(I de II)
Durante um século tudo se fez para reduzir o Espiritismo a um caso de truques e
malabarismos. A Igreja insistia na tese diabólica. E os cientistas que se
atreviam a enfrentar a questão com seriedade eram ridicularizados, ameaçados e
perseguidos. Criou-se o preconceito negativo da doutrina e uma imagem falsa
de Kardec.
Todos os grandes médiuns (i), inclusive Daniel
Douglas Home, que nunca foi espírita, eram sistematicamente caluniados.
Cientistas eminentes, como Charles Richet, William Crookes, Friederich Zöllner, Russel Wallace, Schrenck-Notzing e
tantos outros, incontestáveis luminares da Ciência, foram submetidos a ataques
ferozes. Em 1935 Richet morria e os inimigos da verdade, cevados nos proventos
da mentira, proclamaram por toda a parte que, com o grande fisiologista
francês, Prémio Nobel de Medicina, morrera também a Metapsíquica,
a goécia (i) moderna, ciência monstruosa de profanação dos
túmulos. Não sabiam os espertalhões que, antes de morrer, a Metapsíquica já se
havia reencarnado na Universidade de Duke (i) (EUA)
em novo corpo e com o novo nome de Parapsicologia. Os Profs. Joseph Banks Rhine (americano) e William McDougall (inglês) eram os fundadores dessa
nova escola científica de pesquisa dos fenómenos espíritas. Com recursos
técnicos de pesquisa, aplicando o método quantitativo sob controlo estatístico
dos resultados, a Parapsicologia rompeu, em dez anos de lutas e trabalhos
exaustivos, todas as barreiras dos preconceitos, da ignorância e dos interesses
subalternos e se impôs ao reconhecimento universitário mundial, conseguindo
mesmo furar a cortina de ferro do materialismo soviético e despertar o mais
vivo interesse na URSS e em toda a sua órbita de influência.
Diante dessa vitória esmagadora, os adversários mudaram de táctica e passaram
também a tratar do assunto para reduzi-lo aos mínimos efeitos possíveis. O
problema das fraudes e mistificações (i) morreu por si mesmo, perante as novas
possibilidades de controlo absoluto das pesquisas. Esta última filha do Espiritismo,
a Parapsicologia,
tornou-se disputada por todos como se não tivesse a menor ligação e o mínimo
laço de família com a Astronáutica, que se interessou pelos seus poderes e a
tivesse transformado em sua valiosa auxiliar na conquista do Cosmos. A
Física, ditadora das Ciências (segundo Rhine), confirmou
a veracidade das suas proposições audaciosas, descobriu a antimatéria e com ela
um novo espaço que se abria para o Outro Mundo. Os russos descobriram
o corpo bioplásmico da sobrevivência do homem à morte e as investigações sobre
a reencarnação tomaram conta do mundo científico. – Já
não é possível negar a verdade espírita. Onde estão os trapaceiros que atavam
panos às pernas das mesas e fotografavam essa ridicularia para explicar as
famosas mesas girantes (i) como
o truque mais grosseiro e indigno que se possa imaginar? Para onde fugiram os
teóricos e os fantasmas de papelão e das alucinações visuais? Tudo isso se
tornou tão ridículo, perante as evidências científicas da verdade, que hoje
somente os pregadores religiosos de arrabalde e os pastores-camelôs (i) da
salvação ainda se atrevem a gritar, perante as assembleias de fanáticos, que o
Espiritismo é um instrumento do Diabo.
Mas infelizmente os próprios espíritas inscientes se incumbiram (muitos deles
travestidos de cientistas desconhecidos), de atiçar o fogo morto das velhas
mistificações, tentando criar um antiespiritismo de orientação
materialista-mecabicista (i), carregado de
contradições internas e de todas as incongruências características de amadores
sem formação. Ao mesmo tempo, extrovertendo as contradições internas, surgiram
de mistura com o cientificismo (i) insolente
– que considerava Kardec superado e as suas teorias empoeiradas – brotavam do
chão, como as heresias do tempo de Tertuliano,
estranhas florações de concepção arcaicas, mais velhas que o Reino de Sabá,
eivadas de alucinações, loucura varrida e cheiro a enxofre. O Espiritismo
regredia, nas mãos dos falsários, uns ingénuos e os outros vaidosos, às
pretensões da alquimia medieval. Foi nessa fermentação espúria que explodiu a
adulteração, elaborada em segredo e à porta fechada, como os assassinatos a
punhal nos templos de Veneza.
