A Força e a Matéria II – O Céu ~
A contemplação da Natureza oferece ao homem culto, sem lugar
a contestação, inefáveis, particulares encantos. Na organização dos seres
descobre-se o incessante movimento dos átomos que os compõem, tanto quanto a
permuta constante e operante entre todas as coisas.
Justa é a nossa admiração por tudo o que vive na superfície
da Terra. O mesmo calor solar, que mantém no estado líquido a água dos rios e
dos mares, conduz a seiva à fronde das árvores e faz pulsar o coração dos
abutres e das pombas. A luz que espalha a viço nos prados e nutre as plantas
com um sopro impalpável também povoa a atmosfera de maravilhosas belezas
aéreas. O som que estremece a folhagem canta na orla dos bosques, ruge nas
plagas marinhas. Em tudo vemos, enfim, uma correlação de forças físicas,
que abrange num mesmo sistema a totalidade da vida sob a comunhão das mesmas
leis. Ora, quanto mais fervente for a nossa admiração pelo
esplendor da vida planetária, mais extensiva e aplicável se tornará, em relação
aos mundos que aí fulguram acima de nossas cabeças, no cenáculo das noites
silenciosas. Esses mundos longínquos que, como o nosso, se
embalam no mesmo éter, sob o império das mesmas energias e das mesmas leis,
são igualmente sedes de actividade e vida. Poderíamos apresentar este
grandioso e magnífico espectáculo da vida universal como eloquente testemunho
da inteligência, sabedoria e omnipotência da causa anónima, que houve por bem
reverberar, dos primórdios da Criação, o seu mágico esplendor no espelho da
Natureza criada. Mas, não é sob este prisma que desejamos aqui desdobrar o
panorama das grandezas celestes. Apenas, para o teatro das leis que
regem o nosso mundo, queremos convocar os negadores da inteligência criadora.
Se, abrindo os olhos diante desse espectáculo, eles
persistirem na sua negativa, já não teremos como nos eximir de responder-lhes,
em consciência, que também duvidaremos de suas faculdades mentais. Porque,
para falar com franqueza, a inteligência do Criador parece-nos infinitamente mais
curta e incontestável que a dos ateus franceses e estrangeiros.
E, como o método positivo consiste em não julgar antes de
observar os factos, temos o dever de examinar primeiro os factos
astronómicos de que falamos e depois da interpretação com que se satisfazem os
nossos antagonistas. Se, depois disso, essa sua interpretação
satisfizer, subscreveremos de antemão as suas doutrinas; mas, se, ao contrário,
se revelar insensata, temos, como dever de honra e por amor à verdade, de a
desmascarar e entregar ao apupo da plateia.
Esqueçamos por momentos o átomo terrestre, no qual o destino
nos fixou por alguns dias. Que o nosso espírito se lance ao espaço e
veja rolar diante de si o mecanismo gigantesco – mundos e mundos, sistemas após
sistemas, na infinita sucessão de universos estrelados. Ouçamos, com Pitágoras, as harmonias
siderais nas amplas e céleres revoluções das esferas e contemplemos, na sua
realidade, esses movimentos simultaneamente vertiginosos e regulares que
enfeudam as terras celestes nas suas órbitas ideais. Observamos que
a Lei suprema, universal, dirige esses mundos. Em torno do nosso
sol, centro, foco luminoso, eléctrico, calorífico do sistema planetário, giram
os planetas obedientes. Os mais extraordinários labores do espírito humano
deram-nos a fórmula da lei, que se divide em três pontos fundamentais,
conhecidos em Astronomia por leis de Kepler, laborioso sábio
que a descobriu graças ao seu génio, como à sua paciência, e que discutiu
opiniaticamente, 17 anos, as observações do seu mestre Tycho-Brahe, antes
que distinguisse sob o véu da matéria a força que a rege.
Esses três pontos são:
1º – Cada planeta descreve em torno do Sol uma órbita
elíptica, na qual o centro do Sol ocupa sempre um dos focos.
2º – As áreas (ou superfícies) descritas pelo raio vector (*) de
um planeta em volta do foco solar são proporcionais aos tempos que
levam a descrevê-las.
3º – Os quadrados dos tempos de revolução planetária, em
torno do Sol, são proporcionais aos cubos dos grandes eixos orbitários.
(*) Assim se denomina a linha ideal que liga um planeta ao Sol.
A síntese dessas leis integra o grande axioma que Newton foi o primeiro
a formular na sua obra imortal sobre os Princípios.
