(V)
“As ciências – diz o autor de Força
e Matéria – perseguiram e demonstraram a acção dessas forças no
organismo das plantas e dos animais e, às vezes, até nas combinações mais
subtis. No presente, é geralmente constatado que a Fisiologia, ou seja a
ciência da vida, já não pode prescindir da Física e da Química e que
nenhum processo fisiológico se opera à revelia das forças físico-químicas.”
“A Química – diz a seu turno Miahle – tem,
incontestavelmente, parte na criação, no crescimento, na existência de todos os
seres vivos, seja como causa ou como efeito. As funções da respiração, da
digestão, da assimilação e da secreção não se realizam senão por meio da
Química. Só ela nos pode desvendar os segredos das importantíssimas funções
orgânicas.”
O hidrogénio, o oxigénio, o carbono, o azoto,
declaram-no enfaticamente os materialistas, entram nas mais diversas condições
na combinação dos corpos e se agregam, se separam, actuam obedientes às mesmas
leis que os regem fora desses corpos. Os próprios corpos compostos podem
apresentar os mesmos caracteres. A água, a mais volumosa substância de todos os
seres orgânicos, sem a qual não haveria vida animal nem vegetal, penetra,
amolece, dissolve, adere, cai, segundo as leis da gravidade e, evapora-se,
precipita-se, forma-se dentro, como fora dos organismos. As substâncias
inorgânicas, os sais calcários que a água contém no estado de composição, ela
os deposita nos ossos dos animais ou nos vasos das plantas, onde essas substâncias
afectam a mesma solidez que no domínio inorgânico. O oxigénio da atmosfera,
que, nos pulmões, entra em contacto com o sangue venoso, de cor negra,
comunica-lhe a cor vermelha, que o sangue adquire quando agitado num vaso em
contacto com o ar. O carbono existente no sangue sofre, com esse contacto, os
mesmos efeitos da combustão operada em toda a parte, transformando-se em ácido
carbónico. Pode razoavelmente comparar-se o estômago a uma retorta na qual as
substâncias, postas em contacto, se decompõem, se combinam, etc., segundo as
leis gerais de afinidade química. Um tóxico, entrado no estômago, pode ser
neutralizado pelos mesmos processos exteriormente utilizados. A substância morbífica porventura
lá fixada se neutraliza, se destrói, mediante remédios químicos, como se este
processo se operasse num frasco qualquer, que não no interior de um organismo.
A digestão é um acto de pura química. Longe poderíamos prosseguir no assunto. A
observação – diz Miahle – nos ensina que todas as funções orgânicas se operam
mediante processos químicos e que um ser vivo pode comparar-se a um laboratório
de química, em que se processam os actos da vida no seu conjunto. Menos
evidentes não são os processos mecânicos determinados pelos organismos
vivos. A circulação do sangue realiza-se pelo mais perfeito mecanismo
imaginável. O seu aparelho produtor assemelha-se, perfeitamente, aos
engendrados pelas mãos humanas. O coração tem válvulas e êmbolos, tal
como as máquinas a vapor, cujo funcionamento produz ruídos distintos. Entrando
nos pulmões, o ar fricciona as paredes dos brônquios e engendra o sopro
respiratório. Inspiração e expiração são resultantes de forças puramente físicas. O fluxo
ascensional do sangue, das extremidades inferiores do corpo para o coração,
contrário às leis de gravidade, não pode verificar-se senão por um aparelho
puramente mecânico.
É também por um processo mecânico que o tubo intestinal, graças a um movimento
peristáltico, expele os excrementos de alto a baixo e, ainda, por processo
mecânico se verificam os movimentos musculares de homens e animais.
A estrutura do olho radica nas mesmas leis da
câmara-escura e, as ondulações do som transmitem-se aos ouvidos como a qualquer
outra cavidade. “A Fisiologia tem, pois, absoluta razão – concluem Büchner e
Schaller – propondo-se provar, hoje, que já não existe a essencial diferença
entre o mundo orgânico e o inorgânico.”
Não há diferença entre o orgânico e o inorgânico!
Mas, convenhamos em que não pode haver no mundo uma proposição mais falsa.
As reacções operadas nos corpos vivos estão longe de
se identificar com as que se operam com os mesmos líquidos numa retorta.
As forças organizadoras, como as denomina Bichat,
esquivam-se ao cálculo, actuam de modo irregular e variável. Ao contrário, as
forças físico-químicas obedecem a leis regulares e constantes.
