fonte do bem e do mal ~
Sendo Deus o princípio de todas as coisas e sendo este
princípio toda a sabedoria, toda a bondade, toda a justiça, tudo o que daí
procede deve partilhar estes atributos, pois o que é infinitamente sábio, justo
e bom, não pode produzir nada de insensato, mau e injusto.
O mal que observamos não pode portanto ter nele a sua
origem.
Se o mal fizesse parte das atribuições de um ser especial,
quer lhe chamemos Arimane ou Satanás, das duas uma: ou esse ser seria
igual a Deus e, por consequência, tão poderoso como ele e para toda a
eternidade como ele, ou ser-lhe-ia inferior.
No primeiro caso, haveria duas forças rivais lutando
constantemente, procurando cada uma desfazer o que a outra fez e
confrontando-se mutuamente. Esta hipótese é inconciliável com a unidade de concepção que se
revela na ordenação do Universo.
No segundo caso, sendo esse ente inferior a Deus,
estar-lhe-ia subordinado; não podendo ter estado, como ele, por toda a
eternidade sem lhe ser igual, teria tido um princípio; se tiver sido criado, só
o pode ter sido por Deus; Deus teria assim criado o espírito do mal, o
que seria a negação da infinita bondade. (Ver O Céu e Inferno, Capítulo IX, Os
Demónios.)
No entanto, o mal existe e tem uma causa.
Os males de todos os géneros, físicos ou morais, que afligem
a humanidade apresentam duas categorias que interessa distinguir: são os males
que os homens podem evitar e
os que são independentes da sua vontade. Entre estes últimos, temos de situar
as calamidades naturais.
O homem, cujas faculdades são limitadas, não pode penetrar
nem abarcar a totalidade das ideias do Criador; avalia as coisas
segundo a sua personalidade, os interesses fictícios e de convenção que
imaginou e que não estão de maneira nenhuma na ordem da natureza; é por isso
que, muitas vezes, acha mau e injusto o que acharia justo e admirável se lhe
percebesse a causa, a finalidade e o resultado definitivo. Ao
procurar a razão de ser e a utilidade de cada coisa, reconhecerá que tudo traz
a marca da sabedoria infinita e inclinar-se-á perante essa sabedoria, mesmo
para as coisas que não perceba.
O homem recebeu em herança uma inteligência, com a
ajuda da qual pode esconjurar ou, pelo menos, atenuar grandemente os efeitos de
todos os flagelos naturais; quanto mais sabedoria adquire e mais avança em
civilização, menos desastrosos são estes flagelos; com uma organização social
sabiamente previdente poderia até neutralizar as consequências quando elas não
possam ser totalmente evitadas. Assim, para esses mesmos flagelos que
têm a sua utilidade na ordem geral
da natureza e para o futuro, mas que ocorrem no presente, Deus deu ao homem,
através das faculdades com que lhe dotou o espírito, os meios para lhe neutralizar os
efeitos.
É assim que saneia regiões insalubres, que anula os miasmas
pestíferos, que fertiliza as terras incultas e se esforça por as preservar das
inundações; que constrói habitações mais salubres, mais sólidas para resistirem
aos ventos tão necessários à purificação da atmosfera, que se coloca ao abrigo
das intempéries; é assim, enfim, que pouco a pouco a necessidade o fez criar as ciências com a ajuda
das quais melhora as condições de habitabilidade do globo e aumenta o somatório
do seu bem-estar.
Devendo o homem progredir, os males a que está exposto são
um estímulo para
o exercício da sua inteligência, de todas as suas faculdades físicas e morais,
incitando-o à procura de meios para os evitar. Se não tivesse nada a temer,
nenhuma necessidade o
levaria à busca do melhor; o seu espírito amoleceria na inactividade; não
inventaria nada e não descobria nada. A dor é o aguilhão que empurra
o homem para a frente na via do progresso.
Mas os males numerosos são os que o homem cria com os seus próprios vícios, os que resultam do
seu orgulho, do seu egoísmo, da sua ambição, da sua cupidez, dos seus excessos em todas as
coisas: reside nisso o motivo das guerras e das calamidades que
arrastam consigo, das dissensões, das injustiças, da opressão do fraco pelo
forte; enfim, da maior parte das doenças.
Deus estabeleceu leis plenas de sabedoria que só têm como
objectivo o bem; o homem encontra em si mesmo o que lhe falta para as seguir; o
seu caminho é traçado pela
sua consciência; a lei divina
está gravada no seu coração;
e, além disso, Deus lembra-lhas constantemente através dos seus messias e dos
seus profetas, de todos os Espíritos encarnados que
receberam como missão esclarecê-lo, moralizá-lo, aperfeiçoá-lo e, nestes
últimos tempos, através da quantidade de Espíritos não encarnados que se
manifestam por todo o lado. Se o homem se conformasse rigorosamente com
as leis divinas, não restam dúvidas de que evitaria os males mais pungentes e
que viveria feliz na Terra. Se não o faz, é graças ao seu livre-arbítrio e
sofre disso as consequências (O Evangelho Segundo o Espiritismo,
Capítulo V, nºs 4, 5, 6 e segs.).
Mas Deus, cheio de bondade, colocou o remédio ao lado do
mal. Quer dizer que, o próprio mal, faz sair o bem. Chega uma altura em
que o excesso de mal moral se
torna intolerável e faz com que o homem sinta a necessidade de mudar de
caminho; ensinado pela experiência, é levado a procurar remédio no bem, sempre
como consequência do seu livre-arbítrio; quando
entra num caminho melhor é por ser essa a sua vontade e porque reconheceu
os inconvenientes do outro caminho. A necessidade obriga-o então a melhorar
moralmente para ser mais feliz, tal como esta mesma necessidade o obrigou a
melhorar as condições materiais da existência.
