O mito bíblico da matança das crianças por ordem de Herodes, o Grande, para
livrar-se do Messias, passou para o Evangelho em forma de realidade histórica.
Que é mito, não há dúvida, pois tem todas as características míticas e se
apresenta ligado ao contexto mitológico, ingénuo e poético, do nascimento de
Jesus (i) em
Belém de Judá. Mas todo o mito é gerado na imaginação do povo a partir de
factos reais. Tanto a nobreza israelita quanto os dominadores romanos da
Palestina temiam o aparecimento do Messias e até mesmo a ideia de que o Messias
estivesse crescendo no meio do povo. Assim, era conveniente sacrificar as
crianças entre as quais ele se devia esconder. O sangue
inocente, principalmente de crianças, teve sempre significação mágica na
Mitologia de todos os povos. A matança de crianças no Monte Santo, num ambiente
de fanatismo delirante, descrito por Euclides da Cunha (i) em Os
Sertões, tem o mesmo cheiro nauseabundo do infanticídio herodiano. Mas
o que nos importa neste caso é a tentativa de matar o Cristianismo no berço,
que se repetiria no caso do Espiritismo. Se as forças dominantes na
Judeia se conjugaram contra a ameaça que vinha da Galileia, também no mundo
moderno veríamos a reunião de todas as forças do sistema contra a ameaça do
Espiritismo, que nascia ao mesmo tempo na América e no centro da civilização
europeia, que era Paris. As irmãs Fox (i) em
Hidesville foram impiedosamente trucidadas. E se as meninas Boudin não o foram
em Paris, isso se deveu à cautela de Kardec, que lhes ocultou os nomes e
simbolicamente as mandou, no mesmo burrinho que levou Maria e José ao Egipto,
para os confins das Gálias, escondendo-as entre os dólmens e os
carvalhos dos druidas. Não
obstante essa precaução, os asseclas herodianos, reencarnados em sacerdotes
cristãos e cientistas europeus, esquartejaram cada criança que encontravam
pelos caminhos da incipiente e arrogante cultura da época. Os tempos haviam
mudado após as deslumbrantes conquistas técnicas da Ciência no Século XVIII e,
Kardec não chegou a ser crucificado, mas o submeteram a todas as torturas
refinadas e os retardatários inquisidores espanhóis o queimaram em Barcelona,
na efígie simbólica das suas obras.
Como no caso cristão, tudo isso foi inútil. O Espiritismo impôs-se entre as
novidades culturais da época, os Saulos da Ciência foram convertidos pela
evidência dos fenómenos e o Cristo Ressuscitado reapareceu na Europa. Por sinal
que essa transposição já tinha um precedente: a da fuga de Maria de Magdala para
a França após a crucificação, segundo a lenda.
O paralelismo prossegue. Simão, o Mago (i),
que queria obter os segredos da mágica de Paulo,
reaparece na figura de Oudine, o mágico moderno que desejava descobrir os
truques do médium escocês, não espírita, pertencente a uma
linhagem nobre, Daniel Douglas Home, que produzia manifestações
ectoplásmicas de mãos que se materializavam e
levitavam na presença de assistentes assustados. Richet (i), o
maior fisiologista do século, à maneira de Tomé, não acreditava na ressurreição
e tocou as chagas da verdade crucificada com a ponta dos dedos. Crawford (i), professor de mecânica da Universidade de Belfast,
descobria a alavanca de ectoplasma com que os fenómenos de levitação se
produziam. Conan Doyle (i) tornava-se
o Apóstolo dos Gentios entre os povos africanos. Ochorowicz (i) desdobrava,
sem saber como nem porquê, o corpo da médium Stanislava. Shrenck-Notzing (i) descobria
os processos de emissão e reabsorção do ectoplasma pelos médiuns e obtinha as
primeiras análises de laboratório, em Berlim e Viena, sobre a constituição
física dessa estranha matéria orgânica.
