Marta e Maria ~
Marta e Maria eram irmãs de Lázaro, a quem Jesus ressuscitara.
Residiam em Betânia (i),
a aldeia onde o Senhor, de vez em quando, se refugiava em busca de descanso.
Ambas eram boas e tementes a Deus; entretanto, havia
entre elas certo traço particular de carácter que as distinguia. O Mestre
excelso apreciou devidamente esse facto, legando-nos, nessa apreciação, um
elevado ensinamento, conforme o que se verifica na seguinte passagem:
"Quando iam de caminho, entrou Jesus em uma aldeia; e uma mulher chamada Marta o hospedou. Esta tinha uma irmã por nome Maria, a qual, sentada aos pés do Senhor, lhe ouvia o ensino. Marta, porém, andava preocupada com muito serviço e absorvida nas contínuas lides domésticas; e, aproximando-se do divino hóspede, lhe disse: Senhor, a ti não se te dá que minha irmã me deixe só a servir? Mas, respondeu-lhe o Senhor: Marta, Marta, estás ansiosa e te ocupas com muitas coisas; entretanto, poucas são necessárias, ou antes uma só; pois Maria escolheu a boa parte que lhe não será tirada."
"Quando iam de caminho, entrou Jesus em uma aldeia; e uma mulher chamada Marta o hospedou. Esta tinha uma irmã por nome Maria, a qual, sentada aos pés do Senhor, lhe ouvia o ensino. Marta, porém, andava preocupada com muito serviço e absorvida nas contínuas lides domésticas; e, aproximando-se do divino hóspede, lhe disse: Senhor, a ti não se te dá que minha irmã me deixe só a servir? Mas, respondeu-lhe o Senhor: Marta, Marta, estás ansiosa e te ocupas com muitas coisas; entretanto, poucas são necessárias, ou antes uma só; pois Maria escolheu a boa parte que lhe não será tirada."
Marta era sensata, laboriosa e ponderada; agia sempre com
método e cálculo, de maneira que em todos os seus actos se podia descobrir o
predomínio de uma razão amadurecida.
Maria tinha um temperamento apaixonado; descuidada, talvez,
daquilo que o mundo classifica de coisas práticas, vivia num ambiente algo
místico e de puro idealismo.
Em Marta, se a razão de todo não predominava, tinha
acentuada influência na sua conduta. Em Maria, o coração quase que reinava
discricionariamente. Marta oferece-nos o tipo da mulher exemplar, impecável,
verdadeira encarnação do bom senso, Maria é um astro que resplende no
além e só de longe pode ser contemplado.
Marta, recebendo Jesus, teria pensado em cercá-lo
do máximo conforto no seu modesto lar. Maria, defrontando o Mestre
amado, esquecia-se de tudo, embalada ao som mágico da palavra da vida. A
existência terrena com os seus cuidados e tribulações, o lar, o mundo mesmo se
fundiam no fogo sagrado do seu ardente entusiasmo. A palavra do Senhor exercia
na sua mente verdadeira fascinação: ela sorvia o divino verbo como a planta
ressequida se embebe do orvalho matutino. Jesus representava para Maria o alfa
e o ómega.
E, afinal, como não ser assim, se foi sob a influência
incoercível daquele Verbo que Maria ressurgiu para a vida imortal? Como não ser
assim, se foi daqueles lábios que Maria ouviu a voz maravilhosa que, lhe
penetrando a consciência e o coração, a transformou radicalmente? Como não ser
assim, se foi ao influxo maravilhoso daquelas mesmas palavras que o lírio de Magdala se
transplantou dos pântanos da terra para os jardins siderais onde vicejam flores
cujo mimo, frescor e perfume permanecem para sempre!
Resumindo, definiremos com acerto as duas irmãs, nas
palavras de Victor Hugo: Marta
está onde termina a terra; Maria, onde começa o céu.
O mundo vê no idealismo de Maria uma espécie de
desequilíbrio; e no idealista, um insano. O critério de Jesus,
contrastando com o dos homens, classifica esse estado de alma como sendo a boa
parte que será sempre mantida. Poucas coisas são necessárias, ou antes
uma só — afirma o Profeta da verdade. Realmente, que justifica, e que espécie
de benefício proporciona ao homem as mil preocupações que o absorvem? Nada
justifica, e nenhum bem lhe outorga; é, antes, a causa das suas
tribulações, desenganos e angústias.
