Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 30 de abril de 2014

Deus na Natureza ~


A Força e a Matéria I Posição do Problema (V)

   Um terceiro erro, capital e imperdoável em cientistas de certa idade, é se imaginarem no direito de afirmar sem provas, a se embalarem na doce ilusão de serem os outros obrigados a acreditar em palavras. Coisas que a verdadeira Ciência profundamente silencia, afirmam-nas eles, categóricos. Afirmam, como se houvessem assistido aos concelhos da Criação, ou como se fossem os próprios autores dela.

  Eis alguns espécimes de raciocínios, cuja infalibilidade é tão ciosamente proclamada.

  Que os espíritos um tanto afeitos à prática científica se dêem ao trabalho de analisar as seguintes afirmações:

  Moleschott diz que a força não é um Deus que impele, não é um ser separado da substância material das coisas (quer dizer separado ou distinto?). É a propriedade inseparável da matéria, a ela inerente de toda a eternidade. Uma força, não ligada à matéria, seria um absurdo. O azoto, o carbono, o oxigénio, o enxofre e o fósforo têm propriedades que lhes são inerentes de toda a eternidade... Logo, a matéria governa o homem.”

  Cada uma destas afirmativas, ou negativas, é uma petição de princípios, a depender do sentido que dermos aos termos discutíveis utilizados; mas, em suma, o que elas resumem é que a força vale como propriedade da matéria. Ora, essa é, precisamente, a questão. Os campeões da Ciência, que pretendem representá-la e falar com e por ela, não se dignam de seguir o método científico, que é o de nada afirmar sem provas. Nas dobras do seu estandarte, com letras douradas, estereotiparam uma legenda fulgurante, a saber: – toda proposição não demonstrada experimentalmente só merece repúdio – e, no entanto, logo de início, esquecem a legenda. São pregadores de uma nova espécie: façam o que digo e não o que eu faço.

  Veremos, com efeito, que, quantos afirmam que a força não impulsiona a matéria, exprimem um conceito imaginativo, nada científico.

  Ouçamos, ainda, outras afirmativas gerais: “A matéria – diz Emil du Bois-Reymond – não é um veículo ao qual, à guisa de cavalos, se atrelassem ou desatrelassem alternativamente as forças. As suas propriedades são inalienáveis, intransmissíveis de toda a eternidade.”

  Quanto ao destino humano, eis como se exprime Moleschott: “Quanto mais nos convencemos de trabalhar para o mais alto desenvolvimento da Humanidade, por uma judiciosa associação de ácido carbónico, de amoníaco e de outros sais, de ácido húmico e de água, mais se nobilitam a luta e o trabalho”, etc.

  E também no nosso país: “Uma ideia – diz a Revista Médica – é uma combinação análoga à do ácido fórmico; o pensamento depende do fósforo; a virtude, o devotamento, a coragem, são correntes de electricidade orgânica”, etc.

  Quem vos disse tal coisa, senhores redactores? Olhem que os leitores hão de pensar que os vossos mestres ensinam esses gracejos, quando tal se não dá, absolutamente. Mesmo porque, do ponto de vista científico, esses raciocínios são totalmente nulos. De facto, não se sabe o que mais admirar em tais expoentes da Ciência: se a singular audácia, se a ingenuidade de suas presunções.

  Newton não se cansava de repetir: “parece-nos...”, e Képler dizia: “submeto-vos estas hipóteses...”. Aqueles outros, porém dizem: afirmo, nego, isto é, aquilo não é, a Ciência julgou, decido, condeno, posto que no que dizem não haja sombra de argumento científico.

  Um tal método pode ter o merecimento da clareza, mas ninguém o inquinará de modesto, nem de verdadeiramente científico.

  É que tais senhores têm a ousadia de imputar à Ciência a carga pesada das suas próprias heresias. Se a Ciência vos ouvisse, senhores (mas deve ouvir, porque sois seus filhos) – se a Ciência vos ouve, não pode deixar de sorrir das vossas ilusões.

  A Ciência, dizeis, afirma, nega, ordena, proíbe... Pobre Ciência, em cujos lábios pondes grandes frases, atribuindo-lhe ao coração um descomunal orgulho.

  Não, meus senhores, e vós bem o sabeis (cá entre nós) que, nestes domínios, a Ciência nada afirma, nem nega, porque apenas procura.

  Reflecti, pois, que a armadura das vossas parlandas ilude os ignorantes e pode induzir em erro quantos não tiveram a faculdade de perlustrar os vossos estudos, e considerai que, quando nos arrogamos o título de intérpretes da Ciência, ficamos na obrigação de não falsear o título, de permanecer-lhe fiel e, por consequência, modestos tradutores de uma causa que tem na modéstia o seu primacial merecimento.