A luta contra o Cristianismo só se tornou eficaz quando os adeptos se deixaram
fascinar pelo já agonizante Império Romano. Graças a essa fascinação o Império
conseguiu submeter o Cristianismo ao seu serviço e o desfigurou em pouco
tempo. No Espiritismo temos agora a técnica semelhante do Império das
Trevas, organizado nas regiões inferiores do mundo espiritual, onde os
espíritos apegados à matéria, revestidos de corpo espiritual em que os
elementos materiais predominam, continuam a viver em condições terrenas. Uma
população maior do que a encarnada na crosta do planeta, essas entidades
disputam as almas ignorantes e vaidosas das fileiras espíritas e as utilizam
como instrumentos de confusão no meio doutrinário. As mistificações
mais grosseiras são aceites por esses adeptos vaidosos, que chegam à
audácia extrema de aviltar os textos da Codificação Kardeciana e tentar
substituí-los por obras eivadas de contradições e absurdos de toda a espécie.
Ao invés de procurarem instruir-se melhor nos seus conhecimentos, pretendem
transformar-se em novos reveladores de mistérios assombrosos. Há várias
correntes já formadas no meio espírita, contra as quais as pessoas sensatas
precisam precaver-se. É claro que essas mistificações de homens fátuos
e espíritos inconsequentes serão varridas pela evolução, mas até que isso
aconteça haverá tempo suficiente para que muitas criaturas ingénuas sejam
envolvidas em processos obsessivos. Todo o espírita consciente de suas
responsabilidades humanas e doutrinárias está no dever intransferível de lutar
contra essas ondas de poluição espiritual que pesam na atmosfera terrena.
Ninguém tem o direito de cruzar os braços em nome de uma falsa tolerância que
os levará à cumplicidade. Os próprios e infelizes corifeus e propagadores
dessas teorias ridículas são os mais necessitados de socorro. É
caridade legítima repelir todas essas fantasias em nome da verdade, mesmo que
isso magoe os companheiros iludidos. A tolerância comodista dos que vêem o erro
e se calam é crime que terá de ser pago no futuro. Quem pactua com o erro para
não criar problemas, está, sem o saber, enleando-se nas teias sombrias da
mentira, compromissando-se com os mentirosos. E esse compromisso é um
desrespeito a todos os que se sacrificaram no passado e se sacrificam no
presente para ajudar a Humanidade na defesa dos seus direitos evolutivos. Este
é o momento grave da evolução terrena em que não podemos esquecer a advertência
de Jesus: Seja
o teu falar sim, sim; não, não. Multidões de criaturas foram sacrificadas
no passado para que a Humanidade se libertasse dos seus enganos e pudesse
encontrar os caminhos limpos da verdade, ou seja, das coisas reais,
verdadeiras, que nos conduzem ao saber e à liberdade. Se trairmos hoje,
comodistamente, esses mártires inumeráveis, estaremos conspurcando a dignidade
humana, cobrindo de lixo as sendas da verdade abertas pelo Cristo e agora
reabertas pelo Espírito de Verdade através de Kardec.
Trocar o ensino puro do Mestre pelas bugigangas de camelôs vaidosos
é fazer o papel dos porcos da parábola, que rejeitam as pérolas e avançam,
raivosos contra quem as oferece. Palavras duras, sem dúvida, mas que foram
usadas por Jesus para
despertar as almas empedernidas. Já não há lugar para comodismos, compadrismos,
tolerâncias criminosas no meio espírita. Cada um será responsável pelas ervas
daninhas que deixar crescer à sua volta. É essa a maneira mais eficaz de se
combater o Espiritismo na actualidade: cruzar os braços, sorrir amarelo,
concordar para não contrariar, porque, nesse caso, o combate à doutrina não vem
de fora, mas de dentro do movimento doutrinário.