Procuramos dar a este episódio as cores necessárias, com as expressões e as
comparações mais adequadas, porque ele é de grande importância na História do
Espiritismo, o que vale dizer: na História da Evolução espiritual da
Terra. O atentado a Kardec e
a Jesus, à
Doutrina Espírita e à Verdade Evangélica estava consumado. E nos
trinta mil exemplares de O Evangelho Segundo o Espiritismo, que a
Federação do Estado vendeu à larga por todo o Brasil, sob o prestígio do seu
nome e do seu passado saíram impressos, para que todos lessem e aplaudissem, os
esquemas do vandalismo planeado e já iniciado, que abrangiam toda a obra
gigantesca da Codificação. E não houve nenhuma erupção vulcânica no meio
espírita, contra essa insolência sem limites, a não ser a de um grupo pequenino
e pobre. No silêncio mortal que se fez, por todo o Brasil, o único
rumor sinistro era o do Véu do Templo, que se rasgava sozinho de alto a baixo,
no salão vazio da antiga dignidade espírita.
Tudo isso resulta das mistificações, não as ingénuas, tolas as mistificações
das sessões de materialização, a que se dava tanta importância no passado
e que hoje só podem acontecer entre criaturas desactualizadas e incapazes de
tratar do assunto. As mistificações realmente perigosas são as
doutrinárias e, estas procedem sempre de um conluio de homens e espíritos. Muitas
Casas Espíritas começaram a deteriorar-se quando se entregaram à orientação de
supostos mestres espirituais. Daí por diante, numa sequência natural,
encheram-se de doutrinas próprias, chegando algumas a retirar dos seus cursos
as obras de Kardec, fundando escolas meio igrejeiras e meio esotéricas,
instituindo-se uma ginástica de passes classificados e manobrados ao estilo das
antigas escolas magnéticas, criando ordens especiais do tipo de congregações
marianas, chegando ao cúmulo de declarar em artigos de jornais que a sua linha
doutrinária não era ortodoxa, mas heterodoxa. Isto queria, dizer que
não seguiam a doutrina certa de Kardec, mas uma mistura de doutrinas
espiritualistas. Todo o trabalho de Kardec, superando o espiritualismo infuso e
confuso do passado para estabelecer uma linha racional de
espiritualidade superior, ia por água abaixo. E ninguém percebia isso,
aplaudindo aqueles que não conseguiram entender Kardec e por isso passando
sobre ele afastavam a sua obra como empecilho, estorvo de velharia secular. Foi
o teste inexorável da miséria cultural dos espíritas, do seu
completo desconhecimento da doutrina e da sua falta de orientação histórica e
filosófica. Nunca os espíritos mistificadores encontraram campo mais vasto,
fecundo e propício à deformação total da Doutrina Espírita, para afastá-la da
Terra justamente nesta hora grave e aguda de transição por que passamos.
O problema das mistificações é permanente nos mundos
inferiores, como o nosso. As criaturas incultas e grosseiras formam a maioria
da população destes mundos. É evidente que a população desencarnada,
espiritual, que sobrevive nas esferas circundantes ao planeta é da mesma
natureza. Lá, como cá, enxameiam os espíritos vaidosos, sistemáticos
(como advertiu Kardec), empenhados em passar as suas ideias aos homens. As
ligações por afinidade formam os complôs de homens e espíritos que se julgam
capazes de ensinar verdades absolutas. Basta a arrogância visível, embora disfarçada,
às vezes, em falsa humildade, para mostrar aos observadores sensatos a que
ordem e grau da escala espírita pertencem estas criaturas em
conluio. Dos descuidados nada se pode esperar. Deixam-se levar facilmente e
servem de instrumentos dóceis a todos os mistificadores. É contra
isso que temos de lutar, sustentando firmemente a Obra de Kardec, que na
verdade é o cumprimento da promessa do Consolador, a obra do Espírito de Verdade. Esse é um dos
pontos-chave da doutrina. Quem não o compreender e não meditar sobre ele estará
sempre sujeito a servir de instrumento aos mistificadores do além e do
aquém. Restabelecer os ensinamentos do Cristo na sua pureza é a
função do Espiritismo. Só a Doutrina Espírita tem condições para
isso. Porque a revelação espiritual, confirmada pelas pesquisas e os
estudos de Kardec, nos mostram que o Cristo não veio fundar uma religião, mas
estabelecer os fundamentos de uma nova civilização. O seu ensino apresenta de forma sintética as três coordenadas doutrinárias: Ciência, Filosofia e Religião, que Kardec desenvolveu, sob a assistência constante do Espírito de Verdade. Há uma tese do Dr.
