Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 17 de setembro de 2024

literatura do além-túmulo ~


Capítulo I

  Entre as numerosas formas que revestem as manifestações mediúnicas de natureza inteligente, não nos devemos esquecer das que consistem na produção de obras literárias, às vezes bem volumosas, ditadas psicograficamente por entidades que dizem ser espíritos de mortos.

  Há necessidade de notar que grande número dessas produções mediúnicas não resiste a uma análise crítica, mesmo a mais superficial, de tal modo é evidente serem apenas o produto de uma elaboração onírico-subconsciente, de natureza grosseira e mais ou menos incoerente, com personalizações sonambúlicas que se formaram por sugestão ou auto-sugestão.

  Essas personificações devem, em toda a parte, nesses casos, ter origem nos recursos do talento e da instrução própria às personalidades conscientes de que provêm, com a consequência de que as obras literárias dos supostos espíritos que julgam comunicar-se são, algumas vezes, tão rudimentares, que traem a sua origem, sem que se possa ter a menor dúvida a esse respeito.

  Não é menos verdade que, ao lado dos pseudo-médiuns, se encontram médiuns autênticos, por intermédio dos quais se obtêm, às vezes, obras literárias de grande mérito, que levam a uma reflexão séria e não podem ser atribuídas a uma elaboração subconsciente da cultura geral, muito limitada, que se reconhece nos médiuns que, materialmente, as escreveram. É então necessário deduzir logicamente daí que essas produções provenham de intervenções estranhas aos médiuns, tanto mais se se consideram não somente as provas que se deduzem da forma, estilo, técnica individual da obra literária e também da identificação de escrita, como outras provas não menos importantes.

  Essas provas consistem, sobretudo, em indicações pessoais ignoradas de todos os assistentes e das quais se verifica, em seguida, a veracidade; em citações não menos verídicas e desconhecidas de todos, com referência a elementos históricos, geográficos, topográficos, filológicos, de natureza complexa e quase sempre rara, enfim, em descrições minuciosas, coloridas e vivas, de meios e costumes referentes a povos bem antigos, circunstâncias que não poderiam ser esquecidas pela hipótese cómoda da emergência subconsciente de noções adquiridas e, em seguida, esquecidas (criptomnesia).

  Proponho-me, neste estudo, analisar as principais manifestações desse género, principalmente porque foram obtidos, ultimamente, ditados mediúnicos que revestem alto valor teórico, num sentido nitidamente espírita.

  O que se obteve, no passado, nessa categoria de manifestações, só tem rara importância teórica; de qualquer forma, não me absterei de dizer algumas palavras a seu respeito.

  Começo por um caso de transição referente a uma célebre obra literária. Tudo o que se pode dizer a seu respeito é que não é fácil considerar se as modalidades, pelas quais veio à luz, devem ser atribuídas a intervenções estranhas à médium ou bem a um estado de superexcitação psíquica, bastante frequente nas “crises de inspiração”, às quais são sujeitas as mentalidades geniais. Em todo o caso, trata-se de um facto interessante e instrutivo, dadas a notoriedade da autora e a influência considerável que a obra literária em questão exerceu sobre acontecimentos históricos e sociais de uma grande nação.

  Quero referir-me à célebre escritora sra. Harriet Beecher-Stowe e ao seu bem conhecido romance A Cabana do Pai Tomás, o qual muito contribuiu para a abolição da escravatura nos Estados Unidos da América.

  O meio familiar em que viveu Harriet Beecher-Stowe pode ser considerado como favorável a intervenções espirituais.

O prof. James Robertson assim fala na Light (1904, pág. 338):

  “O marido, prof. Stowe, era médium vidente. Ele viu muitas vezes, à sua volta, fantasmas de defuntos, de maneira tão nítida e natural que por vezes lhe era difícil discernir os espíritos “encarnados” dos “desencarnados”.”

  Quanto à sra. Beecher-Stowe, ela era também grande sensitiva, “sujeita a crises frequentes de depressão nervosa com fases de ausência psíquica”. Ela acolhera com entusiasmo o movimento espírita que se iniciara na América, havia alguns anos.

