~~~ Espírito Rossini
(1)
Há pouco tempo, na sede da Sociedade Espírita
de Paris, o seu presidente, me deu a honra de pedir, a minha opinião, sobre o
estado actual da música e sobre as modificações que lhe poderiam advir como
resultado da influência das crenças espíritas. Se de imediato não cedi a tal
apelo benévolo e simpático, foi, acreditai, meus senhores, por uma razão de
ordem superior.
Os músicos são homens como os outros, mais homens, talvez, e nessas condições,
falíveis e sujeitos a pecar. Nunca estive isento de fraquezas e, se Deus me fez
longa a vida, a fim de que eu tivesse tempo de me arrepender, a embriaguez do
êxito, a complacência dos amigos e a lisonja dos cortejadores, muitas vezes
me tiraram o
meio de efectivar esse arrependimento. Um compositor é uma potência nesse
mundo, onde o prazer desempenha tão importante papel. Àquele cuja
arte consiste em deleitar os ouvidos e enternecer os corações, muitas ciladas se
lhe armam diante dos olhos, nas quais cai o infeliz. Ele se inebria da
embriaguez dos outros; os aplausos tapam-lhe os ouvidos e ei-lo no caminho
directo do abismo, sem procurar um ponto de apoio capaz
de resistir ao arrastamento.
Entretanto, não obstante os meus erros, eu
tinha fé em
Deus; eu cria na alma que vibrava em mim e, libertando-se da gaiola sonora,
ela logo se reconheceu no meio das harmonias da criação e
confundiu a sua prece com as que se elevam da natureza ao infinito, da
criação ao Ser incriado!...
Estou feliz pelo sentimento que a minha vinda ao seio
dos espíritas provocou,
porque foi a simpatia que o determinou e, se a princípio só a
curiosidade me atraiu, é ao meu reconhecimento que
devereis a explanação do tema que me propuseram.
Eu ali estava, pronto a falar, supondo tudo saber, quando,
abatido o meu orgulho, a minha ignorância se me patenteou. Fiquei mudo e a
escutar. Retrocedi, instruí-me e,
quando as palavras de verdade, ditas pelos vossos instrutores, se juntaram à reflexão e
à meditação, eu disse para mim mesmo:
O grande compositor Rossini,
o criador de tantas obras-primas segundo os
homens, nada mais fez, ah! do que desfolhar algumas
das pérolas menos perfeitas do livro musical
criado pelo Mestre dos mestres. Rossini reuniu notas, compôs melodias, bebeu da
taça que contém todas as harmonias, roubou algumas
centelhas ao fogo sagrado, mas, esse fogo sagrado nem ele, nem os outros
criaram! — Nada inventamos: copiamo-lo do grande livro da Natureza e a multidão
aplaude, quando não apresentamos por demais deformada a partitura.
Uma dissertação sobre
a música celeste! Quem poderia de tal coisa encarregar-se?
Que Espírito sobre-humano poderia fazer vibrar a matéria em uníssono com essa
arte encantadora? Que cérebro humano, que Espírito encarnado poderia
apanhar-lhe os matizes infinitamente variados? Quem
possui a esse ponto o sentimento da harmonia?... Não, o homem não
está feito em tais condições!... Mais tarde!... muito mais
tarde!...
Por agora, virei, talvez breve,
satisfazer o vosso desejo e dar-vos a minha apreciação sobre o estado actual da
música e dizer-vos das transformações, dos progressos que o Espiritismo poderá
fazer que ela experimente. — Hoje, é ainda muitíssimo cedo. O assunto é vasto,
já o estudei, mas ele ainda me excede. Quando dele me houver assenhoreado, se
isso for possível, ou, melhor, quando eu haja entrevisto tanto quanto o estado
do meu espírito mo permitir, eu vos satisfarei. Um pouco mais de
tempo. Se somente um músico pode falar da música do futuro, deve fazê-lo como
um mestre e Rossini não quer falar dela como aluno.
Rossini
(Médium: Desliens)
(2)
Foi explicado o silêncio que guardei sobre
a questão que o Mestre da Doutrina Espírita me propôs. Era
conveniente que, antes de entrar em tão difícil assunto, eu me concentrasse,
reunisse as minhas lembranças e condensasse os
elementos que me estavam ao alcance. Não me cabia estudar a música,
tinha apenas de classificar com método os argumentos, a fim de apresentar um resumo capaz de dar ideia da minha concepção
da harmonia. Esse trabalho, que não fiz sem dificuldade, se encontra concluído
e estou pronto a submetê-lo à apreciação dos espíritas.
