SUICÍDIO ABOMINÁVEL
(I)
Anunciava-se o Natal. As tempestades sucediam-se contínuas
sobre a região. Os céus enfurecidos sacudiam as árvores e levavam a terra em
fluxos e refluxos incessantes. Dezembro era sempre o mês das tormentas brutais.
Girólamo vivia perdido nos seus cismares. Alheava-se de tudo
e, quando lhe brilhavam os olhos com discernimento, afogava as angústias em
incessantes libações, que o prostravam. Nesses estados de bebedeira, parecia
piorar gravemente. Fugindo à consciência dos crimes que o açoitavam
desapiedadamente, açulada a mente pela pertinaz presença do duque – que na sua alucinação ignorava
as providências superiores da vida, fazendo que Carlo, seu filho renascesse em
breve, para continuar a fruir os benefícios da evolução, já que ninguém fica à
margem da Lei Divina –, quando o seu espírito desejoso de esquecimento se desprendia
parcialmente do corpo, expulso pelos vapores alcoólicos, caía sob a crueza do
perseguidor, que o explorava abominavelmente…
Em Siena, dominado pela volúpia que o enceguecia, Carlo dava
largas à própria insanidade moral. Logo que retornara à cidade, começou a fruir o
gozo em escala desmedida, entregando-se a toda a sorte de engodos e prazeres.
Mesmo com as regalias que lhe permitia o amo, o florentino excedia-se,
retornando ao palácio sempre embriagado, quando não dormia fora dos cómodos
reservados aos serviçais da casa. O cansaço e o amolentamento foram dominando-o
com precipitação, gerando antipatia, que se generalizava entre os próprios
companheiros das cavalariças. Além disso, os jogos e as noitadas contínuas
culminaram por despertar suspeitas, quanto à procedência da súbita fortuna que
desperdiçava.
Os comentários chegaram ao conhecimento da bonomia do Conde,
que, ante a insistência dos mexericos, resolveu convocá-lo à justa prestação de
contas. Demonstrando a simpatia que lhe causava o moço, Dom Lorenzo
indagou-lhe:
– Carlo, onde você consegue tanto dinheiro para gastá-lo à
larga, ao ponto de descuidar-se dos deveres, nas cavalariças, entregando-se
totalmente à orgia?
O ginete astuto, compreendendo a delicadeza do momento,
bajulador e hábil, esclareceu:
– Trata-se do prémio que a vossa generosidade me concedeu,
Senhor Conde, e de pequenos regalos
de outros admiradores, logo após o palio.
– Carlo, não minta! – redarguiu, severo, o nobre. – Estou
seguramente informado de que na noite da festa você perdeu todas as posses para
o meu genro… (Percebeu o súbito palor que tomou a face do palafreneiro.) Além
disso, já se passaram mais de 3 meses, após o palio…Por mais generosos que tenham sido ou continuem sendo os
presentes que você recebe, eles não podem cobrir as suas despesas… Sou muito
zeloso pela honra da minha casa, do meu nome, do meu título, e os que me servem
devem servir-me com elevação. É claro que perdoo pequenos deslizes da
juventude, mas não estou disposto a transigir com os grandes erros… Donde lhe
vem o dinheiro? Sei que você não o está roubando de mim. De quem então?
Responda-me, Carlo!
O moço desejou escusar-se, mas não se atreveu. Havia na face
do homem caprichoso, conquanto capaz de largas explosões de generosidade, os
sinais de que estava disposto a ir além, descobrir tudo.
Maneiroso, o florentino obtemperou, com modulação servil:
– Perdoai-me, amo. Sucede que estou apaixonado e o meu amor
não é correspondido, fazendo-me desesperar…
– E o dinheiro, Carlo? – pressionou.
– É exactamente isso, meu nobre amo, – prosseguiu.
– Quando estive com o Cavaliere Dom Girólamo, em sua herdade, acompanhando-vos,
narrei-lhe a minha desdita e, compadecido da minha sorte, o nobre senhor
resolveu devolver-me o que ganhara de mim nos dados, oferecendo-me algo mais.
Disse-me compreender o drama que me afligia e, agradecido pela forma como eu
defendera as cores da vossa casa, ele resolveu retribuir-me a devoção…
– Muito bem, Carlo. Irei informar-me de Dom Girólamo quanto
à veracidade do que você acaba de narrar-me, preferindo confiar até comprovação
contrária, se esta vier posteriormente.
– Eu vos afirmo, senhor: jamais faria alguma coisa que vos
pudesse molestar ou desagradar.
Despedido, o moço saiu cerimoniosamente, da forma que muito
agrada aos iludidos da transitória posição na Terra.