  Se, da questão da força, em geral, passarmos à da alma, observaremos que, na esfera da vida animal, ou humana, os adversários não vacilam em afirmar, igualmente sem provas, que não existe personalidade no ser vivente e pensante; que o espírito, como a vida, mais não é que o resultado físico de certos agrupamentos atómicos e que a matéria governa o homem tão exclusivamente quanto, a seu ver, governa os astros e os cristais. O fenómeno mais curioso é o de imaginarem que aclaram o problema com as suas explicações obscuras:

  – “O espírito, diz o Dr. Hermann Scheffler (i), outra coisa não é senão uma força da matéria, imediatamente resultante da actividade nervosa”...

  Mas... de onde provém essa actividade nervosa?

  – Do éter (?) em movimento nos nervos. De sorte que, os actos do espírito são o produto imediato do movimento nervoso, determinado pelo éter, ou do movimento deste nos nervos – ao qual importa ajuntar uma variação mecânica, física ou química, da substância imponderável dos nervos e de outros elementos orgânicos...

  – Eis aí, suponho, bem esclarecida a questão. Virchow diz que “a vida não é mais que modalidade particular da mecânica”; e Büchner afirma que “o homem não passa de produto material; que não pode ser o que os moralistas pintam; que não tem faculdade alguma privilegiada”.

  – Que há em todos os nervos uma corrente eléctrica – predica Dubois-Reymond – e que o pensamento mais não é que movimento da matéria. Para Vogt, as faculdades da alma valem como funções da substância cerebral e estão para o cérebro como a urina para os rins (ii). E Moleschott assegura que a consciência, a noção de si mesmo, mais não é que movimentos materiais, ligada a correntes neuro-eléctricas e percebidas pelo cérebro.

  Teremos o ensejo de assinalar, mais adiante, um ditirambo deste mesmo autor sobre o fósforo, o peso do cérebro, as ervilhas e lentilhas. Por agora, limitemo-nos a estes edificantes testemunhos.

  Admiremos, sobretudo, a conclusão fundamental: “E aí temos nós porque os sábios definem a força uma simples propriedade da matéria. Qual a consequência geral e filosófica desta noção tão simples quanto natural? É que aqueles que falam de uma força criadora, tendo de si mesma originado o mundo, ignoram o primeiro e mais simples princípio do estudo da Natureza, baseados na Filosofia e no empirismo.”

  E, acrescentam – “qual o homem instruído, com um conhecimento mesmo superficial das ciências naturais, capaz de duvidar não seja o mundo governado como geralmente se afirma, e sim que os movimentos da matéria estão submetidos a uma necessidade absoluta e inerente à própria matéria?“

  Assim, pela só autoridade de alguns alemães, que vêm ingenuamente declarar não admitirem, seja como for, a existência de Deus e da alma, agarrando-se embora a uma sombra de noção científica por justificar as suas fantasias, teríamos nós, a seu ver, de abjurar a Ciência, ou deixar de crer em Deus.

  Tivessem tido apenas a precaução de aplicar as regras do silogismo ao seu método; tivessem tido o cuidado de propor, primeiramente, as premissas irrefutáveis e não tirar delas senão uma conclusão legítima, e poderíamos acompanhá-los no raciocínio e conferir-lhes um prémio de retórica. Mas, vede em que consiste o seu processo:

  Maior – A força é uma propriedade da matéria.

  Menor – Portanto, uma propriedade da matéria não pode ser considerada superior, criadora ou organizadora dessa matéria.

  Conclusão – Logo, a ideia de Deus é uma concepção absurda.

  É assim que arvoram, antes de tudo, em princípio a tese a discutir.

  Combatendo cerradamente os métodos do Cristianismo, essa gente muito se assemelha aos que, no intuito de provarem aos Romanos a divindade de Jesus, assim começavam:


  – Jesus é Deus, e desse princípio não provado extraiam todas as deduções.

  Convictos estamos de honrar grandemente esses escritores, aplicando aos seus postulados as regras do raciocínio, que eles talvez nunca sonharam seguir.

  Também poderíamos submeter-lhes as pretensões a uma outra forma mais ingénua, assim:

  Antecedente – Matéria e força encontram-se sempre associadas.

  Consequente – Logo, a força é uma qualidade da matéria.

  Aí temos, penso, um entimema de novo género e de consequências bem evidentes, pois não? Mas, é assim que os senhores Alemães raciocinam, bem como os seus clarividentes imitadores, positivistas da nossa moderna França.

  No primeiro caso, o raciocínio peca pela base; e, no segundo, nem mesmo faz jus a essa censura, porque é uma infantilidade.

  Certo, pesa dizê-lo, mas é a essa puerilidade, ou melhor – perversão da faculdade de raciocinar – a que se reduz o movimento materialista dos nossos tempos. E nunca, como aqui, vem a propósito a frase do misantropo que dizia não ser o homem um animal pensador, mas, falador.

  Todo o fundamento desta grande querela, toda a base deste edifício heterogéneo, cujo desmoronamento pode esmagar muitos cérebros sob os escombros; toda a força deste sistema que pretende dominar o mundo, presente e futuro; todo o seu valor e potência, repousam nessa assertiva fantasiosa, arbitrária e jamais demonstrada, de ser a força uma propriedade da matéria.