Relativamente ao seu grande romance A Cabana do Pai Tomás, extraio da Light (1898, pág. 96) as seguintes informações:

  “A sra. Howard, amiga íntima da sra. Beecher-Stowe, forneceu essas curiosas indicações relativamente às modalidades nas quais o famoso romance foi escrito. As duas amigas estavam em viagem e pararam em Hartford para passarem a noite em casa da sra. Perkins, irmã da sra. Stowe. Elas dormiram no mesmo quarto. A sra. Howard despiu-se imediatamente e ficou, do seu leito, observando a sua amiga ocupada em pentear, automaticamente, os seus cabelos anelados, deixando transparecer no seu rosto intensa concentração mental. Nesse ponto, a narradora continua assim:

Finalmente Harriet pareceu sair desse estado e disse-me:

– Recebi, esta manhã, cartas de meu irmão Henry que se mostra bastante preocupado a meu respeito. Ele teme que todos esses elogios, que toda esta notoriedade que se criou em torno do meu nome, produzam o efeito de provocar em mim uma chama de orgulho que possa prejudicar a minha alma de cristã.

Dizendo isto, pousou o pente, exclamando:

  – O meu irmão é, incontestavelmente, uma bela alma, porém ele não se preocuparia tanto com esse caso se soubesse que esse livro não foi escrito por mim.

  – Como – perguntei eu, estupefacta –, não foi você quem escreveu A Cabana do Pai Tomás?

  – Não – respondeu ela –, não fiz outra coisa senão tomar nota do que via.

  – Que está a dizer? Então você nunca foi aos Estados do Sul?

  – É verdade, todas as cenas do meu romance, uma a seguir à outra, se me desenrolaram diante dos olhos e eu descrevi o que via.

Perguntei ainda:

  – Pelo menos você regulou a sequência dos acontecimentos.

  – De modo nenhum – respondeu-me ela –; a sua filha Annie me censura por ter feito morrer Evangelina. Ora, isso não foi por minha culpa; não podia impedi-lo. Senti-o mais do que todos os leitores; foi como se a morte tivesse atingido uma pessoa da minha família. Quando a morte de Evangelina se deu, fiquei tão abatida que não pude retomar a pena por mais de duas semanas.

Perguntei-lhe então:

  – E sabia que o pobre pai Tomás devia, por sua vez, morrer?

  – Sim – respondeu-me ela –, isso eu o sabia desde o princípio, porém ignorava de que morte iria morrer. Quando cheguei a esse ponto do romance, não tive mais visões durante algum tempo.”

Em outro número da mesma revista, (1918, pág. 325), relatou-se o seguinte episódio sobre o mesmo assunto:

“Certa tarde, a sra. Beecher-Stowe passeava sozinha, como de hábito, no parque. O capitão X. viu-a, aproximou-se dela e, descobrindo-se respeitosamente, disse-lhe: Na minha mocidade, li também com intensa emoção A Cabana do Pai Tomás. Permiti-me apertar a mão da autora do célebre romance. A escritora, septuagenária, estendeu-lhe a mão, notando, entretanto, vivamente:

  – Não fui eu quem o escreveu.

  – Como, não foi a senhora? – perguntou o capitão, surpreso –. Quem o escreveu então?

  Ela respondeu:

  – Deus o escreveu. Foi Ele quem ma ditou.”

  Na primeira das duas passagens acima, que acabo de citar, nota-se uma emergência espontânea da subconsciência da autora, consistindo em visões cinematográficas que traçam a acção do romance, o que oferece grandes analogias com as modalidades da cerebração donde saíram romances de outros autores de génio, tais como Dickens e Balzac. Estes últimos, por sua vez, viam desfilar, subjectivamente, as cenas e os personagens que tinham imaginado. A diferença entre as suas visões e as da sra. Beecher-Stowe parece, então, consistir nesta última circunstância: eles assistiam ao desenvolvimento de acontecimentos que a sua imaginação consciente tinha criado, ao passo que a sra. Beecher-Stowe assistia, passivamente, ao desenrolar de eventos que não tinha criado e que estavam, muitas vezes, em oposição absoluta à sua vontade, pois que, por ela, não teria feito morrer duas santas personagens do seu romance.