As necessidades reais da vida são poucas, enquanto que as
fictícias, puros caprichos forjados pelas paixões desenfreadas e pelos vícios,
são infinitas. Rigorosamente falando, como estatui o soberano Mestre,
uma só necessidade realmente existe: o conhecimento de nós próprios, de nossa
origem e de nossos destinos. Em tal importa a magna questão da vida;
para no-la revelar, enviou Deus o seu Cristo ao mundo. Desse conhecimento
depende tudo. De nada vale ao homem alcançar largos cabedais
representados na riqueza ou mesmo nos bens intelectuais acumulados pelo estudo,
se ele ignora aquele assunto. Ser pobre ou ser rico, errar ou acertar
em todas as matérias, sabê-las ou não, são coisas de importância relativa: o
que importa é que o homem se inteire em "primeiro lugar do reino de Deus e
de sua justiça, por isso que tudo o mais lhe será dado por acréscimo".
A posse da verdade acima é que valoriza, de facto, tudo
quanto o homem venha a possuir. Sem aquele requisito, as nossas conquistas
serão vãs e estéreis. Uma inteligência de escol, verdadeiro repositório
de erudição, desacompanhados da luz que aclara os horizontes da vida, não
passam de fogo de artifício que entretêm a vista por alguns momentos.
O mesmo progresso que se verifica na vida complicada,
artificial e enervante dos grandes centros, é pura ficção, pois o
verdadeiro progresso é aquele de cujo surto advém tranquilidade, segurança e
bem estar para a sociedade. Exactamente o contrário, no entanto, é o que se
observa: vida febril, excitada, inquieta, áspera, complexa e confusa,
originando indivíduos impacientes, neurasténicos e nevropatas; criando,
de outra sorte, terreno propício à eclosão de todas as formas do vício e de todas
as modalidades do crime.
Será isso progresso ou insânia?
Aprendamos com Maria a escolha da boa parte que não nos será
tirada, isto é, daquela parte que transportaremos connosco além do túmulo.
Sonho? Ilusão? Não importa; há sonhos que se convertem em realidade e há
realidades que se transformam em sonhos e mesmo em pesadelos!
Ecce Homo (*)
Que melhor apresentação nos é dado fazer de Jesus senão
aquela que ele próprio revelou? Consideremos, pois, a sua auto-apresentação:
"João Baptista enviou dois dos seus discípulos ao
Senhor para perguntar: És tu aquele que há de vir, ou havemos de esperar outro?
Quando estes homens chegaram a Jesus, disseram:
João Baptista (i) enviou-nos
para indagar de ti se és o Cristo esperado? Na mesma ocasião Jesus curou a
muitos de moléstias, de flagelos e de espíritos malignos; e deu vista a muitos
cegos. Então lhes respondeu: Ide contar a João o que vistes e ouvistes: os
cegos vêem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os
mortos são ressuscitados, aos pobres anuncia-se-lhes o Evangelho;
bem-aventurado é aquele que em mim não encontrar motivo de tropeço."
Tal é o Cristo: o amigo e defensor dos humildes e dos oprimidos
sofredores. O objecto de sua paixão é o pecador. A individualidade humana
representa para ele um valor infinito. Deus é pai dos pecadores. Quanto mais
abatido e vexado pela dor física ou moral, mais interesse o homem lhe desperta.
Haja vista estes dois exemplos: o leproso e a mulher adúltera.
Os leprosos, no tempo em que Jesus passou pela Terra, eram
corridos a pedradas das cidades e aldeias. A lei de Moisés os condenava à
lapidação (i),
se tentassem penetrar nos povoados. Sobre a crueldade dessa lei que visava a
evitar a propagação da lepra, havia ainda a superstição com carácter religioso,
segundo a qual os leprosos eram réprobos a quem Deus
punia com o terrível mal.
E que fez Jesus com
relação àqueles infelizes? Curou-os. As chagas humanas não lhe causavam asco
nem pavor, mas comiseração e piedade. E não só as mazelas do corpo lhe
inspiravam aqueles sentimentos, como também as da alma. O seu gesto de
compaixão pela mísera adúltera apupada pela horda de fariseus, aliado à sublime
lição contida no "aquele que se julgar isento de culpa atire a primeira
pedra" — é outro atestado eloquente do quanto lhe interessava a sorte dos
pecadores, particularmente dos aflitos e oprimidos.