  E é fingindo acompanhar a rigor as demonstrações científicas e só se apoiar em verdades reconhecidas; é confugindo-se ao estandarte da Ciência, apropriando-se de suas fórmulas e atitudes; é, enfim, com ela mascarando-se, que os pontífices do ateísmo e do niilismo proclamam as suas belas e edificantes doutrinas.

  Mas a Ciência não é uma mascarada. A Ciência fala de viseira erguida, não reivindica falsas manobras, nem luzes de falso brilho. Serena e pura na sua majestade, ela se pronuncia simples, modestamente, como entidade consciente do seu valor intrínseco. Nem procura impor-se e, sobretudo, não aventa coisas de que não possa estar segura. Em vez de afirmar ou negar, investiga e prossegue, laboriosamente, no seu mister.

/…
(i) Körper und Gelst, etc.
(ii) Physiologische Briefe.




Camille Flammarion, Deus na Natureza – Primeira Parte, A Força e a Matéria I - Posição do Problema 5 de 6, 9º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

terça-feira, 22 de abril de 2014

Diálogos de Kardec ~


IV – A Emancipação da Alma 

  Durante o sono, apenas o corpo repousa; o Espírito, esse não dorme; aproveita-se do repouso do primeiro e dos momentos em que a sua presença não é necessária para actuar isoladamente e ir aonde quiser, no gozo então da sua liberdade e da plenitude das suas faculdades. Durante a encarnação, o Espírito jamais se acha completamente separado do corpo; qualquer que seja a distância a que se transporte, conserva-se sempre preso àquele por um laço fluídico que serve para fazê-lo voltar à prisão corpórea, logo que a sua presença ali se torne necessária. Esse laço só a morte o interrompe.

  “Durante o sono, a alma liberta-se parcialmente do corpo. Quando dormimos, ficamos, temporariamente, no estado em que nos acharemos de modo permanente após a morte. Os Espíritos que depois da morte dos seus corpos se desligaram da matéria, tem sonos inteligentes; quando dormem, juntam-se à sociedade de outros seres que lhes são superiores; viajam, conversam e se instruem com eles, trabalham mesmo em obras que, quando morrem, acham inteiramente acabadas. Isto deve ensinar-nos a não temer a morte, pois que morremos todos os dias, como disse um santo.

  “Assim é com relação aos Espíritos elevados. Quanto à generalidade dos homens que, por ocasião da morte, têm de passar por aquela perturbação, por aquela incerteza de que eles próprios nos têm falado, esses vão ou a mundos inferiores à Terra, aonde os chamam antigas afeições, ou em busca de prazeres ainda mais degradantes, talvez, do que os da sua predilecção neste mundo. Vão à procura de vivências ainda mais vis, mais ignóbeis, mais nocivas do que as que entre nós praticaram. O que gera na Terra a simpatia é apenas o facto de que o Espírito, ao despertar, se sente vinculado, pelo coração, àqueles em cuja companhia acaba de passar oito ou nove horas de ventura ou de prazer. Por outro lado, o que também explica essas invencíveis antipatias que uma criatura às vezes experimenta é que ela sente, dentro do seu coração, que os que lhe são antipáticos possuem uma consciência diversa da sua, pois que ela os conhece sem jamais os ter visto. É também o que explica a indiferença, que nasce da circunstância de não nos interessar o granjeio de novos amigos, quando sabemos que outros contamos que nos amam e nos querem. Numa palavra: o sono influi mais do que supomos na nossa vida.

  “Por meio do sono, os Espíritos encarnados estão sempre em relação com o mundo dos Espíritos e é isso o que faz que os Espíritos superiores consintam, sem grande repugnância, em encarnar entre nós. Deus quer que, enquanto se achem em contacto com o vício, eles possam ir retemperar-se na fonte do bem, para não suceder que também venham a falhar, quando o que lhes cabe é instruir os outros. O sono é a porta que Deus lhes abriu para irem ter com os seus amigos do céu; é o recreio após o trabalho, enquanto aguardam a grande libertação, a libertação final que os restituirá ao meio que lhes é próprio.

  “O sonho é a lembrança do que o Espírito viu durante o sono. Notemos, porém, que nem sempre sonhamos, pois que nem sempre nos lembramos do que vimos, ou de tudo o que vimos. É que a nossa alma não se acha em todo o desenvolvimento das suas faculdades; não é, muitas vezes, mais do que a lembrança da perturbação que experimenta à partida ou à volta, à qual se junta a do que fizemos ou do que nos preocupa no estado de vigília. Se assim não fosse, como explicávamos os sonhos absurdos, que tanto os mais sábios, como os mais simples têm? Também os maus Espíritos se servem dos sonhos para atormentar as almas fracas ou pusilânimes.

  “A incoerência dos sonhos ainda se explica pelas lacunas resultantes da recordação incompleta do que durante eles foi visto. Dá-se então o que se daria com uma narrativa da qual se truncassem frases ao acaso: reunidos, os fragmentos que restassem nenhuma significação racional apresentariam.