  Esta circunstância é importante e parece fazer distinguir as visões subjectivas, comuns aos escritores de génio, das tidas pela sra. Beecher-Stowe, da mesma maneira que as “objectivações de tipos”, estereotipadas e automatizadas, que se obtêm pela sugestão hipnótica, não apresentam nada de comum com as personalidades mediúnicas, independentes e livres, que se manifestam por intermédio de verdadeiros médiuns.

  A presunção de que não se tratava de visões puramente subjectivas adquire mais eficácia ainda graças à segunda das duas passagens já citadas, na qual a sra. Beecher-Stowe declara, explicitamente, ter transcrito o seu romance como ele lhe fora ditado, o que prova que a célebre autora era médium escrevente, circunstância que se encontra confirmada por factos assinalados na sua biografia, segundo os quais ela era sujeita a “fases de ausência psíquica” que eram, com toda a verosimilhança, estados superficiais de transe.

  De outro ponto de vista, faço notar que a exclamação da sra. Beecher-Stowe: “Deus o escreveu”, subentende que o ditado mediúnico se realizou sob forma anónima, isto é, que o agente espiritual operante ocultava a própria individualidade, limitando-se, ao que parece, a cumprir na Terra a missão de que se encarregara: a de contribuir, eficazmente, graças a uma narrativa emocionante e pungente, para a obra humanitária da redenção de uma raça oprimida.

  Julguei poder tirar do caso a conclusão de que venho de narrar. Todavia, não insisto nela, considerando que estas induções não são suficientes para concluir a favor da origem realmente espírita do romance em questão.

  É necessário, todavia, notar que as bases sobre as quais repousam as induções a favor de uma explicação puramente subjectiva dos estados da alma por que passou a autora, quando trabalhava no seu grande romance, parecem bem mais fracas, quando são analisadas, que as da interpretação espírita dos mesmos factos.

/...

Ernesto Bozzano, Literatura do Além-túmulo, Capítulo I – A Cabana do Pai Tomás, de Harriet Beecher-Stowe. 2º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Les Fleurs du Lac | 1900, tempera no painel de Edgard Maxence)

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Da sombra do dogma à luz da razão ~


~ Uranografia Geral (*)
O espaço e o tempo ~

| Galileu, Espírito
(Études Uranographiques) (XI)

Sucessão eterna de mundos 🌈

  Vimos que ao Universo foi dada uma única lei primordial e geral para lhe garantir estabilidade eterna e que esta lei geral é perceptível aos nossos sentidos por várias acções particulares a que chamamos forças directivas da natureza. Vamos mostrar hoje que a harmonia do mundo inteiro, considerada sob o duplo aspecto de eternidade e de espaço, está garantida por essa lei suprema.

  Com efeito, se recuarmos até à origem primeira dos aglomerados primitivos de substância cósmica, verificaremos que já então, sob o império dessa lei, a matéria sofria as transformações necessárias que conduzem da semente ao fruto maduro e que sob a impulsão das várias forças nascidas desta lei, percorre a escala destas revoluções periódicas; primeiro centro fluídico dos movimentos, depois gerador de mundos, mais tarde núcleo central e atractivo das esferas no seu seio.

  Sabemos já que estas leis presidem à história do Cosmos; o que interessa saber agora é que presidem também à destruição dos astros, pois a morte não é só uma metamorfose do ser vivo como também uma transformação da matéria inanimada; e se é verdade dizer-se, em sentido literal, que só a vida é acessível à foice da morte, é igualmente justo acrescentar que a substância deve em qualquer circunstância sofrer as transformações inerentes à sua constituição.

  Eis um mundo que, desde o seu berço primitivo, percorreu todo o espaço dos anos que a sua organização especial lhe permitia percorrer; a fogueira interior da sua existência apagou-se, os elementos próprios perderam a sua virtude principal; os fenómenos da natureza que reclamavam para se produzirem, a presença e a acção das forças reservadas a este mundo, a partir de então deixaram de se poder produzir porque a alavanca da sua actividade já não tem o ponto de apoio que lhe conferia toda a sua força.