O Cristianismo é a historio do Cristo junto
do pecador. Na sua maneira de agir está a sua doutrina. Conta Stanley Jones,
missionário que há vinte anos (estamos em 1947) vive na Índia, que naquele
país, quando se fala em Cristianismo, o povo se mostra céptico e completamente
desinteressado. Quando, porém, se faz referência à vida do Cristo no seio da
Humanidade, defendendo os explorados, suavizando as angústias alheias,
ensinando ao povo o meio de viver feliz, então os hindus se tornam atenciosos
e, ávidos de curiosidades, pedem que se fale mais nesse Jesus amorável e bom.
Esse facto é muito significativo. Quer dizer que as lendas
forjadas pelas escolas sectárias em torno do Cristianismo estão comprometendo o
surto daquele credo. Cumpre, portanto, deixar de lado as teorias, o escolasticismo, os
dogmas, os rituais, e anunciar Jesus-Cristo tal como ele é, qual ele próprio se
apresentou aos emissários do Baptista, sarando os enfermos e anunciando aos
humildes o Evangelho do amor. E bem-aventurados aqueles que se não escandalizarem
nesse Jesus que é o real e verdadeiro Cristo de Deus.
Não estamos nos tempos das teorias, mas na era dos factos. O
Cristianismo não é uma teoria: é o mesmo Cristo revelando as leis divinas à
Humanidade. Jesus é
um facto histórico e, ao mesmo tempo, uma necessidade de todos os momentos,
porque ele sintetiza, na moral em si mesmo personificada, a solução de todos os
problemas da vida humana: Ecce Homo!
O método para ensinar a verdade religiosa é o mesmo que se
emprega para ensinar a verdade científica: dedução e indução. Ora temos que
partir dos factos para os seus efeitos, ora destes somos levados a remontar
àqueles. Não se pode mais impor crenças: temos que convidar o povo a raciocinar connosco. A
fé oficializada está nos últimos estertores; não tem prestígio moral, não tem
vigor, jaz de há muito na esterilidade.
O momento reclama uma religião que melhore o mundo. Jesus não é inimigo da
sociedade. Conviveu com os homens, tomando parte nas suas reuniões e
festividades. Ele é adversário do vício, do crime, da corrupção e da maldade.
Se não tivermos desde já o céu em nós mesmos, não poderemos
encontrá-lo depois da morte; Jesus não veio tão pouco livrar-nos desse inferno
localizado não se sabe onde: veio tirar o inferno de dentro de nós. Como?
Ensinando-nos a conhecer e vencer as paixões egoísticas e animalizadas que nos
torturam o espírito e nos aviltam o carácter.
Jesus curava e prevenia as enfermidades. A sua terapêutica
era curativa e profilática. "Vai, e não peques mais." A saúde
do corpo e do espírito é a lei da Natureza, é o normal. As doenças
físicas e morais são as anomalias, o distúrbio na vida. Sarando o leproso,
Jesus não fez milagres: restabeleceu no pecador a ordem natural. As curas
maravilhosas que operou foram todas no sentido de fazer voltar, à Natureza, o
que dela estava divorciado.
O pecado está na vida anormal que o homem leva no mundo,
Jesus veio normalizá-la. A sua fé é um canto de louvor à Natureza.
Outro característico peculiar a Jesus é a sua atitude de
servidor da Humanidade. Não veio para ser servido, mas para servir: todos os
seus actos comprovam esta frase. A sua vida terrena foi toda de dedicação pelo
homem. Viveu para outrem. Viver para outrem, como ele viveu, não é uma
teoria: é um facto que impressiona profundamente os pensadores. Os
seus próprios adversários — Strauss e Renan —, analisando as
suas pegadas, acabaram rendendo-se à evidência do seu altruísmo e do seu poder
de atracção, reconhecendo em tudo que ele fez o fruto do seu imenso amor pela
Humanidade. Ecce Homo!
O eclesiasticismo ou imperialismo na esfera religiosa, está
em franca decadência. O tempo não comporta mais imperialismos em qualquer
terreno. Jesus quer ser o que ele é, e não o que a clerezia pretende à viva
força que ele seja. Jesus se revela por si mesmo àqueles que o procuram. Precisamos
sair do Paganismo, buscando com Jesus a saúde, a pureza, o valor, a bondade, a
alegria de viver e a imortalidade. Ele é o modelo a ser imitado. É o
médico do corpo e da alma. É o pastor deste rebanho. Onde houver lágrimas
a enxugar, chagas e dores a lenir, aí está Jesus no desempenho de sua missão.