  “Em suma, dentro em pouco vamos ver desenvolver-se outra espécie de sonhos, tão antigos como os que conhecemos, mas que ainda ignoramos. O sonho de Joana d’Arc, o sonho de Jacob, os sonhos dos profetas judeus e de alguns adivinhos indianos são lembranças que a alma, inteiramente desprendida do corpo, conserva dessa outra vida de que eu ainda não há muito falava.” (O Livro dos Espíritos, Parte 2ª, cap. VIII.)

  A independência e a emancipação da alma se manifestam, de maneira evidente, sobretudo no fenómeno do sonambulismo natural e magnético, na catalepsia e na letargia. A lucidez sonambulica não é senão a faculdade, que a alma tem, de ver e sentir sem o concurso dos órgãos materiais. É um dos seus atributos essa faculdade e reside em todo o seu ser, não passando os órgãos do corpo de estreitos canais por onde lhe chegam certas percepções. A visão à distância, que alguns sonâmbulos possuem, provém de um deslocamento da alma, que então vê o que se passa nos lugares a que se transporta. Nas suas peregrinações, ela se acha sempre revestida do seu perispírito, agente das suas sensações, mas que nunca se desliga completamente do corpo, como já ficou dito. O afastamento da alma produz a inércia do corpo, que às vezes parece sem vida.

  Esse afastamento ou desprendimento pode também operar-se, em graus diversos, no estado de vigília. Mas, então, jamais o corpo goza inteiramente da sua actividade normal; há sempre uma certa absorção, um alheamento mais ou menos completo das coisas terrestres; O corpo não dorme, caminha, age, mas os olhos olham sem ver, dando a compreender que a alma está algures. Como no sonambulismo, ela vê as coisas distantes; tem percepções e sensações que desconhecemos; às vezes, tem a presciência de alguns acontecimentos futuros pela ligação que percebe existir entre eles e os factos presentes. Penetrando no mundo invisível, vê os Espíritos com quem lhe é possível entabular conversação e cujos pensamentos lhe é dado transmitir.

  De volta ao estado normal, de ordinário sobrevém o esquecimento do que se passou. Algumas vezes, porém, ela conserva uma lembrança mais ou menos vaga do ocorrido, como se tivesse tido um sonho.

  Não raro, a emancipação da alma amortece tanto as sensações físicas, que chega a produzir verdadeira insensibilidade que, nos momentos de exaltação, lhe possibilita suportar com indiferença as mais vivas dores. Provém essa insensibilidade do desprendimento do perispírito, agente transmissor das sensações corporais. Ausente, o Espírito não sente as feridas feitas no corpo.

  Na sua manifestação mais simples, a faculdade que a alma tem de emancipar-se produz o que se denomina o devaneio em vigília. A algumas pessoas, essa emancipação também dá a presciência, que se traduz pelos pressentimentos; em grau mais avançado de desprendimento, produz o fenómeno conhecido pelo nome de “segunda vista”, “vista dupla”, ou “sonambulismo vígil”.

  O êxtase é a emancipação da alma no grau máximo. “No sonho e no sonambulismo, a alma vagueia pelos mundos terrestres; no êxtase, penetra num mundo desconhecido, no mundo dos Espíritos etéreos, com os quais entra em comunicação, sem, todavia, poder ultrapassar certos limites, que ela não poderia transpor sem quebrar totalmente os laços que a prendem ao corpo. Cercam-na um brilho resplandecente e desusado fulgor, elevam-na harmonias que na Terra se desconhecem, invade-a indefinível bem-estar; dado lhe é gozar antecipadamente da beatitude celeste e bem se pode dizer que põe um pé no limiar da eternidade. No êxtase, é quase completo o aniquilamento do corpo; já não resta, por assim dizer, senão a vida orgânica e percebe-se que a alma lhe está presa apenas por um fio, que mais um pequeno esforço faria partir-se.” (O Livro dos Espíritos, nº 455.)

  Como em nenhum dos outros graus de emancipação da alma, o êxtase não é isento de erros, pelo que as revelações dos extáticos longe estão de exprimir sempre a verdade absoluta. A razão disso reside na imperfeição do espírito humano; somente quando ele há, chegado ao cume da escala pode julgar das coisas lucidamente; antes não lhe é dado ver tudo, nem tudo compreender. Se, após o fenómeno da morte, quando o desprendimento é completo, ele nem sempre vê com justeza; se muitos há que se conservam imbuídos dos prejuízos da vida, que não compreendem as coisas do mundo visível, onde se encontram, com mais forte razão o mesmo há de suceder com o Espírito ainda retido na carne.

  Há por vezes, nos extáticos, mais exaltação que verdadeira lucidez, ou, melhor, a exaltação lhes prejudica a lucidez, razão por que as suas revelações são com frequência mistura de verdades e erros, de coisas sublimes e outras ridículas. Também os Espíritos inferiores se aproveitam dessa exaltação, que é sempre uma causa de fraqueza quando não há quem saiba governá-la, para dominar o extático, e, para conseguirem os seus fins, assumem aos olhos deste aparências que o aferram às suas ideias e preconceitos, de modo que as suas visões e revelações não vêm a ser mais do que reflexos das suas crenças. É um escolho a que só escapam os Espíritos de ordem elevada, escolho diante do qual o observador deve manter-se em guarda.

  Pessoas há cujo perispírito se identifica de tal maneira com o corpo, que só com extrema dificuldade se opera o desprendimento da alma, mesmo por ocasião da morte; são, em geral, as que viveram mais para a matéria; são também aquelas para as quais a morte é mais penosa, mais cheia de angústias, mais longa e dolorosa a agonia. Outras há, porém, cujas almas, ao contrário, se acham presas ao corpo por liames tão frágeis, que a separação se efectua sem abalos, com a maior facilidade e frequentemente antes que se dê a morte do corpo. Ao aproximar-se-lhes o termo da vida, essas almas entrevêem o mundo onde vão penetrar e pelo qual aspiram no momento da libertação completa.

/…




ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte, Manifestações dos Espíritos IV – A EMANCIPAÇÃO DA ALMA. 8º fragmento solto da obra.
(na imagem: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

segunda-feira, 14 de abril de 2014

~~~Párias em Redenção~~~


A ESTRANHA PERSONAGEM QUE SURGE DO PASSADO ~


  Girólamo somente dia alto recobrou a consciência. Ignorava completamente como retornara ao Palácio T. Doíam-lhe a cabeça e todo o corpo, sentindo-se amolentado, indisposto. Logo recuperou os sentidos, ocorreu-lhe procurar os sogros, a fim de narrar as alucinações de que vinha sentindo-se objecto nos últimos dias. O problema se lhe afigurava grave, por considerar que nenhum mal-estar de ordem física o afligia. Jovem e animoso, aspirava viver longos anos, no entanto… Além disso, desejava figurar no desfile do palio logo mais, e certamente seria visto pelos familiares da esposa, que lhe não compreenderiam a atitude arredia, desconcertante.

  Nesse comenos, Francesco, que já se refizera da noite gasta na insensatez, adentrou-se pela peça, saudando o amigo e fazendo-se acompanhar de servidor doméstico que trazia o desjejum.

  – Salve, Girólamo!

  – Buondi, Francesco!

  – Que farra, moço! Como consumiste tanto vinho? Trouxemos-te desacordado, graças ao nosso paggio, que nos deu as tuas notícias, informando-nos que estavas vencido

  Algo constrangido, o amigo não pôde ocultar a perturbação.

  – Que se passa, Girólamo? Estás estranho como nunca. Vejo-te empalidecer de súbito, e tremes. Estás enfermo?

  – Sim! Creio estar enfermo – assentiu o hóspede, lívio.

  – Se te sentes indisposto, chamarei o médico – redarguiu, cortês, o amigo.

  – Não, não é necessário. Antes que chegasses, eu reflectia sobre a conveniência de visitar os Castaldi. Penso em desfilar nas solenidades do palio, à tarde, e como toda a família de Beatriz estará no palanque de honra, não passarei despercebido. Justificar-me-ei da melhor forma possível, insistindo, todavia, para demorar-me contigo, a instâncias tuas.

  – Aprovado! Sabes que a nossa é também a tua casa. Após o desjejum, espero-te em baixo. Se desejares, irei contigo, em caso contrário… Coragem, homem! Hoje é o dia por que todos esperamos.

  O bom humor do anfitrião contagiou Girólamo, que se ergueu do leito para o ligeiro asseio e repasto. Não obstante as desagradáveis enxaquecas resultantes da ressaca, a juventude ajudou-o no refazimento e, pouco tempo depois, galopava na direcção do Palácio Castaldi, no outro lado da cidade.

  A construção antiga reflectia a opulência dos proprietários, através da torre alta, característica da época. Um pouco recuada da linha de construção na via de acesso, possuía belo jardim, e árvores frondosas davam-lhe agradável sombra em redor.

  Recebido com espontânea alegria, antes que lhe viessem perguntas embaraçosas esclareceu Girólamo que a ausência da esposa se devia ao inesperado da viagem.

  O Conde Lorenzo, todavia, interrogou-o com malícia e astúcia:

  – Vieste ao palio sem Beatriz?

  – Razões imperiosas fizeram-me assim proceder, – atalhou, com habilidade, o genro. – Estava em Florença, a negócios urgentes, e supunha retornar antes, de modo a trazê-la a participar dos festejos. No entanto, fui mortificado a demorar-me por mais tempo do que o previsto. De retorno a casa, aconteceram-me sucessivos mal-estares, o que motivou a minha jornada directamente a esta casa, para poupar Beatriz a preocupações desnecessárias. Logo que amanhã consulte algum esculápio e me asserene, tornarei ao lar e a trarei para um recreio no palácio dos seus pais…

  – Sim, pareces-me cansado, – alvitrou o sogro. – Onde estão a tua bagagem e compras? Vieste até aqui cavalgando?

  – Não, – respondeu com naturalidade. – A viagem foi feita em coche. Encaminhei o empregado a uma hospedaria e aceitei o convite de Francesco, meu velho amigo, para ficar em sua casa, considerando a rapidez da viagem. Atribuí que tivésseis hóspedes aqui e confesso que precisava demorar-me um pouco com o companheiro…

