Depois da Filosofia Existencial, nascida da angústia e da solidão do teólogo dinamarquês Kierkegaard, explodiu no mundo convalescente das primeiras explosões atómicas em Hiroshima e
Nagasaki, a espantosa novidade da Morte de Deus. Imitando o louco do
Nietzsche (i),
teólogos jovens e de formação universitária, europeus e norte-americanos,
fizeram o comunicado fúnebre ao público mundial: “Deus morreu!” Como ninguém
foi convidado para o enterro, nem se efectuou nenhum registo funerário da
ocorrência nos cartórios civis do mundo, acreditou-se que tudo não passava de
uma alucinação. Mas os teólogos insistiram com uma série de livros
transbordantes de erudição e cultura, o que perturbou os
espíritos crentes em Deus. Para tranquilizar os assustados, os teólogos
agoireiros obedeceram ao velho preceito: “Rei morto, Rei posto” e, colocaram
Jesus de Nazaré (i), o Cristo, provisoriamente no Trono do Império
Cósmico. “Agora – diziam os teólogos, na euforia de herdeiros ambiciosos
perante o Cadáver Sagrado – agora temos de instalar o Cristianismo Ateu à
espera de um Novo Deus que deve surgir.”
Não se trata de uma brincadeira nem de galhofa, mas de coisa
sumamente séria, pois, como diziam os nossos avós: “Com Deus não se brinca!”
Mas os livros dos teólogos cortadores de mortalha não convenceram ninguém, a
não ser a eles mesmos. É fácil compreender-se que houve um engano. O que havia
morrido não era Deus, que não pode jamais ser enterrado no cemitério em ruínas
dos deuses mitológicos. Quem na verdade estava a agonizar e, continua em lenta
agonia, sustentada por milhões dos seus beneficiários do profissionalismo
religioso, era a generosa sabidíssima senhora chamada Teologia.
Essa pretensiosa dama de certezas absolutas e irrevogáveis estava em estado de coma,
mas continua a resistir às tentativas impiedosas da morte. A maioria dos
teólogos viu-se em dificuldades e apenas alguns aderiram à estranha ideia.
Seria uma hecatombe mundial, ficarem todos eles órfãos e
sem qualquer herança, pois só Deus lhes havia prometido a partilha do seu
Reino. Jesus-Cristo,
herdeiro directo e filho consanguíneo de Deus, não tomou conhecimento deste
assunto e não assumiu o Trono do Universo. A situação tornou-se caótica e as
brigas dos herdeiros acabaram reduzindo a espantosa novidade num bate-boca de
neuróticos de guerra. Andam por aí os livros dos teólogos do complô deicista, lidos por eles mesmos e alguns curiosos
retardatários, pois só eles entendem o que escreveram, se realmente entendem.
São livros tecidos em teses de filigranas brilhantes e sofismas escorregadios,
como as de Bizâncio na sua hora final. Dão-nos a impressão do jogo dos velórios
da civilização utópica de Hermann Hesse,
onde a face gelada de um lago alpino enregelava um teólogo de vez em quando.
Não nos interessam essas lamentações de carpideira em torno
de um hipotético cenotáfio (i),
túmulo vazio construído no pós guerra, sobre terreno impuro de ossadas sem
sepultura. Esta hora não é de morte, mas de ressurreição. Cumprindo
a promessa do Cristo, o seu ensino puro ressuscita das criptas de envelhecidas
catedrais e anuncia por toda a parte a nova Alvorada da Verdade. William
Hamilton, Thomas Altizer, Paul Van Brune, Gabriel Vahamtaan e todo o bando
necrófilo da Morte de Deus não conseguiram até agora dizer mais do que isto:
que Deus morreu no nosso século e que esse é um episódio histórico. Mas onde estão as
provas históricas dessa morte ideológica e alógica? Só o louco do
Nietzsche (i), de quem eles herdaram a loucura, ouviu as pancadas
soturnas do coveiro que abria a cova e, esse louco era uma ficção. Se os teólogos
continuam a ensinar as suas teologias fanadas, os místicos a destilar os seus
óleos sagrados, os sacerdotes a cobrar mais caro os seus sacramentos, o
populacho a arrastar-se de joelhos nas velhas escadarias das igrejas, judeus e
cristãos a manter os seus cultos por toda a parte, nem mesmo o Deus da Bíblia
deixou de existir. Se não aconteceu a morte física de Deus e nem mesmo a morte metafísica,
se na mente dos intelectuais e na fé popular Deus continua imperando, é claro
que o bando necrófilo está a delirar.