Canuto de Abreu que contraria esta verdade histórica, suficientemente
provada nas comunicações inseridas nas Obras Póstumas de Kardec e demonstrada
ao longo de toda a sua obra. Os estudiosos têm de se prevenir contra estas
ciladas da enorme e tumultuada bibliografia espírita. Por sinal que esta tese
já vem marcada pelos seus absurdos e a sua incongruência.
Vejamos bem a mecânica do processo histórico para podermos compreender a
questão. Oliver
Lodge e Léon Denis sustentaram veementemente a tese de Kardec,
que nos apresenta o Espiritismo como uma síntese conceptual de toda a
realidade. Isso quer dizer que a doutrina abrange na sua concepção toda
a realidade acessível ao conhecimento humano. As conquistas
actuais da Ciência e da Filosofia e as reformas em curso nas igrejas dão
inteira razão a esta interpretação do Espiritismo. Coloquemos o problema num
esquema esclarecedor, para tornar mais claros cada um dos seus aspectos:
a) O conhecimento da realidade processa-se no contacto do homem com o
mundo. Dos tempos primitivos à Civilização o homem luta sem cessar para
dominar a Natureza. Esse domínio só é possível pela descoberta das leis
naturais. Mas essa descoberta exige do homem a luta contra si mesmo. Porque
o homem é um espírito condicionado pela encarnação num corpo de percepções
animais. O homem está sujeito ao sensório, ou seja, à rede dos seus sentidos
físicos que sofre o impacto de uma realidade externa e estranha à sua
natureza íntima. Os sentidos lhe dão a percepção das coisas, mas ele
elabora essa percepção na sua mente, sob a influência de lembranças espirituais
(a reminiscência platónica do mundo das ideias) e ao formar no seu
espírito os conceitos da realidade, pelo processo de abstracção, ele desenvolve
o seu poder imaginativo. Os conceitos são imagens mentais de coisas e seres
concretos, mas a essas imagens misturam-se os elementos provenientes
dos desejos e anseios do homem. A realidade do homem é diferente da realidade
natural concreta, como Descartes demonstrou
que a imaginação avança para além da razão. Nesses avanços surgem as
deformações do real e a falsificação do conhecimento. Todas as teologias
sofreram desse mal e toda a cultura religiosa do mundo se desligou da
realidade. As igrejas, as ordens espiritualistas, as irmandades
secretas se impregnaram de elementos ilusórios, de pressupostos considerados
como verdades fundamentais e assim por diante. A cultura mitológica do tempo de
Jesus, que abrangia até mesmo o Judaísmo, aparentemente infenso ao
mito, mas de facto envolvido numa mitologia grosseira, estava desligada da
realidade, flutuando entre o mundo do espírito e o mundo da matéria. Javé, o
Deus de Israel, assemelhava-se ao Zeus grego e ao Júpiter Romano na sua ira, no
proteccionismo exclusivo de um povo, no gosto pelas homenagens e as
reverências, no prazer de aspirar as carnes assadas e na volúpia pelo sangue de
animais e dos homens.