A mais ridícula mistificação da doutrina, o Roustainguismo, continua a dominar
a Federação Espírita Brasileira, que reedita e propaga, sustenta e defende a
obra Os Quatro Evangelhos. Jean-Baptiste
Roustaing, advogado em Bordeaux, na França, publicou essa obra no tempo de
Kardec. O mestre a examinou e criticou com paciência cristã. Depois dele,
muitos outros espíritas lúcidos e cultos denunciaram as incongruências dessa
obra, decalque e deformação da obra Kardeciana. O próprio advogado
explicou no prefácio da obra, com a ingenuidade típica dos fascinados, as
condições precárias de saúde em que se encontrava quando a recebeu, depois de
evocações temerárias. A mecânica da mistificação foi exposta ao
público pela própria vítima. Roustaing é o anti-Kardec, mente confusa,
misticismo beato e portanto vulgar, crendice popularesca, falta absoluta de
critério científico, desprezo pelos dados históricos, mitologia arcaica,
raciocínio confessadamente avariado, aceitação pacífica de teses clericais
obscurantistas, posições anedóticas na explicação dos factos evangélicos (a
falsa gravidez de Maria, Jesus-menino fingindo que sugava o seio da mãe e
devolvendo-lhe magicamente o leite aos vasos sanguíneos em forma de sangue, espíritos
superiores reencarnando em mundos inferiores como criptógamos carnudos,
em forma de lesmas em carne humana e assim por diante). Um montão de coisas
ridículas que se repetem nos cansativos volumes da obra num ritornelo (*) desesperante. E
homens de cultura normal (não pode ser superior) a vangloriarem-se dessas
tolices ao ponto de considerarem a FEB como – pasmem as criaturas de mediano
bom senso – como a Casa-Máter do Espiritismo. Ignoram
certamente a existência histórica da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas
e todo o trabalho exaustivo de Kardec. Várias Federações Estaduais atrelaram-se
ao carro funerário dessa Mistificação.
A Federação Espírita do Estado de São Paulo, considerada durante anos como
instituição bem orientada, passou por períodos de aceitação e estudo das obras
de Ramatis, eivadas de pretensões paranóicas e teorias absurdas sobre Jesus,
sobre a mediunidade, sobre práticas mágicas, carregadas de afirmações ridículas
sobre o passado da Terra, a existência da Atlântida, as relações de vidas
anteriores de Jesus e Maria Madalena e assim por diante. Recentemente, depois
do escândalo da adulteração de O Evangelho Segundo o Espiritismo,
depois de dez anos de ausência, O Livro dos Espíritos, obra
fundamental da doutrina, reapareceu nos cursos de algumas casas, como
novidade. Kardec havia sido apanhado por estar superado. Onde
a convicção, a fé, a certeza racional dos princípios doutrinários, hoje
cientificamente comprovados, andaram nesse longo intervalo de vacilações e de
apego a obras dessa espécie?
Bastam esses factos para nos mostrar que o Espiritismo é o Grande
Desconhecido dos próprios espíritas. E é por isso, por causa
dessa negligência imperdoável no estudo da doutrina, que os próprios adeptos se
transformaram em instrumentos eficientes de combate ao Espiritismo. As
pessoas de bom senso e cultura se afastam horrorizadas de um meio em que só
poderiam permanecer em ritmo de retrocesso ao condicionamento das crendices e
do fanatismo. No campo científico o nada não existe nem pode existir. E
como a base da doutrina é a Ciência, a sólida base dos factos, a verdade
incontestável é que o nosso movimento espírita não tem base. Se os espíritas
conscientes não se dispuserem a uma tentativa de reconstrução, de reerguimento
desse edifício em perigo, ficaremos na condição de nababos que desprezam as
suas riquezas por incompetência para geri-las. Temos nas mãos a
Ciência Admirável que o Espírito de Verdade propôs a Descartes e
mais tarde confiou a Kardec. Mas do que vale a ciência e o poder, a fortuna e a
glória, se não formos capazes de zelar por tudo isso e nem mesmo de compreender
o que possuímos? Nós mesmos abrimos o portal da muralha e recolhemos, alegres
e estultos,
o Cavalo de Tróia na nossa fortaleza inexpugnável.