Mas esse episódio serve para ilustrar a esquizofrenia catatónica deste século estranho, em que vacilamos
entre a paranóia e o sadismo, com furacões de obsessão individuais e
colectivas a varrerem a face poluída do planeta. A todo o momento os vendavais
arrancam os homens do chão e os atiram ao ar em cambalhotas alucinantes. Os
espíritas, que conhecem o problema da obsessão e
sabem que não são encenações do exorcismo, mas a lógica persuasiva da
doutrinação evangélica o remédio certo e eficaz para este momento, precisam,
mais do que nunca, firmar-se nas obras de Kardec para
não serem também virados de pernas para o ar. Muitos já se deixaram
levar pelas rajadas da invigilância, caindo no ridículo e chegando até mesmo à
profanação da doutrina. Outros aceitaram e propagam, na teimosia característica
da fascinação, obras e doutrinas absurdas, carregadas de
malícia das trevas, ludibriando criaturas ingénuas com a falsa importância das
suas posições em organismos doutrinários ou o falso brilho dos
seus títulos universitários. Outros se aboletam na
sua arrogância de pseudo-sábios, pretendendo superar a doutrina com livros encharcados
pelo barro escuro das regiões umbralinas. É incrível como todas essas tolices
empolgam pessoas desavisadas por toda a parte, formando os quistos de mistificação que
minam o movimento doutrinário.
Se mesmo fora do campo doutrinário e, entre pessoas de
inegável cultura e brilho intelectual, surgem loucuras como essa da Morte de
Deus e da criação do Cristianismo Ateu, pode avaliar-se ao que estamos expostos
no Espiritismo,
onde só a advertência do Cristo: “Vigiai e orai,” poderá livrar-nos de quedas desastrosas. Mas não basta vigiar montado nas cavalgaduras da pretensão e da vaidade, porque o inimigo não ataca de frente, insinua-se
subtil no nosso íntimo, excitando o vírus da vaidade e infestando-nos por
dentro. Desde então, pensamos com as ideias de outrem e aceitamos a
sua colaboração, senão o seu Comando, com a ingenuidade dos defensores de Tróia
que aceitaram o presente grego do cavalo de pau. Pedro capitulou, por medo, na
hora do testemunho. Por vaidade, ignorância e interesses secundários muitos
espíritas estão capitulando nesta hora decisiva. A nossa vigilância tem
de ser interna, sobre nós mesmos, sobre a nossa fauna interior que o inimigo
utiliza contra nós. Se os teólogos necrófilos aceitaram a sugestão da
morte de Deus e caíram no ridículo, porque haveriam os espíritas de rejeitar a
sugestão de deturpar os textos doutrinários para actualizá-los, prestando
enorme serviço à doutrina? As sugestões das trevas são assim: falam-nos do
dever para nos lançar na traição. Caímos facilmente porque não vigiamos e
não oramos.
O orgulho e
a ambição substituem em nós as palavras humildes da recomendação do Mestre. E
depois reclamamos dos Espíritos Superiores o auxílio que nos faltou na hora
crucial, como se já não devêssemos estar há muito preparados para enfrentar
essa hora.
Se os teólogos realmente
compreendessem Deus e os Espíritas conhecessem de facto a sua doutrina, as
entidades sombrias não encontrariam uma nesga de treva para se ocultarem nos
seus corações iluminados pelo amor. Não somos traídos, traímo-nos. A
traição não vem da malícia, brota da nossa mente transviada e do nosso coração
orgulhoso. Se não compreendermos isso profundamente estaremos
sempre expostos aos ventos malignos. A fidelidade ao bem tem um preço que
pagamos aos poucos, nas moedinhas tilintantes do dia-a-dia, rejeitando os
sopros da vaidade que tentam acender a fogueira do arrependimento. Um
elogio discreto que nos agrada, uma palavra de estímulo que nos estufa, um
gesto de cortesia que nos comove, um ingénuo cartão de saudações, um abraço de
fingida gratidão são essas e muitas outras as moedas que não caem como o óbulo
da viúva, mas como as moedas envenenadas dos cambistas. Ao som dessa
música subtil cresce em nós a mandrágora do
orgulho, a flor roxa e perigosa dos filtros mágicos. Acreditamos na
nossa grandeza com euforia, para mais tarde cairmos na nossa insignificância
com desespero.
Por que motivo Deus, se tivesse de morrer, haveria de
escolher o Século XX da Era Cristã? Para morrer cristão, Ele que é o Senhor do
Cristo? Por que razão os Espíritas haveriam de escolher o nosso século (XX)* para
revisar e corrigir Kardec, justamente quando as Ciências, a Filosofia, a
Religião e toda a Cultura Humana estão a comprovar o acerto absoluto de Kardec e
seguindo o seu esquema de pesquisa numa realidade sempre vitoriosa? A resposta
a essas duas perguntas é uma só: Porque é nas horas de entusiasmo, de vitória,
de renovações em marcha, que estamos desprevenidos e confiantes em nós mesmos,
certos de que tudo vai bem e de que – (este é o motivo da queda) – chegou o
momento em que os nossos esforços serão reconhecidos e nos porão na fronte a
coroa de louros que nos negaram. Não é a hora do Cristo nem a da Doutrina,
mas a nossa hora, pessoal, que nos fascina.