Ele é por excelência o servidor da Humanidade. "Vinde a mim todos vós que
vos encontrais aflitos e sobrecarregados e eu vos aliviarei" Ecce Homo!
A frase de Pilatos, que nos serve de epígrafe, tornou-se
célebre.
E a quem se referia o pró-consul romano?
A Jesus açoitado, escarnecido, trazendo aos ombros um manto
de púrpura como usavam os reis, à cabeça uma coroa de espinhos e na destra uma
cana à guisa de ceptro. O Cristo de Deus assim ultrajado e envilecido,
sangrando pela fronte e pelo dorso, coberto de pó, suarento e todo em
desalinho, foi conduzido ao pretório, e dali apresentado, ao poviléu
enfurecido, pelo representante de César na Palestina.
Essa figura trágica, do Filho do Homem, sendo uma realidade
histórica, é também eloquente símbolo.
Vemos através daquela matéria flagelada, daquele corpo
contundido, chagado e lastimoso, refulgir em todo o seu esplendor um Espírito
varonil que se alteia imponente e sublime sobre os troféus da carne abatida e
mortificada!
Jesus vilipendiado é a imagem do soldado que volta de
encarniçada luta, descalço, magro, olhos macilentos, maltrapilho, mas
vitorioso, repassado de glória, sobraçando virentes louros colhidos
através de sua bravura, de seu heroísmo mil vezes comprovado no ardor das
refregas e dos combates cruentos.
Realmente, em síntese, que nos veio ensinar e que nos
exemplificou tão ao vivo o Mestre excelso, senão a luta do espírito com
a matéria, o que vale dizer da vida com a morte?
Ciúmes, invejas, rivalidades e ambição; orgulho, pruridos de
domínio, de ostentação e de grandeza; luxúria, comodismo, ócios intermináveis,
prazeres que só gratificam os sentidos, inclinações que tendem para a
materialidade; vícios que deleitam e embriagam, que fascinam, que desfibram e
amolentam (cortejos dos ministros da morte) devem ser tragados na vitória.
Imitar a Jesus — é servir a Humanidade; conservar a vida é
permanecer no seu ideal; e vencer cada um a si mesmo, à viva força, é penetrar
o reino dos céus, que é o reino do Espírito, o reino da imortalidade.
O Ecce Homo de Pilatos tornou-se frase de renome, cumprindo
assinalar que é ao mesmo tempo profundamente simbólica, pois, na realidade, só
deve ser apresentado como HOMEM aquele que venceu.
"ECCE HOMO"
(VINÍCIUS)
A quem se referia a epígrafe, Pilatos?
A Jesus, a sofrer todos os desacatos,
tendo à cabeça em sangue a coroa de espinhos,
pensado pelo pó que voara dos caminhos,
a espádua chicoteada, a púrpura do manto,
e para completar o escárnio, metro a metro,
pusera-se-lhe à destra humílima de santo
a cana recurvada à guisa então de ceptro.
E vemos-lhe, através do corpo flagelado,
refulgir, nesse dia, o espírito elevado,
no máximo da dor,
no máximo esplendor,
imponente, pairando, na escalada,
sobre os troféus da carne, assim, dilacerada.
Ciúme, inveja, ambição, a sede de extermínio,
o orgulho a ostentação, pruridos de domínio,
os prazeres da vida transitória,
só gratos aos sentidos,
é assim que devem ser vencidos,
e como o fez Jesus, tragados na vitória.
Imitá-lo é dever nosso, ainda que a esmo,
aprender cada um a vencer-se a si mesmo.
O "Ecce Homo" de Pilatos,
além de frase de renome
que nada mais consome,
é um símbolo que os factos
enriqueceu:
pois que só deve ser apresentado,
como HOMEM, quem assim, vilipendiado, torturado,
venceu!
Arnaldo Barbosa
/…
(*) Eis aqui o homem!
"Aos que comigo crêem e sentem as revelações do Céu, comprazendo-se na sua doce e encantadora magia, dedico esta obra."
Pedro de Camargo “Vinícius”
Pedro de Camargo “Vinícius” (i), Em torno do Mestre, Primeira Parte / Seixos e Gravetos; Marta e Maria / Ecce Homo / "ECCE HOMO", 4º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jesus em casa de
Marta e Maria, óleo sobre tela (1654-1655), de Johannes Vermeer)