A harmonia é difícil de se definir; muitas vezes,
confundem-na com a música, com os sons, como resultante de um arranjo de notas
e das vibrações dos instrumentos que reproduzem esse arranjo. Mas, não é isso
a harmonia, do mesmo modo que a chama não é
a luz. A chama resulta da combinação de dois gases: é tangível; a luz que ela
projecta é um efeito dessa combinação e não a própria chama: não é
tangível. Aqui, o efeito é superior à causa. O mesmo se dá com a
harmonia; ela resulta de um arranjo musical, é um efeito
igualmente superior à causa. Esta é brutal e tangível; o
efeito é subtil e
intangível.
Pode conceber-se a luz sem
a chama e compreender-se a harmonia sem
a música. A alma está apta a
perceber a harmonia, excluindo todo o concurso de instrumentação, como está
apta a ver a luz sem o concurso de combinações materiais. A luz é
um sentido íntimo que a alma possui: quanto mais desenvolvido
este, tanto melhor percebe ela a luz. A harmonia é igualmente um sentido íntimo da
alma, que a percebe em relação com o desenvolvimento desse sentido. Fora do
mundo material, isto é, fora das causas tangíveis, a luz e a harmonia são
de essência divina. A
posse de uma e da outra estão na razão dos esforços empregados para
adquiri-las. Se comparo a luz e a harmonia, é para me fazer melhor compreender
e também porque esses dois sublimes gozos da alma são filhos de Deus e,
portanto, irmãos.
É tão complexa a harmonia do Espaço, tem tantos graus que eu conheço e muitos outros mais que se me estão ocultos no éter infinito, que aquele que se encontra colocado a uma altura de percepção é como que tomado de espanto ao comtemplar essas diversas harmonias, que constituiriam, se reunidas, a mais insuportável cacofonia; enquanto que, ao contrário, percebidas separadamente, constituem a harmonia particular a cada grau. Nos graus inferiores, essas harmonias são elementares e grosseiras;
levam ao êxtase, nos graus superiores. Tal harmonia, que choca um
Espírito de percepções subtis, encanta um outro de percepções grosseiras e,
quando é dado ao Espírito inferior deleitar-se com
os encantos das harmonias superiores,
o êxtase o
arrebata e a prece lhe
penetra o íntimo. O encantamento o transporta às
elevadas esferas do mundo moral; ele entra a viver uma vida superior
à sua e assim desejará continuar a viver para sempre. Mas, desde
que a harmonia deixe de penetrá-lo, ele desperta, ou, se o preferirem, adormece. Em
todo o caso, volta à realidade da sua situação e, dos lamentos que lhe escapam
por haver descido, se exala uma prece ao
Eterno, a pedir-lhe forças para de novo subir. Aí tem ele um grande motivo de
emulação.
Não tentarei explicar os efeitos musicais que o Espírito
produz actuando sobre o éter; o que é certo é que o Espírito produz os
sons que queira e, que não pode querer o que não sabe. Assim, pois, aquele
que compreende muito, que tem em si a harmonia, que se encontra dela saturado,
que goza do seu sentido íntimo, desse nada impalpável,
dessa abstracção que é a concepção da harmonia, actua quando quer sobre
o fluido universal que, instrumento fiel, reproduz o
que ele concebe e deseja. O éter vibra sob a acção da vontade do
Espírito; a harmonia, que este último traz em si, concretiza-se, por assim
dizer; evola-se,
doce e suave, como o perfume da violeta, ou ruge como a tempestade, ou estala
como o raio, ou solta queixumes como a brisa. É rápida qual relâmpago, ou lenta
como a neblina; tem os despedaçamentos de
um soluço, ou é contínua como a relva; é precipitada qual catarata, ou calma
como um lago; murmura como um regato, ou ronca como uma torrente. Ora apresenta
a rudeza agreste das montanhas, ora a frescura de um oásis; é alternativamente
triste e melancólica como a noite, leda e jovial como o dia; caprichosa como a
criança, consoladora como uma mãe e protectora como um pai; desordenada
como a paixão, límpida como o amor e grandiosa como a Natureza. Quando
chega a este último terreno, confunde-se com
a prece, glorifica a Deus e leva ao arroubamento aquele
mesmo que a produz, ou a concebe.
Oh! comparação! comparação! Por que havemos de ser obrigados
a servir-nos de ti! Por que havemos de dobrar-nos à necessidade degradante de
buscar, de tomar de empréstimo à natureza tangível imagens grosseiras, para
fazermos compreensível a sublime harmonia em que o Espírito se deleita! E,
a despeito das comparações, não se consegue dar ideia dessa abstracção, sentimento quase causa, sensação quando se torna efeito,
O Espírito que tem o sentimento da harmonia é como o
Espírito que tem a riqueza intelectual: um e o outro gozam constantemente da
propriedade inalienável que granjearam. O Espírito inteligente,
que ensina a sua ciência aos que a ignoram, experimenta a ventura de ensinar,
porque sabe que torna felizes aqueles a quem instrui; o Espírito que faz
ressoar no éter os acordes da harmonia que traz em si, experimenta a felicidade de
ver satisfeitos os que o escutam.
A harmonia, a ciência e a virtude são as três grandes
concepções do Espírito: a primeira o arrebata, a
segunda o esclarece, a terceira o eleva.
Possuídas em toda a plenitude, elas se confundem e
constituem a pureza. Oh! Espíritos puros que as possuís! descei às
nossas trevas e iluminai a nossa caminhada. Mostrai-nos a estrada que seguiste,
a fim de que sigamos as vossas pegadas!
Quando penso que esses Espíritos, cuja existência mal posso
compreender, são seres finitos, átomos,
em face do eterno Senhor do Universo, a minha razão se confunde ao cogitar da
grandeza de Deus e da bem-aventurança infinita, de que ele goza em si mesmo,
pelo facto só de ser infinita a sua pureza, pois que tudo o que a criatura
adquire não é mais que uma parcela do que emana do Criador. Ora, se a parcela
chega a fascinar pela vontade, a cativar e a deslumbrar pela suavidade,
a resplandecer pela virtude, o que não produzirá a fonte eterna e infinita
donde provém a criatura? Se o Espírito, ser criado, chega a
extrair da sua pureza tanta felicidade, que ideia se há de ter da que o Criador
tira da sua pureza absoluta? Problema eterno!
O compositor que concebe a harmonia a traduz na
grosseira linguagem chamada música;
concretiza a sua ideia e a escreve. O artista aprende a forma e escolhe o
instrumento que lhe permita exprimir a ideia. Accionado pelo instrumento, o ar
a transporta ao ouvido do ouvinte e o ouvido a transmite à
alma. Mas, o compositor foi impotente para expressar inteiramente a harmonia
que concebera, por falta de uma linguagem apropriada. O
executante, a seu turno, não compreendeu toda a ideia escrita e o instrumento
indócil de que ele se serve não lhe permite traduzir tudo o que haja
compreendido. O ouvido é afectado pelo ar grosseiro que o cerca e a alma,
enfim, recebe, por um órgão rebelde, a horrível tradução da ideia desabrochada
na alma do compositor. Essa ideia era o seu sentimento íntimo. Embora
desvirtuada pelos agentes da instrumentação e da percepção, ela causa sempre sensações
nos que a ouvem traduzida; essas sensações são a harmonia.
A música as produziu; elas são efeito
da música.
Esta é posta ao serviço do sentimento para
ocasionar a sensação. O sentimento,
na composição, é a harmonia; a sensação,
no ouvinte, é também a harmonia, com a diferença de que é concebida por um e
recebida pelo outro. A música é o médium da harmonia; ela a recebe e
a dá, como o reflector é o médium da luz, como tu és o médium dos Espíritos. Transmite-a
mais ou menos deformada, conforme seja bem ou mal executada, do mesmo modo que
o reflector envia mais ou menos bem a luz, conforme seja mais ou menos
brilhante e polido, do mesmo modo que o médium exprime mais ou menos bem os
pensamentos dos Espíritos, conforme seja mais ou menos maleável.
Agora, que a harmonia está bem compreendida na sua
significação, que se sabe ser ela concebida pela
alma e transmitida à alma, compreender-se-á a
diferença que existe entre a harmonia da Terra e a do Espaço.
Na Terra, tudo é
grosseiro: o instrumento de tradução e o instrumento de percepção. Entre nós,
tudo é subtil: vós tendes o ar, nós temos o éter;
tendes um órgão que obstrui e vela; nós temos a percepção directa. Entre vós, o
autor é traduzido; entre nós, ele opera sem intermediário e numa língua que
exprime todas as
concepções. Entretanto, essas harmonias têm a mesma fonte de origem, como a luz
da Lua tem a mesma fonte de origem que a do Sol; a harmonia da Terra
não é mais do que reflexo da harmonia do Espaço.
É tão indefinível a harmonia, quanto a felicidade, o
temor, a cólera. É um sentimento. Só a pode compreender quem a
possui e só a possui quem a tenha adquirido. O homem jovial não
pode explicar a sua jovialidade; aquele que é timorato não
pode explicar a sua timidez; podem expor os factos que esses tudo provocam,
defini-los, descrevê-los; mas, os sentimentos,
esses se conservam inexplicáveis. O
facto que a um causa alegria, nada ao outro causará; o objecto que ocasiona o
temor em um determinará a coragem no outro. As mesmas causas geram efeitos contrários; em física não existe, em metafísica existe. Existe,
porque o sentimento é propriedade da alma e as almas diferem de
sensibilidade entre si, de impressionabilidade, de liberdade.
