(III de III)
Na mente de Girólamo, em crescente desejo de reparar e
diminuir as dores excessivas, surgiu um intercâmbio benéfico, de cuja
continuidade resultariam os planos libertadores, para o futuro, de todos os
implicados nas sucessivas tragédias.
Assim, algumas décadas passadas, a duquesa conseguiu dos Espíritos Superiores que Dom Giovanni e Girólamo
fossem recolhidos das penosas circunstâncias em que se encontravam, para
reiniciarem a caminhada, recuperarem o tempo e a se reaparelharem para a vida. Na
mesma dimensão de misericórdia foi o apelo estendido a Assunta e a Carlo, que
sofriam noutros recintos a desídia da loucura pessoal decorrente das
desregradas existências.
Considerados os títulos da benigna senhora, os infelizes
foram, cada um a sua vez, recolhidos dos tormentos em que se debatiam e levados
a esferas de refazimento, pois que enxameiam, também, os pousos de paz e os
redutos de reconforto, onde os trânsfugas se retemperam para o amanhã, lares de
amor e misericórdia onde vigem as concessões da ventura, multiplicados em nome
do Sumo Pai para o exercício da virtude e as experiências do bem, quais escolas
de luz e hospitais de recuperação, em que se amparam todos aqueles que, mesmo
inveterados criminosos, aspiram à redenção, dispostos ao tributo do recomeço na
Terra da sua anterior desventura.
Recebidos em recintos próprios, considerando as diversas
enfermidades de que se faziam portadores, face ao desrespeito das Leis,
passaram a tratamento generoso, através dos tempos, enquanto se lhes refaziam
os centros do perispírito desgovernado e se medicavam as imensas feridas da
alma.
O sacerdócio da cura exige largo período junto ao leito dos
portadores dos profundos males que destroçam os tecidos delicados da estrutura
perispiritual.
Vivendo os pesadelos dos antros em que se encontravam anteriormente,
traduziam a loucura que deles se apossara e que deveria ser dirimida à força de
muita caridade, para que o reinício na Terra, em nova provação, lhes concedesse
o retempero de ânimo, porquanto, se a Justiça da Terra invariavelmente tem a
preocupação de punir, sem nunca retribuir ao amor e à rectidão, por considerar que
tal é dever, a Justiça Divina objectiva corrigir e amparar, estimulando todos
os pródromos da esperança, a fim de que se multiplique e transforme em
sementeira de abundante reconforto e paz.
Só a pouco e pouco Girólamo passou a dormir, recolhido a
longa hibernação, na qual se apagariam as impressões gravadas na mente
desvairada.
O duque, igualmente
hospitalizado, foi tratado pelo carinho de enfermeiros sábios que buscaram
frenar a ardência e a volúpia do ódio sob os pensos do sono refazedor e
calmante.
Assunta, devidamente atendida, começou a experimentar assistência
maternal e amiga, a fim de despertar-lhe os sentimentos superiores da feminilidade,
em promessas redentoras para o futuro.
E Carlo, igualmente socorrido, ele que se permitira penetrar
na trama daqueles destinos, foi medicado nas lesões danosas que o martirizavam,
preparando-se todos, sem o saberem, para novas incursões na carne bendita, onde
expungiriam, pelo imperativo do renascimento, os erros, formando a família da
fraternidade, que é o primeiro passo para a família do amor.
Graças ao sublime concurso do amor, através do paulatino
transcorrer do tempo, aqueles espíritos rebeldes, à semelhança de milhões de outros
tantos, mergulhavam nas dúlcidas águas dos rios do sono, para que fossem diminuídas,
a princípio, e apagadas depois, quanto possível, as impressões muito dolorosas
causadas pelos períodos longos de perversidade a que se entregaram.
Enfermeiros abençoados, que fazem da existência o miraculoso
recurso do auxílio ao próximo, desdobravam-se nas enfermarias em que se
encontravam internados, aplicando-lhes recursos múltiplos de refazimento,
atenuando no perispírito os efeitos das calamidades vividas, especialmente em
Girólamo, de modo a reajustá-lo para o tentame futuro sem violento
comprometimento da matéria de que deveria revestir-se, resgatando, em etapas,
os graves compromissos firmados com a ferocidade e o vandalismo.
Quando lhe permitiam os deveres superiores, a senhora os
visitava, oferecendo-se para atendê-los, aplicando-lhes valiosos fluidos de
refazimento e meditando à cabeceira do esposo profundamente hibernado –
tratamento de grande significação para o estado de desvario a que o mesmo se permitia
entregar.
Naqueles momentos, conquanto a elevação de que era
portadora, não adormecia as lágrimas, e pérolas transparentes rolavam, falando
das suas dores perante os lances de agonia e sombra por onde deveriam recomeçar aqueles
amores.
Acontece que não há céu para quem tem na retaguarda os seres
queridos, perdidos nos dédalos da treva.
O Reino de Venturas seria um lugar deserto, caso ali não
estivessem os anelos do coração, representados por aqueles outros espíritos
amados, a quem todos nos entregamos e em cujo concurso sublime defrontamos a
alegria de lutar e o estímulo constante para crescer.
Dir-se-á que a felicidade é uma conquista pessoal e
intransferível. Todavia, ninguém suporta vencer os múltiplos estágios da
purificação se não colocar o ideal do amor como meta próxima e remota. Próxima,
na representação do ser vinculado ao
sentimento superior e, remota, na dimensão do Cristo, representando o Excelso
Amor.
Face a essa inatingida meta, aquela veneranda mulher, que
alcançara a ventura de ser feliz, descia dos Cimos aos baixios, fazendo
recordar o sol jornaleiro visitando as furnas, para ministrar luz e vida, sem
contaminar-se com a emanação pestilencial do charco que oscula e depura.
Vendo-a em atitude de reflexão profunda, perante o leito
alvinitente do enfermo amado, em que a inconsciência arrancava, de período a
período, estertores patológicos que reflectiam as profundas intoxicações
espirituais absorvidas no largo período de quase um século, graças ao ódio
corrosivo, emanado e absorvido pela fonte mental dele mesmo, não se poderia
negar que a felicidade jamais se expressa em regime de solidão, de
individualismo, de personificação única. É hálito de luz que se transfunde,
enquanto clarifica e liberta das trevas envolventes.
Os enfermos, todavia, não obstante o carinho de que eram
alvo, não conseguiam facilmente anular todo o passado de choques violentos e
conúbios degradantes, a que se fixaram fortemente, com outros seres infelizes
dos recintos donde procediam. Assim, mesmo amparados, recebiam, não poucas
vezes, a visita mental dos antigos comparsas e, nesses momentos, eram dominados
por singulares pesadelos que os atormentavam, fazendo-os reviver, através do
intercâmbio dos pensamentos afins, as antigas torturas das furnas…
/…
* priberam, dicionário: açodar (i). Adenda desta
publicação.
VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO
SEGUNDO, 2. O JULGAMENTO SOB O AÇODAR DA CONSCIÊNCIA (III de III), 39º
fragmento desta obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO
PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt
| 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)