seu Evangelho, define o Ser Supremo na conhecida frase: Deus
é Amor. As definições da Filosofia como Amor da Sabedoria (Pitágoras) e Sabedoria
do Amor (Platão) revelam
a intuição,
já na Antiguidade, dessa total globalidade do Amor que o Espiritismo viria a
explicar mais tarde. O desenvolvimento dessa globalidade processa-se na
família, em que a afectividade desabrocha para a posterior floração do Amor no
processo existencial. As famílias a e b da
teoria kardeciana, que
explicitamos no nosso esquema, preparam o ser, projectado na
existência, para a odisseia das almas viajoras de Plotino, que vão subir e descer
pela escada de Jacob nas reencarnações sucessivas, em busca do arquétipo da
família e, em que as famílias desse padrão superior se integrarão
progressivamente no plano divino das humanidades espirituais que constituirão
no Infinito a Humanidade Cósmica. Essa a razão por que René Hubert, filósofo
e pedagogo francês contemporâneo, sustenta que os fins da Educação consistem
no estabelecimento,
na Terra, da República dos Espíritos, através da Solidariedade de consciências.
A Educação em Família é o germe afectivo e puro de que
decorre todo o processo educacional do homem. Com o amparo da família, na solidariedade
doméstica do lar, por mais obscuro e humilde, é que se realiza a fotossíntese inicial
da atmosfera de solidariedade e
amor das gerações que modelam o futuro. Cabe aos espíritas implantar na
Terra uma nova Educação, com base nos dados da pesquisa espírita e segundo o
esquema da Pedagogia Espírita. Essa Pedagogia, iniciada por Hubert (que não é
espírita) fundamenta-se nos princípios doutrinários do Espiritismo e
destina-se a preparar as novas gerações para a Era Cósmica que se aproxima. Os professores espíritas
de todos os graus do ensino têm um dever supremo a cumprir, nesta fase de
transição do nosso planeta: procurar compreender os princípios educacionais do
Espiritismo e trabalhar pelo
desenvolvimento da Educação Espírita.
Estamos a entrar na Era Cósmica, numa sequência natural do
desenvolvimento da Era Tecnológica, tudo se encadeia no Universo, como assinala O
Livro dos Espíritos. Com o avanço científico e técnico dos últimos séculos,
e particularmente do nosso, a Terra amadureceu para a conquista do espaço
sideral. O impacto dos nossos primeiros contactos com outros mundos já produziu profundas
modificações, de que ainda não demos conta, em mundividência. As
pesquisas espaciais continuam, ampliando a nossa visão da realidade
cósmica. Uma nova civilização está a surgir aos nossos olhos, debaixo dos nossos
pés e sobre as nossas cabeças. Mas para que isso aconteça, sem perdermos de
todo o equilíbrio cultural, já bastante abalado, temos de cuidar seriamente da
renovação dos nossos instrumentos culturais básicos, a saber:
a) a Economia, que deve tornar-se
universal, rompendo os diques e as barreiras de um mundo pulverizado, para lhe
dar a unidade necessária e a flexibilidade possível para o atendimento dos povos
e de suas camadas diversificadas, afastando do planeta os privilégios e os
desperdícios, a penúria e a fome. A civilização humana e perfeita, ensina O
Livro dos Espíritos, é aquela em que ninguém morre de fome. A duras penas,
a nova mentalidade económica já está definindo-se em todas as nações
civilizadas, mas o egoísmo das
camadas privilegiadas ainda
impede a compreensão das exigências de fraternidade e humanismo dos novos
tempos.
b) a Moral, que tem de romper os seus
padrões envelhecidos de egoísmo e sociocentrismo, moldados em preconceitos de vaidade, ambição e prepotência, para
elevar-se a novos padrões de humanismo, respeito por todos os
direitos humanos, até hoje sempre espezinhados na Terra dos Homens, essa
expressão de Saint-Exupéry que
é um novo chamado à nossa consciência em termos evangélicos. Altruísmo – interesse pelos outros – humildade, fraternidade, tolerância e compreensão, amor, são essas as novas palavras de uma moral realmente cristã. A
violência terá de
ser expulsa da Terra dos Homens, com o seu cortejo de brutalidades. É
necessário que o conceito de não-violência se transforme na marca do homem, no signo que
o distingue do bruto, do primata inconsciente. A honra e a dignidade
humanas são incompatíveis com a estupidez dos broncos, inadmissíveis num
sistema de civilização. Como adverte Fredric Wertham, a
violência é um cancro social, que corrói e destrói toda a estrutura de uma
civilização. O homem verdadeiramente homem deve ter vergonha e horror
da violência. Ser violento é ser amoral, pois quem não respeita os outros não
respeita a si mesmo.