  Ora, poder-se-ia pensar que esta Terra extinta e sem vida iria continuar a gravitar nos espaços celestes, sem objectivo, e passar como uma cinza inútil no turbilhão dos céus? Poder-se-ia pensar que permanece inscrita no livro da vida universal, quando não passa de letra morta desprovida de sentido? Não; as mesmas leis que a elevaram acima do caos tenebroso e que a premiaram com os esplendores da vida, as mesmas forças que a governaram durante os séculos da sua adolescência, que consolidaram os seus primeiros passos na existência e que a conduziram à idade madura e à velhice, vão presidir à desagregação dos seus elementos constituintes para os levarem ao laboratório onde o poder criativo vai constantemente buscar as condições de estabilidade geral. Estes elementos vão regressar à massa comum do éter para se assimilarem a outros corpos ou para regenerar outros sóis; e esta morte não será um acontecimento inútil para esta Terra nem para as suas irmãs; irá renovar, noutras regiões, outras criações de natureza diferente e ali onde sistemas de mundos se apagaram em breve renascerá um, novo canteiro de flores mais brilhantes e mais perfumadas.

  Assim, a eternidade real e efectiva do Universo está garantida pelas mesmas leis que dirigiram as operações do tempo; assim, os mundos sucedem aos mundos, os sóis aos sóis, sem que o imenso mecanismo dos vastos céus seja alguma vez atingido nas suas gigantescas molas.

  Ali, onde os vossos olhos admiram esplêndidas estrelas sob a abóbada das noites, ali, onde o vosso espírito contempla irradiações magníficas que resplandecem em longínquos espaços, há muito que o vazio sucedeu a este deslumbramento e até recebeu novas criações ainda desconhecidas. O imenso afastamento destes astros, devido ao qual a luz que nos enviam leva milhares de anos a chegar até nós, faz com que só hoje recebamos os raios que nos enviaram muito tempo antes da criação da Terra e que ainda os vamos continuar a admirar durante milhares de anos depois do seu desaparecimento real (**).

  Portanto, aqui como nos nossos outros estudos, reconhecemos que a Terra e o homem não são nada comparados com a infinitude e que as mais colossais operações do nosso pensamento só se estendem ainda até um campo imperceptível comparado com a imensidão e a eternidade de um Universo que nunca terá fim.

  E quando esses períodos da nossa imortalidade nos tiverem passado por cima, quando a história actual da Terra nos aparecer como uma sombra esbatida ao fundo da nossa memória, depois de termos habitado durante séculos sem conta esses diversos graus da nossa hierarquia cosmográfica, depois dos longínquos domínios das eras futuras terem sido percorridos por inúmeras peregrinações, teremos à nossa frente a sucessão ilimitada de mundos e a imóvel eternidade como perspectiva.

/…
(*) Este capítulo foi textualmente extraído de uma série de comunicações ditadas à Sociedade Espírita de Paris, em 1862 e 1863, sob o título de Études Uranographiques e assinado, Galileu; médium M. C. F. (N. do A.)
(**) Trata-se de um efeito devido ao tempo que a luz leva a atravessar o espaço. Sendo a sua velocidade de setenta mil léguas por segundo, chega-nos do Sol em oito minutos e treze segundos. Daí resulta que se um fenómeno se dá na superfície do Sol, nós só nos apercebemos dele oito minutos depois e, pelo mesmo motivo, ainda o veremos oito minutos após o seu desaparecimento. Se, devido ao seu afastamento, a luz de uma estrela leva mil anos a chegar até nós, só veremos essa estrela mil anos depois da sua formação. (Ver para a explicação e descrição completas deste fenómeno, a Revista Espírita de Março e Maio de 1867, pp 93 e 151; relatório de Lúmen, por M. C. Flamarion.)
O que são os seis mil anos de humanidade histórica perante os períodos seculares? Segundos nos vossos séculos? O que são as vossas observações astronómicas perante o estado absoluto do mundo? A sombra eclipsada pelo Sol. (N. do A.)


ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo VI, Uranografia Geral, O espaço e o tempo – Sucessão eterna de mundos (de 48 a 52), 33º fragmento desta obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites).