Entre as numerosas formas que revestem as manifestações
mediúnicas de natureza inteligente, não nos devemos esquecer das que consistem
na produção de obras literárias, às vezes bem volumosas, ditadas psicograficamente por
entidades que dizem ser espíritos de mortos.
Há necessidade de notar que grande número dessas produções
mediúnicas não resiste a uma análise crítica, mesmo a mais superficial, de tal
modo é evidente serem apenas o produto de uma elaboração onírico-subconsciente,
de natureza grosseira e mais ou menos incoerente, com personalizações
sonambúlicas que se formaram por sugestão ou auto-sugestão.
Essas personificações devem, em toda a parte, nesses casos,
ter origem nos recursos do talento e da instrução própria às personalidades
conscientes de que provêm, com a consequência de que as obras literárias dos
supostos espíritos que julgam comunicar-se são, algumas vezes, tão
rudimentares, que traem a sua origem, sem que se possa ter a menor dúvida a
esse respeito.
Não é menos verdade que, ao lado dos pseudo-médiuns,
se encontram médiuns autênticos, por intermédio dos quais se obtêm, às
vezes, obras literárias de grande mérito, que levam a uma reflexão séria e
não podem ser atribuídas a uma elaboração subconsciente da cultura geral, muito
limitada, que se reconhece nos médiuns que, materialmente, as escreveram. É
então necessário deduzir logicamente daí que essas produções provenham de
intervenções estranhas aos médiuns, tanto mais se se consideram não somente as
provas que se deduzem da forma, estilo, técnica individual da obra literária e
também da identificação de escrita, como outras provas não menos importantes.
Essas provas consistem, sobretudo, em indicações pessoais
ignoradas de todos os assistentes e das quais se verifica, em seguida, a
veracidade; em citações não menos verídicas e desconhecidas de todos, com
referência a elementos históricos, geográficos, topográficos, filológicos, de
natureza complexa e quase sempre rara, enfim, em descrições minuciosas,
coloridas e vivas, de meios e costumes referentes a povos bem antigos,
circunstâncias que não poderiam ser esquecidas pela hipótese cómoda da
emergência subconsciente de noções adquiridas e, em seguida, esquecidas
(criptomnesia).
Proponho-me, neste estudo, analisar as principais
manifestações desse género, principalmente porque foram obtidos, ultimamente,
ditados mediúnicos que revestem alto valor teórico, num sentido nitidamente
espírita.
O que se obteve, no passado, nessa categoria de
manifestações, só tem rara importância teórica; de qualquer forma, não me
absterei de dizer algumas palavras a seu respeito.
Começo por um caso de transição referente
a uma célebre obra literária. Tudo o que se pode dizer a seu respeito é que não
é fácil considerar se as modalidades, pelas quais veio à luz, devem ser
atribuídas a intervenções estranhas à médium ou bem a um estado de
superexcitação psíquica, bastante frequente nas “crises de inspiração”, às
quais são sujeitas as mentalidades geniais. Em todo o caso, trata-se de um
facto interessante e instrutivo, dadas a notoriedade da autora e a influência
considerável que a obra literária em questão exerceu sobre acontecimentos
históricos e sociais de uma grande nação.
Quero referir-me à célebre escritora sra. Harriet
Beecher-Stowe e ao seu bem conhecido romance A Cabana do Pai
Tomás, o qual muito contribuiu para a abolição da escravatura nos Estados
Unidos da América.
O meio familiar em que viveu Harriet Beecher-Stowe pode ser
considerado como favorável a intervenções espirituais.
“O marido, prof. Stowe, era médium vidente. Ele
viu muitas vezes, à sua volta, fantasmas de defuntos, de maneira tão nítida e
natural que por vezes lhe era difícil discernir os espíritos “encarnados” dos
“desencarnados”.”
Quanto à sra. Beecher-Stowe, ela era também grande sensitiva,
“sujeita a crises frequentes de depressão nervosa com fases de ausência
psíquica”. Ela acolhera com entusiasmo o movimento espírita que
se iniciara na América, havia alguns anos.
Relativamente ao seu grande romance A Cabana do Pai
Tomás, extraio da Light (1898, pág. 96) as seguintes
informações:
“A sra. Howard, amiga íntima da sra. Beecher-Stowe, forneceu
essas curiosas indicações relativamente às modalidades nas quais o famoso
romance foi escrito. As duas amigas estavam em viagem e pararam em Hartford
para passarem a noite em casa da sra. Perkins, irmã da sra. Stowe. Elas
dormiram no mesmo quarto. A sra. Howard despiu-se imediatamente e ficou, do seu
leito, observando a sua amiga ocupada em pentear, automaticamente, os
seus cabelos anelados, deixando transparecer no seu rosto intensa concentração
mental. Nesse ponto, a narradora continua assim:
Finalmente Harriet pareceu sair desse estado e disse-me:
– Recebi, esta manhã, cartas de meu irmão Henry que se
mostra bastante preocupado a meu respeito. Ele teme que todos esses elogios,
que toda esta notoriedade que se criou em torno do meu nome, produzam o efeito
de provocar em mim uma chama de orgulho que possa prejudicar a minha alma de
cristã.