A música, que é a segunda causa da
harmonia percebida, penetra e transporta a um, deixando frio e indiferente a
outro. É que o primeiro se encontra em estado de receber a impressão que a
harmonia produz, ao passo que o segundo se encontra em estado oposto; ele ouve
o ar que vibra, mas não compreende a ideia que ele lhe traz. Este chega a
sentir tédio e a adormecer, enquanto que aquele outro se entusiasma e
chora. Evidentemente, o homem que goza as delícias da harmonia é muito
mais elevado, mais depurado, do que aquele em quem ela não logra penetrar; a
sua alma, mais apta a sentir, desprende-se mais facilmente e a harmonia lhe
auxilia o desprendimento; transporta-a e lhe permite ver melhor o
mundo moral. Deve concluir-se daí que a música é
essencialmente moralizadora, uma vez que traz a harmonia às almas e que a
harmonia as eleva e engrandece.
Toda a gente reconhece a influência da música sobre
a alma e
sobre o seu progresso. Mas, a razão dessa influência é em geral ignorada. A
sua explicação está toda neste facto: é que a harmonia coloca
a alma sob o poder de um sentimento que a desmaterializa.
Este sentimento existe em certo grau, mas desenvolve-se sob a acção de um
sentimento similar mais elevado. Aquele que esteja desprovido de
tal sentimento é conduzido gradativamente a
adquiri-lo: acaba deixando-se penetrar por ele e arrastar ao mundo ideal, onde
esquece, por instantes, os prazeres inferiores que prefere à divina harmonia.
Agora, se considerarmos que a harmonia sai
do concerto do
Espírito, deduziremos que a música exerce
salutar influência sobre a alma e a alma que a concebe também exerce influência
sobre a música. A alma virtuosa,
que nutre a paixão do bem, do belo, do grandioso e que adquiriu harmonia,
produzirá obras-primas capazes de penetrar as mais endurecidas almas, de
comovê-las. Se o compositor é terra-a-terra, como poderá exprimir
a virtude de que desdenha, o belo que ignora e o
grandioso que não compreende? As suas composições reflectirão os
seus gostos sensuais, a sua leviandade, a sua negligência. Serão ora devassas,
ora obscenas, ora cómicas, ora burlescas; comunicarão aos ouvintes os
sentimentos que exprimirem e os perverterão,
em vez de melhorá-los.
O Espiritismo, com o moralizar dos homens, exercerá, pois,
grande influência sobre a música. Produzirá mais compositores virtuosos, que
difundirão as suas virtudes ao fazerem ouvidas as suas composições.
Rir-se-á menos; chorar-se-á mais; a hilaridade cederá lugar
à emoção, a fealdade à beleza e
o cómico à grandiosidade.
Por outro lado, os ouvintes que o Espiritismo dispuser a
receber facilmente a harmonia, gozarão, ouvindo a música séria, de verdadeiro encanto;
desprezarão a música frívola e devassa, que seduz as massas. Quando o grotesco
e o obsceno forem varridos pelo belo e pelo bem,
desaparecerão os compositores daquela ordem, porquanto, sem ouvintes, nada
ganharão e, é para ganhar que eles se enxovalham.
Oh! sim, o Espiritismo terá
influência sobre a música! Como poderia não ser assim? O seu advento
transformará a arte, depurando-a. A sua origem é divina, a
sua força o
levará a toda a parte onde haja homens para amar, para elevar e
para compreender. Ele se tornará o ideal e o objectivo dos
artistas. Pintores, escultores, compositores, os poetas virão nutrir nele as
suas inspirações e ele lhas fornecerá, porque é rico e, inesgotável.
O Espírito do maestro Rossini voltará,
numa nova existência, para continuar a arte que ele considera
a primeira de todas. O Espiritismo será o seu símbolo e o inspirador de suas
composições.
Rossini
(Médium: Nivart)
/...
ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte – Sobre as artes
em geral; a sua regeneração por meio do Espiritismo – A música espírita, pelo Espírito Rossini; ((1) Paris – Grupo Desliens, 9 de dezembro de 1868 – Médium: Sr.
Desliens); ((2) 17 de janeiro de 1869 – Médium: Sr. Nivard), 21º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965
– Óleo sobre tela, de Noêmia
Guerra)