Nesse livro, ensina-nos ele – como bem adverte Herschel – que
todos os movimentos celestes são consequências da lei, isto é: – que
duas moléculas materiais se atraem na razão directa do volume de suas massas e
na inversa do quadrado das distâncias. Partindo deste princípio, ele
explica como a atracção exercida entre as grandes massas esféricas, componentes
do nosso sistema, é regulada por uma lei cuja expressão é exactamente idêntica,
como os movimentos elípticos dos planetas em volta do Sol e dos satélites à volta dos planetas, tal como os determinou Képler, se deduzem
consequentes necessários da mesma lei, e como as próprias órbitas dos
cometas não são mais que casos particulares dos movimentos planetários. Passando
em seguida às aplicações difíceis, faz-nos ver como as desigualdades
tão complicadas do movimento lunar se prendem à acção
perturbadora do Sol, assim como se originam as marés da
desigualdade de atracção que esses dois astros exercem sobre a Terra e o oceano que
a rodeia. E demonstra-nos, enfim, como também a precessão dos
equinócios não passa de consequência necessária da mesma lei.
Pois é à execução dessas leis que está confiada a harmonia
do sistema planetário; é a elas que os mundos devem os seus anos, as
suas estações, os seus dias; é nelas que haurem a luz e o calor
distribuídos em diversos graus pela fonte cintilante; é delas que derivam a
eclosão da vida, a forma e ornamento dos corpos celestes. Sob a
acção incoercível dessas forças colossais, os mundos se transportam no espaço
com a rapidez do relâmpago e percorrem centenas de mil léguas por dia, sem
parar, seguindo estritamente a rota certa e previamente traçada por
essas mesmas forças.
Se nos fosse dado libertar-nos um momento das aparências,
sob cujo império nos acreditamos em repouso no centro do Universo, e se
pudéramos abranger num olhar de conjunto os movimentos que animam todas as
esferas, haveríamos de ficar surpreendidos com a imponência desses movimentos. Aos
nossos olhos maravilhados, enormíssimos globos turbilhonariam rápidos sobre si
mesmos, projectados no vácuo a toda a velocidade, quais gigantescas
balas que uma força de projecção inimaginável houvesse enviado ao infinito. Admiramo-nos
desses comboios ferroviários que devoram distâncias como dragões flamantes e,
no entanto, os globos celestes mais volumosos que a nossa Terra deslocam-se com
uma rapidez que ultrapassa a das locomotivas tanto quanto a destas ultrapassa a
das tartarugas. A terra que habitamos, por exemplo, percorre o espaço com a
velocidade de seiscentos e cinquenta mil léguas por dia. Rodeando esses
mundos, veríamos satélites em circulação e a distâncias diferentes, mas
adstritos e submissos às mesmas leis. E todas essas repúblicas
flutuantes inclinam os pólos alternativamente para o calor e para a
luz, a gravitarem sobre o próprio eixo, apresentando, cada manhã, os
diferentes pontos de sua superfície ao beijo do astro-rei. Tiram,
assim, da combinação mesma dos seus movimentos, a renovação da beleza e da
juventude; renovam a fecundidade no ciclo das primaveras, dos estios, dos
outonos e dos invernos; coroam de frondes as montanhas onde o vento suspira;
reflectem no espelho dos lagos a magia de suas paisagens; envolvem-se, às
vezes, na lanugem atmosférica, fazendo dela um manto protector, ou
transformando-a em cadinho retumbante de raios e granizos; desdobram por
superfícies imensas a força das ondas oceânicas, que, também por si, se alteiam
sob a atracção dos astros, qual seio ofegante; iluminam crepúsculos com os
matizes policrómicos dos ocasos comburentes e fremem nos seus pólos às
palpitações eléctricas despedidas dos leques de boreais auroras; geram, embalam
e nutrem a multidão de seres que as povoam; e renovam o filão da vida desde as
plantas fósseis, do passado, até ao homem que pensa e sonda o futuro. Todos
esses mundos, todas essas moradas do espaço, departamentos da vida, nos
apareceriam quais naves bussoladas, conduzindo através do oceano
celeste tripulantes que não têm a temer escolhos nem imperícias de comando,
nem falta de combustível, nem fome, nem tempestades.
/…
Camille Flammarion, Deus na Natureza – Primeira Parte, A Força
e a Matéria II – O Céu 1 de 3, 11º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895,
pintura de James
Jebusa Shannon)