b) Talvez a única vantagem de Israel sobre os povos da época fosse precisamente
a desvantagem do seu excessivo sociocentrismo, o egoísmo racista que
atravessou os milénios e se conservou até mesmo na diáspora com a dureza do
lendário diamante-Schamil com que Moisés teria
escrito na pedra as tábuas da lei. Porque foi dessa centralização do
ego que nasceu a possibilidade do aparecimento da primeira nação monoteísta do
mundo. Javé não tinha condições, com o seu exclusivismo racista, para
se transformar no Deus Único, mas o povo judeu aceitou-o como tal porque isso
agradava às suas pretensões de superioridade. O deusinho intrigante
e até mesmo alcoviteiro das tribos hebraicas, raivoso, parcial e contraditório,
que punia com a lepra os que censuravam o seu amado Moisés e que após o Decálogo autoriza
o seu protegido a realizar a bárbara matança do Sinai e revelava um espírito
rancoroso de chefe tribal e um exibicionismo arrogante no tracto com os povos
estranhos. Ao mesmo tempo, não dispunha de forças para impedir os assaltos de
povos mais fortes e aguerridos aos seus pupilos que os egípcios e os
babilónios, assírios e romanos conquistavam e submetiam à escravidão. Apesar
disso, o povo judeu mostrou-se capaz de enfrentar todas as derrotas e decepções
sem perder a confiança no seu Deus. Essa virtude estóica e essa fidelidade
interesseira, aumentada por um proteccionismo escandaloso e, a coragem e
tenacidade que demonstravam em todas as circunstâncias, deram a Javé uma
posição excepcional. Não foi Deus, nesse caso, quem salvou o homem, mas o
homem-judeu quem salvou o deusinho fanfarrão que lhe deu a Terra de Canaã, numa
doação injusta, ilegal e bárbara, em que os beneficiados tiveram de conquistar
o seu presente com batalhas alucinadas. Verdadeiro presente grego, que
custou sacrifícios e perdas irreparáveis aos judeus ludibriados. Na
verdade, Javé não deu nada, pois foram Moisés e Josué os
conquistadores de uma nação tradicional, de estrutura feudal e uma cultura
desenvolvida. Uma conquista militar longamente preparada nos quarenta anos de
expectativa angustiosa no pequeno deserto do Sinai, com assaltos e pilhagens
dos povos vizinhos. A destruição de Canaã foi um dos mais bárbaros genocídios
da História. E sobre a terra ensanguentada, juncada de cadáveres, o povo
ludibriado construiu os seus monumentos ao deus truculento, erguendo-lhe o
Templo de Jerusalém com aras especiais para os sacrifícios de animais que Javé
não podia comer, mas de cuja fumaça se alimentava aspirando-a pelas suas
narinas divinais.
Durante dois milénios se considerou o nascimento de Jesus em Israel como uma
confirmação da grandeza de Javé. Mas essa grandeza era apenas uma
fantasia, pois nem do ponto de vista humano, à luz dos sentimentos de justiça e
dos princípios éticos se poderia ressaltar um só gesto de grandeza na atitude
brutal de Javé. Hoje, à luz dos princípios espíritas, podemos
compreender esta verdade assustadora, marcada a fogo nas páginas da própria
Bíblia:
c) Javé não era mais do que o espírito orientador do clã arrogante e
ganancioso de Abraão, Isaac e Jacob na
velha cidade mesopotâmica de Ur. Um guia espiritual de inferioridade inegável, deus
guerreiro como os de Atenas e Roma, que se serviu da mediunidade espantosa
de Moisés e dos Anciãos no deserto para se materializar entre aventureiros rudes e ignorantes, nas fumaradas de ectoplasma que envolviam em nuvens assustadoras a tenda do deserto. Nessas manifestações então inexplicáveis, Javé falava
cara a cara com o seu Servo Moisés, dando-lhe o prestígio necessário
para a consecução dos seus planos de conquista sanguinária. As pesquisas
contemporâneas e actuais sobre esses fenómenos mediúnicos desvendaram o
mistério. Os estudos de Max Freedom Long e André Lang, entre as tribos selvagens da Polinésia, revelavam o emprego de mana ou orenda, forças mágicas que Richet explicou racional e cientificamente como
emanações orgânicas do corpo do médium e os russos provaram recentemente serem
constituídas por um plasma físico formado de partículas atómicas livres. Javé,
o Deus Supremo e Único, servia-se apenas dos elementos mágicos empregados pelos
povos primitivos nos seus contactos com os espíritos. Esse mesmo elemento, que
na sua expansão manifesta cheiro da ozona (i), foi
considerado nas manifestações diabólicas da Idade Média como explosões de
enxofre. Friederich Zöllner demonstrou, na Universidade de
Upsala (Alemanha) que esse elemento, o ectoplasma, pode produzir explosões
violentas, raios e relâmpagos, causando destruições como o poder da dinamite.
Estas provas científicas modernas podem também explicar as manifestações ígneas
assustadoras do Monte Sinai, no momento em que Moisés falava com Javé e este
lhe aparecia em forma de silva ardente, segundo o Génese.
Diante destas verificações, compreende-se a preferência de Jesus por
Israel. E o maior milagre de Jesus apresenta-se como sendo a utilização
do povo judeu, acostumado a essas manifestações mediúnicas, para o
desenvolvimento da sua missão mediúnica de
implantação na Terra da concepção do Deus único no plano social, transformando Javé
numa imagem alegórica de Deus. A unicidade e universalidade dessa
concepção foi obra exclusiva de Jesus, que viu a possibilidade de fazer de
Israel o centro de expansão do Monoteísmo, que negou ao mesmo tempo o orgulho
sociocêntrico de Israel e a multiplicidade dos deuses mitológicos. Daí as
contradições profundas e insanáveis entre o Deus iracundo da Bíblia e o Deus
ético, justo, providencial e universalmente paternal dos Evangelhos. A
fusão absurda destes deuses antagónicos no Cristianismo explica-se pela
incompreensão inicial e a deformação posterior dos ensinamentos de Jesus,
através das lutas brutais e sanguinárias entre as seitas cristãs dos primeiros
tempos. Os homens recebiam as palavras do Messias na medida das suas
posições contraditórias. As condições do tempo eram propícias ao fanatismo e à
História imparcial; escrita por pesquisadores universitários independentes,
revela-nos o panorama de paixões exacerbadas, no meio de interesses políticos e
sociais os mais diversos, que levavam facções violentas aos mais hediondos
crimes. O Cristianismo que chegou aos nossos dias, através das igrejas cristãs
do Ocidente e do Oriente, é a herança trágica das profanações. Os textos
evangélicos falam por si mesmos, particularmente nas epístolas de Paulo e
do Livro de Actos dos Apóstolos, do que foram as dissensões no
próprio meio apostólico. Nem mesmo a Ressurreição de Cristo, que Paulo explicou
de maneira clara e lapidar, chegou a ser compreendida. O culto
pneumático, da manifestação dos espíritos, foi suprimido; a simplicidade livre
das assembleias cristãs foi injectada de elementos complexos dos cultos
religiosos pagãos e judeus; a comunhão memorial do Cristo com os
discípulos através do pão e do vinho – praticada nas ceias cristãs e bem antes
nos cultos canaanitas – foi transformada em sacramento sofisticado pela magia
da transubstanciação; expressões evidentemente alegóricas que se tornaram em
dogmas indiscutíveis, motivando morticínios de estarrecer.
A comparação singela e tocante encerrada na expressão Cordeiro de Deus,
referente aos sacrifícios de cordeiros nos altares do Templo para purificação
de pecados, foi transformada em mistério sagrado que acobertou muitos crimes
nefandos; a ressurreição no corpo espiritual tornou-se ressurreição absurda no
corpo carnal, pela maneira como Tomé,
o apóstolo dissidente, tocou as chagas de Cristo manifestado mediunicamente,
acreditando tocar no corpo material já sepultado; Maria transformou-se numa das
muitas virgens mães da Antiguidade de que trata Saint-Yves num livro excomungado; José passou de pai a
padrasto numa posição equívoca e Deus perdeu novamente a sua unidade para se
dividir no mistério de três pessoas distintas e um só Deus verdadeiro. Só por
milagre a definição de João: Deus
é Amor sobreviveu a esse terremoto com a pureza ingénua de uma flor
nos destroços. Nem se compreende que isso tenha sido possível no meio do
entrançado de garras e caudas peludas, cheirando a enxofre, que lutavam para
escurecer o Céu e ensanguentar a terra. Os erros dos copistas, as
adulterações conscientes dos intérpretes sectários, as substituições ingénuas
de reformistas ignorantes passaram à margem dessa definição de Deus sem
atingi-la. O mais espantoso é que essas interferências criminosas não
cessaram até hoje. As pretensas actualizações de linguagem dos velhos textos
prosseguem nos nossos dias, com as edições deformadas da Bíblia pelas
instituições guardiãs da sua pureza. Criou-se o dogma da Palavra de Deus para o
velho livro judaico, digno de respeito histórico, mas as vestais dos
textos preferem as palavras dos homens, mutilando, distorcendo, aleijando o
verbo divino em cada nova tiragem da Bíblia. Se Deus falou, os homens o
corrigem, porque Deus ainda não aprendeu a sujeitar-se aos caprichos
formalistas das igrejas. Pois mesmo com essa permanência inquietante da censura
humana, as definições de Jogo ainda não foram mascaradas.
/…
José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo,
XVIII – O Problema das Mistificações, (I de II), 20º fragmento
desta obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos
celestes, acrílico de Costa Brites)