XI
A Hora do Espiritismo
|Junho de 1917|
A visão do espaço e a contemplação dos céus, nas horas
serenas da noite, despertam em nós uma espécie de temor respeitoso.
A noção das distâncias, a quantidade dos focos luminosos que
nele resplandecem, o pensamento de que cada um desses focos é um sol, um
sistema planetário e que para além dos limites que a nossa vista pode alcançar
existem outras legiões de astros que se movem no meio dos abismos, tudo isso
nos domina e esmaga. Compreendemos então quanto é grande a nossa fraqueza e a
nossa impotência, face ao vasto Universo.
Igual ideia, misturada de angústia, sentimos diante dos
grandes acontecimentos que se desenrolam à nossa volta e no meio da borrasca,
nós nos sentimos quais fragmentos de palha agitados pelos vagalhões do oceano.
A razão aparente de todas essas desgraças é a Alemanha
ambiciosa e feroz; porém, acima do livre-arbítrio das nações, há uma intuição segura que nos revela a
existência de algo misterioso e muito poderoso que fará surgir, do caos das
paixões desencadeadas, a ordem e a regeneração
para a humanidade.
Os impérios saqueadores planeavam dominar e escravizar o
mundo, entretanto, violentas correntes
impulsionam todos os povos para a liberdade. Até mesmo entre eles os tronos e
as instituições milenares são abalados surdamente.
O desejo dos nossos inimigos era garantir para sempre a
riqueza e a glória dos alemães, mas prepararam para si próprios a vergonha e a
ruína. Do meio das trevas que caem sobre nós, entrevê-se a aurora nascente de
um novo dia e uma vegetação nova vai
surgir e florescer sobre os destroços e os túmulos.
É chegada a hora do Espiritismo, pois que nos tempos de
provações em que vivemos ele apresenta a consolação e a esperança para as almas
tristes, para todos os que lamentam os entes desaparecidos e todos aqueles que
têm filhos na frente de batalha, os queridos filhos pelos quais tiveram tantos
cuidados, solicitude e temor.
São incontáveis os oprimidos pela dor e que sentem a
necessidade de um conforto, de um socorro moral.
Todos os países que lutam pela liberdade do mundo, pelos
direitos dos fracos e pela justiça, viram a sua juventude metralhada e essas
perdas cruéis se repercutem em profundas e dolorosas vibrações dentro do
coração da nossa raça.
A humanidade jamais teve tanta necessidade de uma doutrina
que a amparasse e consolasse nas horas dolorosas e só o Espiritismo oferece; esses
raios de luz a todas as almas colhidas
pela tristeza e pelo desespero, estendendo-lhe o bálsamo consolador a todas as chagas.
A guerra, ao mesmo tempo que é causa incontável de ruínas,
poderá tornar-se, pelo excesso de sofrimento que provoca, a causa de um ressurgimento moral. Uma das suas
consequências imprevistas é a de tornar mais sensível a comunhão entre o mundo dos vivos e o dos mortos.
A maior parte dos soldados das linhas de combate sabe do
socorro poderoso que vem do Alto e que lhes inspira o estado de ânimo
experimentados nos momentos de perigo, a coragem e a confiança inabaláveis que
não os abandonam nunca, criando neles uma mentalidade bem diversa da que
imperava na retaguarda. A esse respeito recebi muitas cartas comprobatórias.
Existe um episódio célebre que torna este facto ainda mais
concreto: No meio de um tenebroso combate nas trincheiras, o tenente Péricard lançou
um grito sublime, dizendo: “De pé, os mortos!”
Numa sua carta a Maurice Barrès, ele explica o significado
destas palavras:
“O grito não é só meu, mas de todos nós. Quanto mais
identificarem o meu papel com o da multidão dos soldados, mais se aproximarão
da realidade. Tenho a certeza de que fui apenas um instrumento nas mãos de um
poder superior.”
Encontramos já esse sentimento em muitos dos nossos
contemporâneos, começa a compreender-se que existem dois mundos no nosso. Para
além daquele que se vê, existe um outro – mais verdadeiro, mais seguro e mais
duradouro – onde todos os esplendores da vida imortal se expandem. Dessa forma
se comprova, cada vez mais; a necessidade do saber e do crer, apegando-se ao
que existe de elevado, estável e permanente no Universo.
Por toda a parte me falam da formação de grupos espíritas,
formados, principalmente, por intelectuais: professores e professoras, oficiais aposentados,
etc. A circulação de novos livros, brochuras e revistas tem-se tornado mais
intensa, abalando assim os nossos adversários tal estado de coisas.