c) a Educação, que tem de renovar os seus
conceitos básicos sobre o seu objecto, o educando. Em primeiro lugar a educação em
família, que deve basear-se na afectividade, nas relações
de amor e compreensão entre pais e filhos. Educação com violência é
domesticação. O mundo da criança não é o mesmo do adulto e este tem de
descer a esse mundo, voltar à sua própria infância para não esmagar a infância
dos filhos. As pesquisas entre os povos selvagens mostraram que a essência da educação
é o amor. Sem amor
não se educa, deforma-se. Nos povos selvagens a educação não foi
deformada pela ideia do pecado, pelo mito da queda do homem, que envolvera o
mundo de violências redentoras capazes de aterrorizar um
brutamontes, quanto mais uma criança. Kardec ensina que a
criança, embora tenha o seu passado em geral lamentável, nasce vestida com a roupagem da inocência para
tocar ocoração dos pais e despertar-lhes o amor e a ternura, de que ela necessita
para o desenvolvimento das suas potencialidades humanas. Se fazemos o
contrário, despertamos na criança o seu passado de erros e depois a condenamos
pelos seus instintos. Essa
tese kardeciana é hoje dominante nos meios pedagógicos. Como dizia Gandhi, não se pode
levar uma criatura ao bem pelos caminhos do mal. Os povos selvagens
são mais civilizados que os povos civilizados, no tocante a esse problema, pois intuem com pureza e ingenuidade o
verdadeiro sentido da educação. Educar é um acto de amor, diz Kerschensteiner nos
nossos dias, endossando o pensamento de todos os grandes pedagogos e educadores
da Grécia antiga e do mundo moderno, a partir de Rousseau.
Mas a Educação Espírita tem ainda uma
função essencial a desenvolver: o desenvolvimento das
faculdades paranormais do
educando, preparando-o para
as actividades cósmicas
da nova era. O Espiritismo foi
o revelador dessas
faculdades humanas que o passado confundiu com manifestações doentias ou
sobrenaturais. O Espiritismo foi a primeira Ciência a mostrar
experimentalmente esse engano fatal, de que resultou para a Humanidade
terríveis tragédias. Cento e trinta anos antes das descobertas parapsicológicas nesse
sentido, a Ciência
Espírita demonstrou que as funções anímicas e psico-anímicas da
criatura humana eram normais,
pertenciam à própria natureza do homem. As pesquisas actuais no Cosmos
revelaram que o desenvolvimento das faculdades psi é
indispensável ao bom êxito das incursões no espaço sideral. A Educação Espírita é a única que
pode enfrentar essas exigências dos novos tempos, cuidando do desenvolvimento
dessas faculdades de maneira racional,
sem os prejuízos dos falsos conceitos e dos temores infundados das formas de
educação religiosas e leigas do nosso tempo.
Cabe assim ao Espiritismo renovar
totalmente a cultura actual, reestruturar a Civilização Tecnológica nos rumos
da Civilização do Espírito. Esse o fardo leve do Cristo que pesa sobre a
consciência de todos os espíritas verdadeiros,
nesta hora do mundo, e particularmente sobre a consciência dos educadores espíritas.
Nessa civilização o amor não será fonte de decepções, desajustes e tragédias. A
Família não se estruturará em preconceitos provindos dos tempos de barbárie,
mas na moral evangélica pura, feita de amor e respeito pelas exigências da
vida. O amor verdadeiro e espontâneo, puro como água da fonte, livre
de interesses secundários, fará da família a fonte de amor que elevará a Terra
na Escala dos Mundos. Isto não é sonho nem profecia, é o programa espírita para o
Mundo de Amanhã, e que cabe aos espíritas realizar a partir de hoje, sem perda
de tempo.
/…
José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, 5
Amor e Família em Novos Tempos, 6º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo
por sobre os campos celestes, pintura em acrílico de Costa Brites)