O autor de um aparte recente, intitulado – A
Ciência dos Ateus, evidencia muito bem esta verdade com os seguintes
exemplos: “Injectai nas veias do animal os elementos constitutivos do sangue,
com excepção do que lhe produz a síntese, que não se encontra à vossa
disposição e, em vez de prolongares a vida do animal tê-lo-eis simplesmente
matado. Também o sangue que fique algum tempo fora das veias, se for novamente
injectado pelo orifício que o extravasou, pode ocasionar os mais sérios
distúrbios. Introduzi no estômago do cadáver substâncias alimentares e vereis
que ao contacto dos tecidos elas se putrefarão, elas que, no animal vivo, se
transformariam em sangue para lhe manter a vida. Pergunta-se, então, aos
químicos, como actuam no organismo o ópio, a quinina, a noz-vómica, o enxofre,
o iodeto de potássio, etc. Qual a acção química da nicotina, do ácido prússico,
de todos os venenos vegetais que não deixam vestígios? Como age o curare no tétano?
“Porque a ipeca no estômago
faz se contraiam desde logo os músculos inspiradores, etc.? “Acção de
presença”, dizem os físicos e repetem os químicos,
acreditando, os sisudos doutores, ter cabalmente respondido!”
Atentatório da verdade é a pretensão de explicar pela
Física e pela Química os fenómenos fisiológicos, afirmando a identidade das
reacções intra e extra-orgânicas. A Física e a Química se conjugam,
porque as mesmas leis
presidem à sua fenomenologia; mas um imenso intervalo as separa da ciência
biológica, porque existe enorme diferença entre as suas leis e as leis da vida.
Dizer que a Fisiologia é a física animal é dar uma
definição tão inexacta como se disséssemos que a Astronomia é a física dos
astros. A esse conceito de Bichat o
Dr. Cerise adita:
“os fenómenos vitais são complexos e as forças físicas neles cooperando,
incontestavelmente, mas em proporções difíceis de
medir, os submetem ao império de uma força superior, que os rege em função das
suas finalidades”.
Da mesma opinião os anatomistas Piorry, Malgalgue,
Poggiale, Bouillaud:
“Acima de todas as ciências – diz este – como acima de todas as leis, a vida domina, modifica,
neutraliza, diminui ou aumenta a intensidade das forças físico-químicas”.
O nosso Dumas, químico
eminente, diz algures: “Longe de amesquinhar a importância dos factos, aos
quais obedece a matéria morta, a noção da vida se eleva e ressalta do
conhecimento íntimo dessas leis; e a convicção da sua essência misteriosa e
divina se engrandece à custa de sérios estudos da Química orgânica.”
As operações químicas, susceptíveis de se
realizarem no nosso organismo, não se devem confundir com as inerentes à fisiologia do
nosso ser, eis o que é preciso assentar desde logo. Sob o primeiro
ponto de vista, a identidade das forças que concorrem para formar substâncias
orgânicas e inorgânicas é um facto indubitável, averiguado. Conformando-se às
leis naturais, o químico compõe uma série de combinações também encontradas em
corpos orgânicos e, mais fecundo que a própria Natureza, pode, a seu arbítrio, operar
outras combinações inexistentes nos organismos terrestres, assim transportando,
talvez, a sua ciência ao domínio de outros mundos.
Sabe ele que a fermentação é um processo geral de
intervenção que determina, não apenas os fenómenos da morte e da decomposição,
mas também os do nascimento e de todas as funções vitais, a partir do grão de
trigo que germina e do vinho que ferve, até à
levedura do pão e da cerveja, e aos fenómenos de nutrição e digestão. A Química
orgânica tem as mesmas bases da Química mineral. Ninguém melhor que o Sr. Berthelot expõe
essas conquistas da ciência dos corpos, assim como ninguém lhes traça os
limites perante o problema do nosso ser. Ouçamo-lo portanto:
“Tudo havia concorrido (*) para
que a maioria dos espíritos encarasse como intransponível a barreira entre as
duas químicas. Para explicar a nossa impotência, inferiam uma razão especiosa da
intervenção da força vital, apta, até então, a só compor substâncias orgânicas.