A Igreja Católica mobilizou os seus melhores pregadores, mas
as conferências do padre Coubé, juntamente com as actividades de Dickson,
combinadas previamente, não lograram o resultado desejado.
A tese sobre a intervenção do demónio e os artifícios de
Dickson provocaram o desdém dos seus audientes, despertando-lhes curiosidade pública
e atiçando neles o desejo de estudar a nossa doutrina e experimentar-lhe os
fenómenos que temos conseguido.
Dessa forma, os nossos contraditores, na sua malevolência,
marcharam contra o que se haviam insurgido; desejando sufocar a verdade, lograram, tão-só, dar-lhe mais liberdade.
Há mais ou menos 50 anos, o bispo de Barcelona mandou
incinerar na praça pública os livros de Alan Kardec com o que só conseguiu com
isso, chamar mais à atenção para o Espiritismo. Naquele tempo os espíritas
espanhóis eram raros, sendo hoje a Catalunha uma das regiões do mundo, onde os
espíritas são mais numerosos.
Por seu turno, a Inglaterra nos mostra um grande contributo;
a iniciativa, a pertinácia e o espírito de continuidade que ela consegue para a
guerra, também são encontrados na área científica, na pesquisa metódica das
causas e efeitos dos fenómenos mediúnicos. As suas sociedades de estudos
psíquicos são as mais bem organizadas e as que conseguem os melhores
resultados.
Os sábios ingleses que se declararam favoráveis ao
Espiritismo já formam uma verdadeira plêiade, bastando citar o nome de Oliver Joseph Lodge que, neste momento, brilha com vivo fulgor.
Após notáveis discursos ele acaba de publicar um livro sobre
o seu filho Raymond, morto na Flandres e acerca das manifestações espíritas
ocorridas depois da morte do jovem oficial. Essa obra causou profunda sensação
em toda a Inglaterra, trazendo para a nossa causa muitas almas que a guerra
submeteu a provas cruéis como a perda dos seus entes queridos durante as
batalhas.
Devemos, em grande parte, aos ingleses, a vitória definitiva
do espiritualismo no mundo, todavia não podemos ser injustos para com os nossos
próprios sábios.
É verdade que a ciência francesa foi por muito tempo hostil
aos trabalhos psíquicos, ocupando-se deles apenas para modificá-los e lhes
atribuir causas fantasiosas, todavia apareceram clarividentes, precursores no
seu meio, mostrando-lhe o caminho certo. À sua frente encontramos o notável
astrónomo Camille Flammarion e depois dele o professor Charles Richet, o director
Boirac e o advogado J. Maxwell.
Não esqueçamos aqueles que já se transferiram para o Além e
continuam ajudando-nos: o coronel de Rochas e o doutor Paul Gibier. Com o seu
exemplo e influência crescentes das afirmativas provenientes do outro lado do
Canal da Mancha, é impossível que os nossos sábios não abandonem a sua
indiferença e a sua rotina, entrando francamente no terreno da experimentação
leal e sincera. É a voz do povo que a isso os conclama, exigindo a sua parte de
verdade e de luz.
Dos seus contraditores, o Espiritismo nada tem a temer, mas
deve temer de si mesmo, isto é, dos exageros que podem advir de uma falsa
interpretação dos fenómenos ou da má direcção dada às experiências.
Ao mesmo tempo em que as nossas crenças se espalhavam e se
difundiam, apareceram sérias dificuldades. Com milhares de almas consoladas e
reconfortadas, chamadas para o sentimento de uma vida mais elevada e para a
noção dos deveres e das responsabilidades, havia casos de obsessão, de
exaltação e desordenação mentais e, por vezes, gritos de alarme chegaram até
nós em razão desses factos.
O Espiritismo possui perigos, assim como todas as forças da
natureza. Tudo quanto é poderoso para o bem pode tornar-se poderoso para o mal,
conforme o uso que dele se faça.
Certos críticos só vislumbram os maus aspectos do
Espiritismo e exageram em combatê-los, não levando em consideração a benéfica
influência que emana da sua doutrina e dos seus ensinamentos. Compete aos
espíritas esclarecidos desmascarar esse procedimento, fazendo justiça à nossa
causa e pondo em relevo o seu nobre e elevado carácter.
O bem e o mal, tanto no mundo invisível como no nosso,
equilibram-se e espalham a sua acção sobre os homens que a provocam ou atraem.
O estudo sério do Espiritismo depende de certas qualidades: espírito culto,
juízo seguro, autodomínio, perseverança incansável, não nos esqueçamos de que
só a pesquisa dos fenómenos e a paixão e preferência pelos factos psíquicos,
sem o seu complemento moral, são apenas uma profanação de morte.