Pode dizer-se que o mal é a ausência do bem, tal
como o frio é a ausência do calor. O mal não é um atributo distinto, tal como o frio não é
um fluido especial; um é a negação do outro. Onde o bem não existe,
existe forçosamente o mal; não praticar o mal é já o começo do bem. Deus
só quer o bem; só do homem vem
o mal. Se houvesse na Criação um ser predisposto ao mal, nada o poderia evitar;
mas tendo o homem a causa do
mal EM SI MESMO e tendo ao mesmo tempo o seu livre-arbítrio e por guia as leis
divinas, evitá-lo-á quando quiser.
Tomemos um facto vulgar como comparação. Um proprietário
sabe que, na extremidade do seu campo, existe um sítio perigoso onde se poderia
ferir ou morrer quem ali se aventurasse. Que faz ele para evitar os
acidentes? Coloca junto ao local um cartaz com a proibição de avançar
mais por causa do perigo. Aí está a lei, que é sábia e previdente. Se,
apesar disso, um imprudente não ligar e passar para lá e se lhe acontecer um
acidente, a quem poderá culpar senão a si mesmo?
Assim é com todo o mal; o homem evitá-lo-ia se observasse as leis
divinas. Deus, por exemplo estabeleceu um limite à satisfação das
necessidades; o homem é avisado pela saciedade; se ultrapassar esse
limite, fá-lo voluntariamente. As doenças, as enfermidades, a morte que podem ser disso
consequência são portanto resultado da sua imprevidência e não de Deus.
Sendo o mal o resultado das imperfeições do
homem e sendo o homem criado por Deus, Deus, dir-se-á, se não criou o mal,
criou pelo menos a causa do
mal; se tivesse feito o homem perfeito, o mal não existiria.
Se o homem tivesse sido criado perfeito, seria fatalmente
levado para o bem; ora, devido ao seu livre-arbítrio, não
é fatalmente levado para o bem nem
para o mal. Deus quis que
fosse submetido à lei da evolução e que
essa evolução fosse o fruto do seu próprio trabalho, para que o mérito fosse
seu, assim como é responsável pelo mal que é resultado da sua vontade. A
questão é então saber qual é, no homem, a fonte da propensão para o mal. (*)
(*) O erro consiste em pretender que a alma saiu perfeita das mãos do Criador, enquanto este, pelo contrário, quis que a perfeição fosse o resultado da purificação gradual do Espírito e sua própria obra. Deus quis que a alma, por virtude do seu livre-arbítrio, pudesse optar entre o bem e o mal e que chegasse aos seus fins últimos por via militante e resistindo ao mal. Se tivesse feito a alma perfeita como ele e se, ao sair das suas mãos, a tivesse associado à beatitude eterna, tê-la-ia feito não à sua imagem, mas igual a si mesmo. (Bonnamy, juiz de instrução, A Razão do Espiritismo, Capítulo VI). (N. do A.)
(*) O erro consiste em pretender que a alma saiu perfeita das mãos do Criador, enquanto este, pelo contrário, quis que a perfeição fosse o resultado da purificação gradual do Espírito e sua própria obra. Deus quis que a alma, por virtude do seu livre-arbítrio, pudesse optar entre o bem e o mal e que chegasse aos seus fins últimos por via militante e resistindo ao mal. Se tivesse feito a alma perfeita como ele e se, ao sair das suas mãos, a tivesse associado à beatitude eterna, tê-la-ia feito não à sua imagem, mas igual a si mesmo. (Bonnamy, juiz de instrução, A Razão do Espiritismo, Capítulo VI). (N. do A.)
Se estudarmos todas as paixões e até todos os vícios, verificaremos
que têm a sua origem no instinto de
conservação. Este instinto está em toda a sua força nos animais e nos
seres primitivos que
se aproximam mais da animalidade; aí domina sozinho, porque neles não
existe ainda como contrapeso o
sentido moral; o ser ainda não nasceu para a vida intelectual. Pelo
contrário, o instinto enfraquece à medida que a inteligência se desenvolve,
porque esta domina a matéria.
O destino do Espírito é a vida espiritual; mas, nas
primeiras fases da sua existência corporal, existem unicamente necessidades materiais a satisfazer
e, com este fim, o exercício das paixões é uma necessidade para a conservação da
espécie e dos indivíduos, materialmente falando. Mas saído
deste período, tem outras necessidades, primeiro semimorais e semimateriais, depois exclusivamente morais. É então que o Espírito
domina a matéria; se lhe sacode o
jugo, avança na sua via providencial e
aproxima-se do seu destino final. Se, pelo contrário, se deixa dominar por ela,
fica para trás, assemelhando-se à besta. Nesta situação, o que outrora
era um bem, porque era uma necessidade da natureza, torna-se um mal, não só por
não ser uma necessidade, mas porque isso se torna prejudicial à
espiritualização do ser. Assim como o que é qualidade na criança passa
a ser defeito no adulto. O mal é deste modo relativo e a responsabilidade proporcional ao grau
de evolução.
Todas as paixões têm portanto a sua utilidade providencial; sem isso, Deus teria feito qualquer coisa de inútil e prejudicial. É o abuso que constitui o mal e o homem abusa devido ao seu livre-arbítrio. Mais tarde, esclarecido pelo seu próprio interesse, escolhe livremente o bem e o mal.
/...
ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as
Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo III, O Bem e o Mal – Fonte do bem e
do mal (de 01 a 10), 19º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria
Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e
os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)