Era, diziam, uma força misteriosa, a determinar exclusivamente os fenómenos
químicos observados nos seres, agindo em virtude de leis essencialmente distintas das que
regulam os movimentos da matéria puramente móvel e a quiescente. Tal a
explicação com que se pretendia justificar a imperfeição da Química orgânica,
declarando-a, por assim dizer, irremediável. Assim proclamando a nossa absoluta
impotência para produzir matérias orgânicas, duas coisas se confundiam: a formação de
substâncias químicas, cujo agregado constitui os seres organizados e, a formação dos próprios órgãos. Este último problema não pertence aos
domínios da Química. Jamais o químico pretenderá fabricar no seu laboratório
uma folha, um fruto, um músculo, um órgão. São estas questões que afectam
a Fisiologia e a esta é que compete discutir-lhes
as premissas, desvendar as leis que regem os seres vivos na
íntegra, pois que à revelia dessa integridade nenhum órgão teria razão de
existir e nem o meio necessário à sua formação.
“Entretanto, o que à Química não é dado fazer no plano
orgânico, pode empreender no fabrico de substâncias contidas nos seres vivos.
“Se a própria estrutura de vegetais e animais
lhe escapa às aplicações, não lhe anula a pretensão de conseguir os princípios
imediatos, isto é, os materiais químicos que constituem os órgãos,
independentemente da estrutura especial das fibras e células que esses
materiais afectam, nos animais e nos vegetais. Esta mesma formação e a
explicação das metamorfoses ponderáveis, que a matéria experimenta nos seres vivos,
constituem campo assaz vasto e belo para
que a síntese química o reivindique inteiramente.”
Esta declaração, na qual os adversários pretendem ver
a vitória definitiva do materialismo, sugere-nos acreditar em dois pontos
fundamentais:
1º - que a formação das substâncias orgânicas pode
ser devida às mesmas leis que regulam o mundo inorgânico e
2º - que a própria formação dos órgãos deriva de uma força estranha aos
domínios da Química.
Quanto ao primeiro ponto, triunfa o espiritualismo, qual
o vimos, uma vez que as forças que regem o mundo inanimado revelam a existência
de um arquitecto inteligente.
E quanto ao segundo, o triunfo é ainda mais brilhante, já que a Química
orgânica capitula diante do ser vital. Tal
como judiciosamente adverte o Sr. Langel, essa
química estuda e compõe, somente, os materiais da vida, sem se preocupar com
o ser vivo em si mesmo. Esboça, por assim dizer, as tintas do
quadro, tornando-se necessário que uma outra mão aplique essas
tintas, e crie a obra em que elas se fundem em perfeita unidade.
Quando a Química deixou
adivinhar no ser humano um alambique no qual o
ácido procura a base, as moléculas se agrupam de acordo com as leis de que
falámos na primeira parte; quando fizeram ver que o animal vivo não passa de um
vaso de reacções e que as forças físicas e químicas nele se entregam
a perpétuo combate em campo fechado; quando mostraram que os fenómenos da
fecundação, da nutrição e da própria morte mais não são que fermentações
ordinárias, já se não sabe mais onde residem essas forças misteriosas que denominamos vida, instinto e consciência,
quando se trata de criaturas humanas. Não tardaremos a entrar no âmago desta
grave questão. Por enquanto, confessamos com o Sr. Langel (**) que
“a Ciência pode arrastar-nos à
dúvida, a negações espantosas, tendo ela mesma os seus mistérios insondáveis às
vistas humanas. Também ela se contenta com palavras, sempre que não pode
penetrar mesmo a essência dos fenómenos. Não nos fala a Química,
constantemente, de afinidade? E não temos aí uma força hipotética, uma entidade tão pouco
tangível quanto a vida, ou quanto a alma?
A Química recambia para a Fisiologia a ideia da alma
e recusa-se a tratar do assunto, mas, perguntamos, a ideia em torno da qual se
desdobra a Química tem algo de mais real? Essa ideia é, muitas vezes,
inapreensível, não só na essência mas como nos efeitos. Pode-se, por exemplo,
meditar um instante nas leis conhecidas como leis de Berthelot, sem
compreender que se está face a um mistério impenetrável? No simples fenómeno de
uma combinação, no arrastamento que precipita, dois átomos que se
procuram e se reúnem, escapando aos compostos que os aprisionavam,
não há o suficiente para nos confundir a inteligência? Quanto
mais estudamos as ciências na sua metafísica, mais nos podemos convencer que
esta nada tem de inconciliável com a mais idealista filosofia: as ciências
analisam as relações, aferem medidas, descobrem as leis que regulam o mundo
fenomenal; mas não há fenómeno algum, por insignificante que seja, que não as coloque
face a duas ideias, sobre as quais o método experimental carece de eficiência,
a saber:
1º - a essência da substância
modificada pelos fenómenos, e
2º - a força que provoca
essas modificações.