O Espiritismo não é apenas uma ciência, é também uma
revelação, uma obra de verdade e de luz, falando simultaneamente à inteligência
e ao coração.
Ele tem, como um edifício, os seus sucessivos andares. Os seus
alicerces repousam na rocha sólida dos factos criteriosamente examinados e
constatados. Nos seus porões os espíritos inferiores se alegram com os fenómenos
vulgares, em ambiente marcado pelas obsessões, alucinações e as tendências para
a fraude e as trapaças. Porém, à medida que subimos para os andares superiores,
vão surgindo as manifestações intelectuais e as mais puras revelações. As actividades
das almas elevadas realizam-se nos lugares mais altos que, como as torres
pontiagudas de uma catedral, se lançam para o azul infinito.
Cada um, no Espiritismo, se coloca no lugar de preferência e
do adiantamento do seu espírito. Uns se apegam só aos factos, que são apenas a
sua superfície; outros preferem os frutos, isto é, a sua filosofia e a sua
moral.
Principalmente, nesse sentido, é que o Espiritismo está
conclamado a representar um papel regenerador,
porque a sua doutrina atende a todas as necessidades do pensamento e preenche
todas as dúvidas do conhecimento;
resolve os enigmas da vida, os problemas do mal e do sofrimento.
Nestes tempos de provações e desordem, dá-nos confiança no
futuro, mostra-nos que o Universo é dirigido por leis harmónicas e que a última
palavra, em todas as coisas, cabe sempre ao direito e à justiça. Proporciona
também, à nossa existência, uma
razão de ser e uma finalidade: conquistar a verdade, a sabedoria e a virtude.
Ele nos conforta nas nossas desilusões e nos nossos
fracassos com a explicação de que, se o bem é quase sempre ignorado neste
mundo, pelo menos reina, sem restrições, nas elevadas esferas que temos de
alcançar um dia. Afasta os espíritos das preocupações egoístas e materiais e
das actividades estéreis, mostrando-nos o real objectivo da nossa vida. Consta,
portanto, de uma tarefa essencial para reestruturar o homem interior, sem a
qual qualquer reforma social seria inútil ou precária.
O valor de tais soluções, aparecerá aos nossos olhos no dia
em que, depois da guerra, se desejar criar um objectivo nacional, fazendo-o entrar
na alma francesa por meio de uma educação popular, pois qualquer nação está
ameaçada de morrer moralmente, quando está desprovida de um ideal que a inspire
e oriente nas horas difíceis: foi o caso da França e a razão da sua passageira
queda.
Já podemos calcular quanto o sombrio e feroz ideal alemão
foi gerador de poder e energia, fundamentando-se em ideias falsas que só podiam
acabar na queda e no fracasso.
No lugar das nobres qualidades morais, que formam a
verdadeira civilização, ele desenvolveu na alma alemã o orgulho, a arrogância e
a crueldade. A tal doutrina do super-homem que pretende dominar toda a Terra,
não obedecendo senão às suas próprias leis, a Alemanha buscou nos seus
filósofos materialistas.
Foi intoxicada pelo seu ensino nas universidades, por meio
de uma falsa cultura que, em verdade, era somente a negação do que existe de mais nobre e mais sagrado na humanidade.
Os graves acontecimentos que se passaram são a pedra de
toque que garante avaliar os homens e as coisas, as teorias e os sistemas.
Ao vento do tufão, o que havia de convencional, de fictício
e de mentiroso dissipou-se, sobressaindo, na sua beleza ou na sua fealdade,
toda a verdade. Podemos avaliar o alcance das diversas doutrinas, se não pelos
seus princípios, pelo menos pelas suas consequências e, o ideal germânico
provocou indignação e horror na consciência mundial.
Quanto a nós, a indiferença e a incredulidade, resultantes
do ensino oficial, revelaram-se insuficientes nos dias de provações.
As doutrinas do orgulho e do terror mostraram a sua
nulidade. Crenças abandonadas e desprezadas mostraram-se, ao contrário, plenas
de consolação e de esperança, capazes de alentar os corações e reerguer as
almas esmagadas pelo peso da dor.
O Espiritismo leva-nos às grandes tradições da nossa raça,
embelezadas ainda pelas conquistas da ciência e pelo trabalho dos séculos.
Ao domínio através da força bruta, da espoliação e do
assassinato, o Espiritismo contrapõe a liberdade e a fraternidade das almas, em
paz e harmonia.
/…
LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, XI A Hora do Espiritismo / Junho de 1917,
27º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Tanque de guerra britânico capturado pelos
Alemães, durante a Primeira Guerra
Mundial)