Os homens, em geral, não conhecem o ritmo de execução das programações divinas.
Mas os espíritas, em particular, não podem desconhecê-lo. Sabem que a
Terra não é um mundo perdido no espaço sideral, mas regido pelas leis naturais
no âmbito de uma vasta programação para o desenvolvimento da galáxia em que se
inclui. Podemos falhar na crosta terrena por nossa incúria e despreocupação,
mas nos computadores cósmicos os Espíritos Superiores zelam pelo cumprimento
dos desígnios de Deus. Desde meados do século passado fomos avisados,
através de mensagens dirigidas a Kardec, de que a evolução terrena começara a
acelerar-se com a chamada Guerra da Itália e avançaria irresistivelmente
através de guerras e convulsões sociais, revoluções científicas e morais, num
ambiente de tensão em que os valores de uma civilização, coitada, feita de
arrebiques, ruiriam ao impacto das grandes transformações. Kardec perguntou,
preocupado, se haveria convulsões geológicas devastadoras. Os Espíritos
responderam que não se tratava disso, mas de profundas convulsões morais que
sacudiriam todas as nações. O estudo dessas mensagens mostrou-nos que
o período anunciado abrangeria todo o século XX, numa espécie de revisão febril
de toda a realidade planetária. Hoje vemos, próximo ao fim do século, que a
programação se cumpriu e acelera o seu ritmo cada vez mais, como devêssemos
entrar no terceiro milénio da Era Cristã com a velocidade de um foguete
espacial. Não temos motivos para duvidar daquilo que vemos com os nossos olhos
e sentimos na nossa pele. Não podemos também duvidar da realidade de pequena
parte da programação que nos foi revelada e realmente se cumpriu. Sabemos,
portanto, com segurança, que estamos a entrar na Era Cósmica, nessa era nova em
que a Terra entrará no sistema cósmico de relações dos mundos. Mas se
não tomarmos consciência disso e não procurármos cumprir os nossos deveres,
seremos substituídos e passaremos à condição de povos
deserdados. O nosso apego doentio aos bens perecíveis nos farão incapazes de
tratar dos bens do espírito, que temos negligenciado.
Sabemos claramente que estamos divididos, embora materialmente fundidos no
plano material e semi-material, numa grande mistura de graus evolutivos. A
lei das migrações cósmicas poderá lançar-nos, em grande parte, em mundos
dolorosos de reajuste e recuperação, enquanto a parte evoluída de
nossa humanidade continuará na Terra, auxiliada por contingentes de povos mais
aptos e responsáveis.
Não se trata de uma ameaça nem de um castigo, mas apenas do que poderíamos
chamar medidas administrativas em nosso próprio benefício.
Temos exemplos constantes dessas medidas na colheita diária que a morte realiza
sem cessar à nossa volta. Vemos, pelas comunicações dos espíritos nas nossas
sessões de doutrinação e desobsessão, onde a maioria dos mortos comparece em
situação precária. Foram removidos, aqui mesmo, do âmbito da vida terrena, para
regiões de provas a que se adaptam penosamente, sem se conformarem de não haver
encontrado as regiões felizes com que sonhavam. Temos ainda o aviso
das mensagens psicográficas, em que se destacam as recebidas por Chico Xavier,
ora estimulando o nosso esforço na compreensão e no bem, ora advertindo-nos
quanto às dificuldades encontradas pelos que perderam o seu tempo.
Os filósofos que pesquisaram o problema da consciência humana e,
particularmente Wilhelm Dilthey, que tratou particularmente da transição da
consciência pagã para a consciência cristã, ressaltaram a importância do
conceito de Providência Divina, formulado pelo Judaísmo. Os deuses
pagãos eram mitos copiados da própria psique humana. Tinham a leviandade e a
displicência dos homens. Intervinham nas suas disputas,
participavam das suas guerras, conquistavam as mulheres e as filhas dos homens,
usavam de discriminações injustas e pouco se importavam com os problemas
superiores. Iavé, o deus judeu, era também um deus pagão dotado de
todos os defeitos dos demais. Mas interessou-se pelo destino do seu povo e
assumiu o seu comando, pelo que foi chamado de Deus dos Exércitos. Jesus
aproveitou-se dessa oportunidade, espécie de abertura na concepção inferior dos
deuses, para dar ênfase à intervenção divina nas questões humanas. O
conceito superior do Deus-Pai, vigilante e providencial, gerou e abriu
possibilidades à compreensão da Providência Divina, pela qual Deus – Único e
Absoluto – surgia como o orientador dos povos. Essa ideia da Providência,
juntamente com o conceito grego do Logos ou Razão Divina e o conceito romano de
Justiça, constituem, segundo Dilthey, os elementos naturais da consciência
universal criada pelo Cristianismo. A preocupação com os mundos siderais,
existente nas civilizações astrológicas, tomou aspecto mais positivo e racional
no Cristianismo, dando nascimento à ideia da pluralidade dos mundos habitados.
As referências de Jesus às muitas moradas da casa do Pai reforçou poderosamente
essa visão cósmica, já bem assinalada na Filosofia de Pitágoras (i),
com a sua teoria da Música das Esferas no Infinito. A posição
racional de Jesus, não obstante o clima místico e mitológico da época,
repercutiu no Renascimento e se definiu em plano científico com as
contribuições de Galileu (i) e
Copérnico (i). No Espiritismo o problema tomou corpo e se impôs de
maneira decisiva, com as numerosas comunicações mediúnicas referentes a outros
mundos. Kardec incluiu em O Livro dos Espíritos a famosa Escala
dos Mundos e o astrónomo Camille Flammarion (i),
médium psicógrafo que trabalhava com Kardec, publicou o livro Pluralidade
dos Mundos Habitados, que teve grande repercussão em todo o mundo. O
dramaturgo Victorien Sardou (i) recebeu,
na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, numerosos desenhos, assinados por
Bernard Pallissy (i) e Mozart (i),
referentes a Júpiter, considerado como o mundo mais adiantado do nosso sistema
solar. A teoria das migrações planetárias, dada mediunicamente por espíritos
elevados, completou esse quadro do Universo habitado em todas as suas dimensões
e da chamada solidariedade dos mundos, pela qual os mais adiantados
auxiliam o progresso dos mundos inferiores. As migrações ocorrem nas fases de
grandes e profundas transformações culturais nos mundos, com a providência
administrativa da transferência de populações de um mundo para outro,
facilitando o progresso de populações retardatárias.
O avanço actual das pesquisas cósmicas vem confirmando a teoria espírita a
respeito, de maneira lenta, mas segura. Kardec declarou que o Espiritismo não é
Astronomia, mas Ciência do Espírito e, que deve esperar dos astrónomos a
solução positiva do problema. O desenvolvimento da Astronáutica reforçou nos
nossos dias essa posição Kardeciana. Flammarion observou que o princípio
da reencarnação é o corolário do princípio de pluralidade
dos mundos habitados.