Só conhecemos e vemos, por fora, as
aparências; a verdadeira realidade, a realidade substancial, a causa, nos escapa. Digno é de
uma alta filosofia considerar todas as forças particulares,
cujas manifestações são analisadas pelas diversas ciências, como oriundas de
uma força primária, eterna,
necessária, fonte de todo o movimento e centro de
toda a acção. Ao nos colocarmos neste ponto de vista, os fenómenos e os
próprios seres não são mais que formas mutáveis de uma
ideia divina”.
Pode a unidade a que tende a Química fazer-nos pressupor que
o mundo animado e o inanimado sejam regidos por leis idênticas? Deveremos
lisonjear-nos com a ideia de poder um dia, não apenas refazer artificialmente
todas as matérias orgânicas, mas reproduzir “ad libitum” as condições em
que hajam de aflorar a vida vegetal ou animal? Não, certamente. Tais pretensões
seriam ilusórias. Não dispomos da vida. Fisiologia e Química são domínios que
se extremam e se distinguem, como se não distinguiam
há um século a Química orgânica e a mineral.
Em parte alguma, a planta mais rudimentar, o animal
mais ínfimo da escala zoológica, nasceram do concurso das afinidades químicas.
Por maiores progressos que faça a Química orgânica, ela será sempre detida pela
impossibilidade de originar a força vital, de que não dispõe.
Não, senhores, nem que pese à vossa
atitude afirmativa e audaciosa, vós não podeis criar a vida,
nem sabeis, sequer, o que seja a vida e, sois
constrangidos a confessar a vossa ignorância, ao mesmo tempo em que ofereceis
as provas da vossa impotência.
É que em vão replicais com fogos-de-artifício e
suposições gratuitas:
“Para sustentar uma força vital original – dizeis –
invoca-se amiúde a nossa impossibilidade de criar plantas e animais; e não
obstante, se pudéssemos assenhorear a luz, o calor, a pressão atmosférica,
tanto quanto as relações de peso da matéria, não somente ficaríamos aptos a
recompor corpos orgânicos, como capacitados a preencher as condições que engendram o
nascimento desses corpos.”
A seguir, acrescentais, sem perceber que as vossas
próprias palavras reforçam a nossa causa:
“Desde que os elementos ditos carbono, hidrogénio,
oxigénio, azoto, se encontram organizados, as formas fixas daí resultantes têm
o poder de conservar-se no seu estado e, tal como no-lo ensina a experiência
até hoje adquirida, elas persistem através de centenas e milhares de anos. Por
meio de sementes, de brotos e de ovos, essas formas reaparecem numa sucessão
determinada.”
Por outras palavras, duas proposições se
evidenciam: a primeira é que não poderíamos engendrar a vida senão como legado potencial da
Natureza e a segunda é que a vida se mantém, persistente e
transmissível, graças a uma virtude que lhe é própria.
Tal é, verdadeiramente, a questão e, de duas uma: ou
o homem é, ou não é (nem será) capaz de originar a vida.
Neste último caso, as pretensões materialistas estão irremissivelmente condenadas
e, no primeiro, por si mesmas se condenam, da seguinte forma:
Laborando na organização da vida, sois forçados a vos
submeter às leis ordenadas e as aplicar passivamente, sem as contrariar de
qualquer forma. Então, já não seríamos nós a originar a vida e sim as leis
eternas, das quais nos arvoraríamos, por
um instante, em simples mandatários.
Já vos ouço bradar – sofisma! – e declarar que
procuramos escapar pela tangente. Mas... perdão, senhores, notem em primeiro
lugar que se alguém se esquiva num processo, esse alguém só pode ser o acusado
e considerai, depois, que, assim razoando, não ficamos à superfície e
penetramos o âmago da questão. Reflecti por um momento: bem sabeis que neste
mundo nada criamos e apenas aplicamos leis
predominantes.
Criais, porventura, o oxigénio quando, pelo calor,
decompondes o bióxido de manganês e as bolhas afloram no tubo de fuga? Não;
apenas roubais ou – se preferis – pedis ao bióxido de manganês, o terço de
oxigénio nele contido. Criareis o azoto retirando oxigénio do ar atmosférico? O
próprio nome do processo está a indicar que ele consiste numa subtracção.
Criais a água quando, reunindo no eudiómetro o
hidrogénio ao oxigénio, lhe fazeis a síntese? Ou isso não passa de mera
combinação? Com a decomposição do carbonato de cal, pelo ácido clorídrico,
criareis o carbono? E os ácidos oxálico, acético, lático, tartárico, tânico,
quando os extraís dos materiais vegetais ou animais, mediante agentes
oxidantes, acaso os tendes criado?