  – Ora, não há problemas… Gostaria que soubesses que iremos competir no palio.

  O Conde mostrava-se descontraído e alegre.

  – Que motivou a vossa atitude?

  Um moço florentino que me veio oferecer serviços. Não o conheces. E após uma pausa, com um sorriso: – Vem, Girólamo, vem comigo. Ele está aprestando-se para o desfile. Representará o nosso contrada e desfilará com as cores da nossa casa: o branco, o verde, e o vermelho. O contrada oca (*) apresentar-se-á pela primeira vez e esperamos vencer.

  Tomando o genro pelo braço, desceu às cavalariças e apresentou um robusto e belo jovem de menos de 18 anos, aprumado e queimado de sol, que parecia fogoso animal na raia da partida numa disputa hípica.

  As cavalariças estavam movimentadas e, numa baia, admirável palafrém recebia conveniente tratamento de escovas e ração, para o desfile da tarde.

  – Aproxima-te, Carlo! – O Conde Lorenzo chamou o moço, que somente possuía atenções para o animal e para si mesmo. – Este é o Conde Girólamo Cherubini, meu genro.

  Fazendo uma curvatura respeitosa, o florentino saudou-os com todo o respeito, ao amo e ao nobre visitante.

  No afã do entusiasmo, Dom Lorenzo tagarelava efusivamente:

  – Garanto-te que é o melhor ginete que já esteve por estas bandas. Experimentámo-lo muitas vezes. Apostei expressiva soma de escudos e antegozo a vitória. Não te entusiasmas?! Deves estar, mesmo, enfermo. Retornemos… Mal suporto aguardar a hora… Aprontemo-nos, a nosso turno.

  Quando o Conde Cherubini olhou, de relance, Carlo teve um lampejo desagradável, que lesto dissimulou. A sua vez, Girólamo sentiu-se desgostoso com a presença do florentino. Uma antipatia natural, recíproca, flechou-os a ambos, naquele defrontar de espíritos, em circunstância grave, embora a aparência contrária.

  Dali saindo, Girólamo, despeitado com as homenagens que o sogro demonstrava para com o estranho, bon Gré, mal gré, indagou:

  – Donde o conheceis? Trouxe-vos ele carta de recomendação? Pareceu-me vulgar e atrevido. O quanto gostei do animal, detestei o cavaleiro.

  – Não, meu caro, não é o que parece. Pelo contrário: é muito servil e bajulador. Foi-me encaminhado por Schiapparelli, o milanês. Estás cansado, enfadado. Preparemo-nos para a festa.

  – Deverei apressar-me, também, retornando ao Palácio T., para reunir-me a Francesco. Estaremos no desfile entre as autoridades senenses, disputando aplausos. (A vaidade fê-lo sorrir.) Como sabemos que estareis na praça, entre as representações mais importantes… Voltarei depois, para relatar-vos minha enfermidade e ouvir-vos.

  – Não vais saudar a Senhora Condessa?

  – Perdoai-me e pedi desculpa por mim. Logo voltarei. O tempo urge…

  Conduzido ao animal que o aguardava, logo partiu.

  Carlo, porém, não pôde refrear as lembranças. Mesmo após o afastamento do moço nobre, experimentou singular constrangimento. Tinha a impressão de conhecê-lo. Começou a sindicar entre os cavalariços e informou-se da origem do Conde Cherubini e das tragédias que aconteceram, alguns anos recuados, no Solar di Bicci.

  A tagarelice de servos e domésticos, bem como a leviandade de amos e patrões são responsáveis por muitas desgraças, em todos os tempos. A irresponsabilidade de uns e a frivolidade de outros têm veiculado muitas dores em forma de intrigas, traições, delações, calúnias… e verdades de muitos matizes, que poderiam ser evitadas.

  Dando-se conta do peso de misérias que ocorriam a personalidade do visitante, Carlo recordou-se de conhecer aquele rosto, aqueles gestos nervosos, aquele porte… O importante, porém, no momento, era o desfile e a tal entregou-se de mente e coração.

  Enquanto galopava, Girólamo padecia de um presságio desconcertante. Carlo parecia-lhe um inimigo que pela primeira vez defrontava. A ousadia com que o jovem o fitara ferira-o mortalmente. Talvez nele se defrontasse consigo mesmo: aventureiro, atrevido, pusilânime… A verdade é que se sentia perturbado. Procurou banir da mente enferma as ideias deprimentes e acelerou o passo do animal.

  As ruas regurgitavam de gentes. O sol estava a pino, e o ar parado, morno, desagradava. Havia, todavia, por toda a parte, algazarra e movimento.

  Logo chegou ao Palácio T., encontrou a vetusta construção decorada, festivamente, com as cores da família, os pavilhões novos a escorrerem das amplas janelas ogivais, e grande agitação dos visitantes e amigos, que se apresentavam para acompanhar o grupo do nobre Francesco. Apressando-se, Girólamo requisitou um servo para banhá-lo e trajou-se garboso, retirando da arca que trouxera o estandarte da família Bicci, com as borlas características, que eram herdadas da família M. Talvez a sua ousadia provocasse um atrito com os descendentes de Buonaventura, na exibição pretendida. Desejava, entretanto, firmar-se, em definitivo, no conceito geral da cidade, que esperava conquistar, malgrado a disputa que se travava em todos os recantos, pela supremacia dos novos donos do prazer…

  Tivera anteriormente o cuidado de requerer às autoridades modificação no brasão da família, visto que doravante ele se transformaria no tronco de nova árvore genealógica, e adicionara o falcão – que bem representava – aos símbolos do extinto duque. Naquela ocasião, exibiria à cidade, com garbo, as suas insígnias: Conde e cavaliere Dom Girólamo Cherubini di Bicci!

  Enquanto pensava, sentiu-se intumescer de vaidade e orgulho. Atingia, por fim, a ambicionada projecção social, pouco importando o preço que pagara para colimar os objectivos a que se propusera, desde há muito tempo. Enfrentaria a morte, os duelos e repetiria os homicídios, se necessário, para preservar o património árduo, cruamente conquistado.

  Francesco penetrou na peça do hóspede e gritou:

  – Avia-te, homem, ou perdemos o melhor…

  Era guapo o amigo, reconhecia Girólamo, que muito o estimava. Alto e airoso, tinha a cabeleira abundante e encarcolada para dentro, a cair, em tom de mel, sob o capuz de seda que ostentava. O traje colante e em escumilha brilhante tornava-o um deus grego, por momentos descido à Terra. O rosto, de zigomas salientes, e os olhos fulgurantes traíam-lhe a masculinidade. Os lábios grossos, bem desenhados, reflectiam a sensualidade e as narinas arfantes falavam das paixões dificilmente reprimíveis.

  – Estou pronto! Desçamos!

  Os amigos se apoiaram jovialmente, braço a braço, e desceram a larga escada, em ruidosa gargalhada. Em baixo, Lucrécia, cercada pelas damas de companhia, estava deslumbrante. Os moços ficaram estonteados. A jovem dama surpreendia-os, qual se fora um botão de rosa não colhido, saindo das primeiras pétalas a se entreabrirem…

/…

(*) Contrada oca: bairro do ganso.




VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 8. A ESTRANHA PERSONAGEM QUE SURGE DO PASSADO (1 de 3) 26º fragmento da obra. Texto mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt _1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgar Maxence)

sábado, 5 de abril de 2014

O Espiritismo na Arte ~


Parte V

Participação do mundo espiritual na obra humana.
Espiritismo, novo e vigoroso impulso ao pensamento.

|Maio de 1922|

Num tópico anterior, vimos que a preponderância da literatura francesa se sustentou por muito tempo. Ela possuía tudo o que seduz e cativa. No entanto, uma evolução se impõe, e chega um momento, na história do pensamento, em que a palavra e o gesto já não são suficientes para traduzir as emoções da alma. E é nessa altura que o senso musical desperta e entra em acção na própria literatura, que deve ser como um reflexo da harmonia superior. A manifestação dessa tendência marca um grau a mais na ascensão do espírito em direcção aos níveis mais elevados, assim como acontece no espaço onde a palavra deixa de ser empregada.

Essa evolução do pensamento e das suas manifestações, sob suas inúmeras formas, arte, ciências, letras, será dirigida por uma participação cada vez mais íntima e profunda do mundo espiritual na obra humana.

A revelação espírita proporciona-nos inesgotáveis temas de inspiração e de sensação. Ela nos inicia nas condições de uma vida mais subtil, vida que é a finalidade essencial de toda a ascensão e da qual os detalhes introduzem, nos programas de estudo e pesquisa, uma variedade de elementos que estendem ao infinito os limites das nossas concepções, dos nossos conhecimentos. Daí resulta, forçosamente, uma fecundação, uma renovação completa de ideal que se desfaria e se alteraria sob o domínio das teorias materialistas ou dogmáticas, domínio que vai ter fim, apesar dos esforços desesperados dos seus partidários.

Assim, o Espiritismo dá ao pensamento um novo e vigoroso impulso. Ele traça, na história dos seres e dos mundos, um círculo imenso, que permite todos os sonhos, todos os voos da imaginação; ele abre novas saídas para tudo o que faz o poder, a grandeza, a beleza do Universo.

Até aqui, a forma literária pôde parecer suficiente para exaltar os sentimentos nacionais e tudo o que se relaciona à epopeia das raças humanas e à vida planetária em geral. Ela pôde mesmo parecer excelente e produzir obras-primas que ficarão como monumentos imperecíveis do pensamento e do sentimento. Porém, por mais excelente que ela seja, a literatura torna-se pobre quando se trata de reproduzir as formas superiores da actividade humana.