Vejamos a triste figura desses teólogos, filósofos, historiadores da Cultura, exegetas da Palavra de Deus, que de repente,
decepcionados com as atrocidades dos homens (que sempre foram atrozes) proclamam em orações brilhantes e livros falaciosos o absurdo da Morte de Deus,
que não conseguem explicar nem justificar, por mais que escrevam. Charles Bent
dá-nos uma informação valiosa: William Hamilton foi apresentado como uma
espécie de Billy Graham da Morte de Deus. Numa de suas prédicas em São Paulo o
famoso Billy, que empolga multidões, respondeu à pergunta de um assistente com
a maior leviandade: “O Espiritismo é obra do Demónio.” A glória de Hamilton
define-se neste episódio. Hamilton é o novo Billy. Não se precisa dizer mais
nada. E Bent considera-o como sendo, talvez, o mais inteligível dos expositores
do problema da Morte de Deus. Sobre o cadáver suposto de Deus os camelôs da
hecatombe divina disputam a túnica do Cristo. É evidente o fogaréu de
vaidade que arde na frágil carne dos homens. Se o Espiritismo, que cumpre a
promessa do Consolador na Terra, é obra do Diabo, o que será essa obra de
demagogia e sofisma que pretende renovar a concepção cristã de Deus na prática
de Brutus, assassinando Deus pelas costas?
Os homens enrolam-se nas suas próprias palavras, como as
abelhas domésticas na barba do seu tratador. Os sofistas gregos provavam todas
as contradições, mostrando que a verdade não passava de um jogo de palavras.
Mas entre eles estava Sócrates, protegido pelo seu daemon, o seu
espírito amigo, que de repente começou a perguntar aos sofistas: O que
é isso? Todos os sofismas se esboroavam, como castelos de areia,
quando Sócrates pedia a definição dos
conceitos. Sim, porque ele descobrira que a verdade estava nos conceitos e não
nas palavras. Quando Billy e Hamilton perguntarem a si mesmos o que
estão a dizer, terão a verdade, mas enquanto continuarem a jogar com palavras
perante as multidões de basbaques e fanáticos, não passarão de sofistas
modernos que enganam a si mesmos e aos outros. O mal mais ameaçador da
nossa civilização é o desenvolvimento excessivo da mente-oral. O abuso desse
processo mental aviltou o mundo das palavras. Vem de longe esse mal,
desde os judeus palradores que assustavam os romanos com as suas infindáveis
querelas, o matraquear atordoante dos clérigos medievais, as trapaças doiradas
dos bizantinos e a demagogia burguesa que produziu o Terror na França e se
espalhou pelo mundo no papagaiar político e religioso que estourou em matanças
inomináveis na boca de Hitler, Mussolini e as suas quintas-colunas genocidas.
Depois das explosões atómicas de Nagasaki e Hiroshima e da escalada
norte-americana no Vietname, não era de admirar o assassinato misterioso de
Deus, pois quem odeia a Criação deve odiar também o Criador.
No meio espírita os faladores fazem sucesso, como em toda a
parte, pois os espíritas são criaturas humanas contagiadas, como toda a
espécie, pelo mal verborrágico (i). Tem sido difícil convencer o povo ingénuo de que os
grandes faladores não passam de mistificadores. Falam com atitudes teatrais, de
olhos fechados para convencer os basbaques de que estão sendo inspirados por
elevadas entidades espirituais, quando na verdade repetem palavrórios decorados
ou simplesmente destrambelham os mecanismos repetitivos de sua mente-oral.
Este é um problema grave num meio interessado numa doutrina
lógica, profundamente conceitual, onde a insensatez palavresca funciona como
tóxico mental, encobrindo e aviltando a Verdade. Precisamos de expositores
doutrinários conscientes da sua responsabilidade e não apenas interessados em
fascinar as massas. Não temos nem devemos ter tribunos eloquentes nas nossas
assembleias, mas estudiosos (i) da doutrina que procurem transmitir os seus
princípios racionais aos adeptos pouco acostumados a raciocinar. Não há lugar
para sofistas num movimento que busca unicamente a Verdade, que não está nos
sofismas e sim na limpidez dos conceitos. Também os espíritas se comprometem
com o complô da Morte de Deus quando dão apoio e estímulo criminoso aos
palradores inveterados.
/…
* Adenda desta publicação.
José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo,
XVI – A Morte de Deus e o Século XX, 16º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo
por sobre os campos celestes, acrílico de Costa Brites)