Não, mil vezes não. Se nos servimos, por vezes, do vocábulo – criar, é
por abuso de linguagem. Ora, ainda mesmo que conseguísseis fazer um
pedaço de carne, nem por isso o teríeis criado e sim, apenas, reunido os elementos
que constituem a carne, segundo as leis inexoráveis, assinadas à organização da
Natureza. E dado que os pósteros possam
ver um dia surgir do fundo de suas retortas um ser vivo, ainda assim, de
antemão lhes dizemos que muito se iludiriam se concluíssem pela inexistência
das leis divinas, pois não haveria de ser à revelia delas que
houvessem de consumar essa obra-prima da indústria humana.
Enfim, dado que os precedentes raciocínios não serem
suficientes para caracterizar a vossa erronia, consentimos, no fim
desta exposição sobre a circulação da matéria, em admitir que a Natureza
emprega, para construir seres vivos, os mesmos processos do
homem, isto é: – trata simplesmente pela química as matérias inorgânicas. Ora,
ainda nesta hipótese, não haveria como negardes a necessidade, para o
construtor, de saber o que pretende fazer, ou de operar com um plano
determinado. Pois uma natureza inteligente, ou o ministro de uma inteligência,
substitui o químico. A obra do génio consiste, precisamente, em fazer derivar
de um pequeno número de princípios, facilmente formuláveis, as mais engenhosas
aplicações, os inventos mais extraordinários.
Esse génio, do qual as mais portentosas
inteligências humanas não representam senão partículas infinitesimais, reduziu
à extrema simplicidade, à maior simplicidade possível, todas as operações da
Natureza. A divina inteligência apresenta-se-nos como a consciência
de uma lei única,
abrangendo o todo universal e, cujas aplicações indefinidas engendram uma
multidão de fenómenos que se aglutinam por analogia, regidos pelas mesmas leis
secundárias, decorrentes da lei primordial. De certo, o químico
ainda não substitui a vida, nem sabe formar o embrião em que o gérmen
representa um papel tão maravilhoso. Nos seus actos, contudo, ele se esforça
por substituir a Natureza. E como? – pela inteligência. Um elemento existe,
absolutamente indispensável: a inteligência.
Soberana, ela se impõe ao raciocínio de quantos
estudam a Natureza. E torna-se visível nessas regras que podem ser previamente
determinadas, calculadas, combinadas, uma vez que guardam entre si um encadeamento admirável
e são imutáveis em condições idênticas, porque receberam
a inflexibilidade da infinita sabedoria.
Está, portanto, demonstrado, à saciedade, que a
circulação da matéria não se efectua senão sob a direcção de uma força inteligente.
Mas, seja qual for o rumo que trilhemos,
no desvio em que nos propusermos acompanhar-vos, voltamos sempre, a despeito de
tudo, à formação da Natureza, à causa causal
de quanto existe e, aqui o campo se torna mais vasto ainda. Os
processos humanos já não embaraçam as vistas. No extremo de todas as avenidas,
chegamos ao ponto capital e trata-se, agora, de examinar mesmo a origem da vida na Terra.
Estarão os seres vivos prisioneiros na
superfície do globo? Teriam aí surgido em seis dias, ao toque da varinha de um
mágico? Despertaram de súbito do seio das florestas, da margem dos rios, nos
vales adormecidos?
Que mão teria conduzido o primeiro homem
do céu aos bosques do Éden? Que mão pudera abrir-se no ar e soltar a chusma canora de lindas
plumagens? Seriam as forças físico-químicas, que, num espasmo fecundo, teriam
dado nascimento aos habitantes de mares e continentes? Nós não
encontramos seres que não tenham nascido de um casal, ou cujo
nascimento não se ligue às leis estabelecidas para a reprodução. Como teriam
surgido na Terra as espécies vegetais
e animais? Eis a questão que actualmente nos interessa. Depois de observarmos a
plateia e os comentários dos espectadores, levantemos o pano que oculta o
verdadeiro cenário e apreciemos a peça. A Natureza é sempre o maquinista invisível.
Tentemos surpreendê-la, na esperança de que não seja suficientemente hábil ao
ponto de se subtrair à nossa perquirição.
/...
(*) Chimie Organique Fondée sur la Synthèse.
(*) Chimie Organique Fondée sur la Synthèse.
(**) Science et Philosophie.
Camille Flammarion, Deus na Natureza, Segunda
Parte – A Vida 1, Circulação da Matéria (5 de 5),
21º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895,
pintura de James
Jebusa Shannon)