A posição de Kardec no século XIX foi a de um intelectual europeu bem integrado
na cultura da época, preocupado com a solução dos problemas do mundo através da
Educação. Embora pertencesse a uma família tradicional de Lyon, formada de
advogados e magistrados, a sua vocação o levou para os estudos científicos e
educacionais. Feitos os estudos iniciais na sua cidade natal, os pais o
enviaram para a Suíça para completar a sua formação no Colégio de Yverdun,
com Pestalozzi. Integrou-se na linha do pensamento
pestaloziano, de um humanismo aberto e universalista que tinha as suas raízes
em Rousseau. Aprofundou-se no estudo das ciências médicas e
exerceu em Paris, como atesta o seu amigo Henri Sausse, confirmado pelas
pesquisas recentes de André Moreill, mas se voltou em definitivo para a
Pedagogia, dando continuidade aos trabalhos de Pestalozzi. Teve as suas obras
adoptadas pela Universidade de França e exerceu nela o cargo de director de
estudos. Viveu pobre e solitário num modesto apartamento da Rua dos Martyres,
em Paris, tendo-se casado com a professora Amellie Boudet, da qual não teve
filhos. Vida de trabalho, tranquila e morigerada, bem conceituado nos meios
culturais da França pela sua cultura, o seu bom senso, a sua seriedade e
dedicação ao trabalho. Escritor de ideias amplas e mente arejada, possuía o
estilo didáctico que se pode apreciar nas suas obras. Nunca pretendeu ser um
messias ou fundador de religião, segundo informam até hoje alguns dicionários
enciclopédicos mundiais. O seu nome civil era Hyppolyte Léon Denizard Rivail,
com que assinou as suas obras universitárias e o famoso estudo que fez para uma
remodelação do Ensino na França. Ao entregar-se à pesquisa dos fenómenos
espíritas e organizar O Livro dos Espíritos, adoptou o pseudónimo
de Allan Kardec, para estabelecer a necessária distinção entre as suas obras
pedagógicas e os seus livros espíritas. O pseudónimo foi-lhe sugerido pelo seu
espírito orientador, que lhe disse haver sido o seu nome na encarnação
anterior, como druida, ou seja, sacerdote celta na
Gália. Fundou a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, para pesquisas,
a Revista Espírita para divulgação e sustentação do
Espiritismo e, no espaço de quinze anos codificou a Doutrina Espírita e
universalizou o movimento doutrinário. Começou as investigações espíritas em
1854 e faleceu subitamente em 1869, deixando concluídas as suas obras
fundamentais da doutrina, que exerceram a função de uma introdução geral a toda
a problemática do Século XX.
Kardec teve contra ele e às suas ideias as forças conjugadas da segunda metade
do século passado. A colecção da Revista Espírita, traduzida
integralmente em São Paulo pelo engenheiro Júlio Abreu Filho (i),
foi lançada pela Editora Cultural Espírita (EDICEL) em doze volumes de 400
páginas em média cada um. O tradutor concluiu o seu trabalho exaustivo em
condições precárias de saúde, falecendo pouco depois. Dedicou-se extremamente a
esse trabalho, mas o seu estado de saúde não lhe permitiu atingir a perfeição
desejada. A EDICEL convocou uma comissão de estudiosos do assunto para revisar
todo o trabalho, constituída pelos Professores J. Herculano Pires, J. A.
Chaves, Miguel Mairt e Anne Marie Marcier. Essa comissão não chegou a concluir
toda a revisão. O primeiro incumbiu-se de traduzir em versos as numerosas
poesias do texto, que Júlio traduzira em prosa. As poesias traduzidas foram
publicadas na Revista no seu texto original francês e na
tradução portuguesa em disposição paralela, para verificação e comparação dos
leitores. São poemas de notável beleza, psicografados por diversos médiuns e,
poemas de poetas espíritas, entre os quais uma série curiosa de um leitor
da Revista, Sr. Dombe, que se tornou o fabulista espírita clássico
de Esopo (i).
Kardec estabeleceu a linha epistemológica da doutrina na sequência lógica:
Ciência, Filosofia e Religião, admitindo esta última como Moralidade,
segundo a concepção de Pestalozzi, rejeitando a sua comparação com as religiões
formalistas e dogmáticas. A Religião Espírita é livre e aberta, sem sacerdócio
nem sacramentos, apoiada nas conquistas científicas e nos desenvolvimentos da
Filosofia, buscando a verdade que só pode ser obtida pela adequação do
pensamento à realidade comprovada pelos factos cientificamente provados.
/…
(*) Qualquer coisa que se repete ou se reproduz
em demasia.
José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, XX – Como
Combater o Espiritismo, 22º fragmento e o último desta obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo
por sobre os campos celestes, acrílico de Costa Brites)