Dali saindo, porém, inquietou-se. Tinha necessidade de
advertir o seu cômpar na infelicidade do crime. Pensando demoradamente,
resolveu pedir ao amo uma licença para visitar familiares em Florença, de quem
afirmava ter recebido notícias muito dolorosas e, como naqueles dias de chuvas
as estradas eram difíceis de transitar, solicitou ao Conde o empréstimo de um
animal, no que foi atendido, partindo então, a visitar o dementado Senhor di
Bicci.
Vencida a distância a muito custo, Carlo atingiu o Solar
Cherubini-Bicci.
Foi agradavelmente recebido pelos servos da casa, que
incontinente o anunciaram à ama, considerando o estado do Conde.
A Condessa, surpreendida, supondo que houvesse acontecido alguma
desventura em Siena, mandou chamá-lo imediatamente à sua presença, recebendo-o
na sala em que bordava, acolitada por duas aias. O viajante apressou-se em
tranquilizar a senhora, informando que seguia a Florença, a tratar de problemas
pessoais, quando, colhido pela tormenta, resolvera suplicar agasalho ali até
que amainassem as chuvas. Jubilosamente reconfortada, a condessa assentiu.
– Apresentai, senhora – disse, servil –, as minhas saudações ao
nobre esposo, informando-o que estarei inteiramente às suas ordens, logo que o
deseje para qualquer coisa.
– Muito obrigada, Carlo, pela sua atitude de cortesia. Meu
marido apreciará devidamente o seu respeito. Darei as suas saudações. Pode retirar-se.
– Com licença, senhora.
Quando Girólamo soube do indesejável visitante, não pôde
esconder a mágoa e a ira, provocando na esposa o espicaçar da curiosidade para
saber das razões do incómodo. Não desejando, porém, produzir contrariedades
maiores, silenciou. No dia imediato, pela manhã, Carlo mandou solicitar
entrevista ao enfermo, que parecia mais perturbado ainda. Justificava-se como
desejoso de despedir-se. Recebido a contragosto, o Conde lhe sentenciou:
– Não me roubarás mais uma moeda cão!
– Acalmai-vos, senhor, – retorquiu o visitante. – Estou de
passagem com destino a Florença e, de lá, partirei definitivamente. Pretendo
seguir adiante e crescer… Sinto-me capaz de qualquer aventura e sou ambicioso.
As oportunidades multiplicam-se em Veneza e pretendo rumar para lá. Venho
despedir-me, senhor.
– Não era necessário, – remoeu o paciente, reflectindo na
face o lamentável estado em que se encontrava. – Não és aqui considerado e a tua
ausência não seria notada… podes retirar-te, portanto.
– Um momento, senhor. Suporto as palavras azedas mas não as
ofensas graves. Afinal, a única diferença entre nós é a oportunidade que
tiveste e eu ainda não… Venho recordar-vos o meu silêncio…
Girólamo, que parecia disposto ao último lance, avançou com
um punhal na mão, resolvido a qualquer tentame. O hábil contentor, no auge da força física e da agilidade, saltou, felino, empurrando
violentamente o senense, que tombou ofegante, e, acto contínuo, o dominou,
tomando a arma e falando-lhe no rosto, com voz pegajosa, que traduzia a sua disposição
terminante de não perder o evento:
– E o meu silêncio, senhor?
– Solta-me, bandido – estertou o doente, cujas forças
diminuíam ante o domínio taurino que o estatelava –, solta-me, infame, ou
pagarás caro a afronta. Mandarei enforcar-te, mesmo que isso seja a última
coisa que eu faça…
– Estais solto, senhor, – libertou-o, blasonando, o
chantagista, que assumiu atitude arrogante, face à inferioridade do litigante
enfermo –, mas daqui somente sairei remunerado, ou trarei as autoridades
senenses para um doloroso inquérito… Soube que a família Médici tem os olhos
sobre esta casa, não só os de Siena como os de Florença. Os peçonhentos estão
sempre procurando a quem despojar, ainda mais no que foram vilmente despojados…
Portanto, senhor, em vossas mãos a decisão…
Girólamo arfava, dolorosamente combalido. O declinar das
forças orgânicas e o desequilíbrio da harmonia psíquica transformam a presunção
e a altivez fanfarrona em humilhação amesquinhadora. Vencido, irreparavelmente
vencido, pelas armas com que sempre esgrimia à socapa, o antigo usurpador
experimentava o frio gume da derrota. O outro sorria, e a sua embófia recordava
no derrotado a própria audácia de outrora, com que, insensível, vilipendiava os
dons da vida… Cambaleante, atirou na face do dominador, com supremo desprezo, a
bolsa das moedas, recheada, praguejando:
– Encontrar-nos-emos… Verás…
/…
VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO
PRIMEIRO, 10 SUICÍDIO ABOMINÁVEL (1 de 2) 32º fragmento desta obra. Texto
mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt
| 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)