À medida que os seus horizontes se alargam e que a humanidade se comunica com a vida universal, formas mais perfeitas de expressão e de sensação se tornam necessárias, para responder ao estado vibratório, às radiações crescentes da alma. Uma intuição segura, o instinto do belo, levam o ser espiritual a substituir, na expressão do seu pensamento e no entusiasmo de sua alma, a harmonia pura pela palavra e pela letra. Porém, as revelações do invisível o estimulam a empregar, por sua vez, os procedimentos em uso na vida do espaço.


As qualidades de um belo estilo |

O verdadeiro mérito literário, as qualidades de um belo estilo, consistem em provocar o pensamento, as reflexões do leitor, em lhe criar uma atmosfera mental que contribua para desenvolver, para enriquecer as suas faculdades, as suas forças morais.

Sem dúvida, fazer pensar é nobre, mas o que é mais nobre e mais meritório é elevar a alma em direcção às alturas onde todas essas faculdades se desenvolvem na luz e no amor. É ajudá-la a atingir o grau de evolução que lhe permitirá sentir, não pelos seus órgãos materiais, mas nos seus sentidos íntimos e profundos, as alegrias, as satisfações da vida superior; sentir essa vibração suprema que enche o Universo, segundo o ilustre Esteta, e que provoca a comunhão definitiva com o pensamento divino, o êxtase na beleza compreendida e realizada.


Teatro, meio de educação intelectual e moral; sua decadência |

As obras verdadeiramente belas e importantes tornaram-se raras entre os modernos, seja nas letras ou mesmo no teatro. Este poderia ser um poderoso meio de educação intelectual e moral, pela elevação dos pensamentos, dos sentimentos, pelos nobres exemplos postos diante do público.

Porém, em lugar da sua missão grandiosa e benfazeja, o teatro tornou-se muito frequentemente um método para favorecer as paixões doentias, excitar os sentidos. Em todos esses casos, ele se torna a obra de cépticos gozadores, ignorantes ou descuidados do verdadeiro objectivo da vida; é a espuma brilhante e insalubre, o fruto mórbido de uma civilização deformada pela sedução do prazer e das riquezas.

Quantas vezes, atraído pelo título de uma nova peça, por um brilhante cartaz, fui aos maiores teatros parisienses, na esperança de ali encontrar um alimento substancial no decorrer de uma noite bem empregada. Pobre de mim! as minhas decepções não se contam mais. Em lugar da substância fecunda que eu esperava, eram cenas banais ou equívocas que se desenrolavam diante dos meus olhos. Muita engenhosidade ali se empregava, sem dúvida. As palavras espirituais brotavam em feixes cintilantes ou flutuavam, como bolhas de sabão irisadas, sob as luzes da ribalta (i), mas que o menor sopro arrasta sem deixar nenhum traço na lembrança nem na consciência do espectador, porquanto, o pensamento elevado, o exemplo encorajador, o ensinamento consolador sempre se encontravam ausentes. Além disso, a impressão que dali emanava era a de um vazio ou de impotência, quando não era ainda pior.

É preciso devolver ao teatro a sua dignidade, reconstituir o ideal da cena desonrado por autores inaptos e corrompidos.

Com o espectáculo mudando costumes e meios sociais, que constituem a trama da comédia, é preciso saber escolher o que pode elevar as inteligências e os corações. No entanto, como nos nossos autores contemporâneos o que domina é sempre o tema do amor culpado, do amor doentio, assim se aguçam os apetites carnais, se alimentam as paixões, precipita-se a decadência do teatro e trabalha-se para a corrupção geral.

Parece que a nossa época tem um gosto particular pelos tóxicos. Na ordem material, esse gosto traduz-se pelo uso imoderado do álcool e do tabaco, até mesmo do ópio, do éter e de outras drogas maléficas, de tudo o que provoca as desordens físicas, arruína a saúde, faz a raça definhar. Na classe intelectual, esse gosto manifesta-se por uma espécie de predilecção por uma literatura e espectáculos pervertidos. Aqui o mal é ainda mais grave, porque é a consciência, o senso moral, a dignidade do homem que são atingidos. E daí resulta uma expansão dos apetites sensuais, uma orientação defeituosa da vida e das faculdades.

Eis por que convém procurar todos os meios de elevar as almas, os pensamentos, em direcção a essas regiões em que as emanações do alto varrem todas as impurezas.

Desses cumes radiosos, contempla-se e penetra-se melhor a essência das coisas e de lá se desce com a soma de energia necessária para prosseguir nas lutas deste mundo e afastar de si as tentações perigosas, os prazeres aviltantes.

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LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte V Participação do mundo espiritual na obra humana / Espiritismo, novo e vigoroso impulso ao pensamento  As qualidades de um belo estilo / Teatro, meio de educação intelectual e moral; sua decadência (1 de 4) 20º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Mona Lisa 1503-1507 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)