Dizendo isto, pousou o pente, exclamando:
– O meu irmão é, incontestavelmente, uma bela alma,
porém ele não se preocuparia tanto com esse caso se soubesse que esse livro não
foi escrito por mim.
– Como – perguntei eu, estupefacta –, não foi você quem
escreveu A Cabana do Pai Tomás?
– Não – respondeu ela –, não fiz outra coisa
senão tomar nota do que via.
– Que está a dizer? Então você nunca foi aos Estados do
Sul?
– É verdade, todas as cenas do meu romance, uma a
seguir à outra, se me desenrolaram diante dos olhos e eu descrevi o que via.
Perguntei ainda:
– Pelo menos você regulou a sequência dos
acontecimentos.
– De modo nenhum – respondeu-me ela –; a sua filha
Annie me censura por ter feito morrer Evangelina. Ora, isso não foi por minha
culpa; não podia impedi-lo. Senti-o mais do que todos os leitores; foi como se
a morte tivesse atingido uma pessoa da minha família. Quando a morte de
Evangelina se deu, fiquei tão abatida que não pude retomar a pena por mais de
duas semanas.
Perguntei-lhe então:
– E sabia que o pobre pai Tomás devia, por sua vez,
morrer?
– Sim – respondeu-me ela –, isso eu o sabia desde o
princípio, porém ignorava de que morte iria morrer. Quando cheguei a esse ponto
do romance, não tive mais visões durante algum tempo.”
Em outro número da mesma revista, (1918, pág. 325),
relatou-se o seguinte episódio sobre o mesmo assunto:
“Certa tarde, a sra. Beecher-Stowe passeava sozinha, como de
hábito, no parque. O capitão X. viu-a, aproximou-se dela e, descobrindo-se
respeitosamente, disse-lhe: Na minha mocidade, li também com intensa
emoção A Cabana do Pai Tomás. Permiti-me apertar a mão da autora do
célebre romance. A escritora, septuagenária, estendeu-lhe a mão, notando,
entretanto, vivamente:
– Não fui eu quem o escreveu.
– Como, não foi a senhora? – perguntou o capitão,
surpreso –. Quem o escreveu então?
Ela respondeu:
– Deus o escreveu. Foi Ele quem ma ditou.”
Na primeira das duas passagens acima, que acabo de citar,
nota-se uma emergência espontânea da subconsciência da autora, consistindo em
visões cinematográficas que traçam a acção do romance, o que oferece grandes
analogias com as modalidades da cerebração donde saíram romances de outros
autores de génio, tais como Dickens e Balzac.
Estes últimos, por sua vez, viam desfilar, subjectivamente, as cenas e os
personagens que tinham imaginado. A diferença entre as suas visões
e as da sra. Beecher-Stowe parece, então, consistir nesta última
circunstância: eles assistiam ao desenvolvimento de acontecimentos que
a sua imaginação consciente tinha criado, ao passo que a sra. Beecher-Stowe
assistia, passivamente, ao desenrolar de eventos que não tinha criado e
que estavam, muitas vezes, em oposição absoluta à sua vontade, pois que, por
ela, não teria feito morrer duas santas personagens do seu romance.
Esta circunstância é importante e parece fazer distinguir as
visões subjectivas, comuns aos escritores de génio, das tidas pela sra.
Beecher-Stowe, da mesma maneira que as “objectivações de tipos”, estereotipadas
e automatizadas, que se obtêm pela sugestão hipnótica, não apresentam nada de
comum com as personalidades mediúnicas, independentes e livres, que se
manifestam por intermédio de verdadeiros médiuns.
A presunção de que não se tratava de visões puramente
subjectivas adquire mais eficácia ainda graças à segunda das duas passagens já
citadas, na qual a sra. Beecher-Stowe declara, explicitamente, ter transcrito o
seu romance como ele lhe fora ditado, o que prova que a célebre autora
era médium escrevente, circunstância que se encontra confirmada por factos
assinalados na sua biografia, segundo os quais ela era sujeita a “fases de
ausência psíquica” que eram, com toda a verosimilhança, estados superficiais de
transe.
De outro ponto de vista, faço notar que a exclamação da sra.
Beecher-Stowe: “Deus o escreveu”, subentende que o ditado mediúnico se realizou
sob forma anónima, isto é, que o agente espiritual operante ocultava a
própria individualidade, limitando-se, ao que parece, a cumprir na
Terra a missão de que se encarregara: a de contribuir, eficazmente,
graças a uma narrativa emocionante e pungente, para a obra humanitária da
redenção de uma raça oprimida.
Julguei poder tirar do caso a conclusão de que venho de
narrar. Todavia, não insisto nela, considerando que estas induções não são
suficientes para concluir a favor da origem realmente espírita do romance em
questão.
É necessário, todavia, notar que as bases sobre as quais
repousam as induções a favor de uma explicação puramente subjectiva dos estados
da alma por que passou a autora, quando trabalhava no seu grande romance,
parecem bem mais fracas, quando são analisadas, que as da interpretação
espírita dos mesmos factos.
/...
Ernesto Bozzano, Literatura do
Além-túmulo, Capítulo I – A Cabana do Pai Tomás, de
Harriet Beecher-Stowe. 2º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Les Fleurs du Lac
| 1900, tempera no painel de Edgard
Maxence)