A consciência palingenésica nos homens | e nos povos
Sem dúvida alguma, é no Oriente que a concepção
palingenésica do ser tem as suas mais profundas raízes. Embora
a sua interpretação seja tristemente estática entre os orientais, a ideia dos
renascimentos é uma realidade espiritual e religiosa. Países como a
Índia e o Japão têm-na como "base moral" do mundo. No Egipto e na
Grécia, a ideia paligenésica do
homem é interpretada como uma sucessão de provas planetárias, o que fornece ao
Ocidente bases para os primeiros vislumbres de um
conceito reexistencialista do Ser.
Na Grécia, a ideia de reencarnação expressou-se através desse luminoso fenómeno poético que são os poemas órficos. Os poetas dessa
escola, sentiam em si mesmos, o imperativo moral das vidas sucessivas, que lhes
surgia inesperadamente dos extractos mais profundos do subconsciente. Filósofos como Sócrates, Platão, Pitágoras, Apolónio de Tiana e, Empédocles apresentaram-se como uma realidade nas suas concepções filosóficas. Em quase toda a filosofia
órfica e druídica está
presente essa ideia do renascimento do Ser que Nietzsche denominou
"eterno retorno".
Platão escreve com toda a clareza a ideia da reencarnação em A Répública, Fedra, Timeu e em Fédon. Em Fedra lê-se: "É certo que os vivos nascem dos
mortos e que as almas dos mortos renascem ainda". Em Fédon: "A
alma é mais velha que o corpo. As almas renascem sem cessar do Hado, para voltar à vida
actual".
Este pensamento socrático-platónico sobre a reencarnação não foi
valorizado ontologicamente nem teologicamente como seria correcto, fazendo com
que caísse como que um véu sobre a mentalidade do Ocidente. A história da
filosofia não penetrou, como era de esperar, na exposição palingenésica de Sócrates, Platão e de Pitágoras. As
chamadas ''reminiscências platónicas'' deveriam ter penetrado fundo no
pensamento filosófico do cristão; ter-se-ia evitado assim, a tragédia agonística e existencial de homens como Pascal, Nietzsche, Kierkegaard, Chestov, Unamuno e, de existêncialistas como Sartre, Camus, Berdiaev e até de alguns tomistas contemporâneos. O
homem como expressão da existência, ou seja, com a lei da reencarnação teria
dado ao pensamento do Ocidente um novo sentir sobre a vida e a história. Um
novo dinamismo moral teria surgido do chamado sentido trágico da
existência. A vida como prova planetária do Ser estaria assente na
sucessão de existências vividas pelo espírito. O homem, como acontece
agora, não seria um Ser espiritual alheio aos variados processos da história;
seria uma potência que do visível e do invisível manejaria conscientemente toda
a realidade histórica.
Isso daria um novo sentido às responsabilidades morais dos actores
intervenientes no drama universal.
A palingenesia expressou-se
no Egipto através dos chamados mistérios de Ísis, onde seres preparados
para isso estavam destinados a revelar os segredos das vidas passadas do homem. Por
isso, toda a ciência egiptológica se viu na necessidade de voltar ao passado em
busca das verdadeiras raízes do Ser e da pessoa humana. Na Grécia, as
vidas sucessivas do homem e dos seres era ensinada nos mistérios de Elêusis, tão
profundos como os de Ísis. Mas, nos segredos eleusinos intervinham os mistérios
de Perséfone, que
simbolizavam a representação existencial dos renascimentos do homem.
Toda a arte grega
está impregnada dessa beleza espiritual cuja origem se encontra na mentalidade palingenésica, que
prevalecia entre os maiores pensadores da antiga Hélade. A
beleza entre os gregos não era apenas uma idealização do Ser, mas uma expressão
divina da vida como função vivente dos actos morais do homem. A
beleza era entre os antigos gregos um estado superior da alma, que se
engrandecia cada vez mais pela prática do Bem e da Verdade.
Mas esta ideia palingenésica do homem
encontrou também o seu clima favorável no império romano. Os
homens mais destacados desse período, como Ovídio, Cícero e Virgílio, sustentaram-na
nas suas obras literárias. Virgílio cantou-a em Eneida, dizendo que a alma ao
fundir-se com a carne perde a noção de si mesma. Embora não se
tenha expandido muito na cultura romana, os seus mais ilustres pensadores
consideraram a ideia palingenésica como uma realidade necessária para explicar
os variados assuntos psicológicos do Ser.
A fortaleza e têmpera dos antigos romanos deveu-se a esse
conhecimento da lei da reencarnação que
possuíam. César, nos seus "Comentários sobre a guerra das
Gálias", fez alusão ao carácter imperturbável que possuíam os druídas frente à morte,
tendo como causa a consciência palingenésica que
haviam atingido. O historiador francês Arbois de
Jubainville assim se expressou: "Nos combates contra os romanos,
os druídas permaneciam imóveis como estátuas, recebendo as feridas sem fugir
nem defender-se. Sabiam que eram imortais e esperavam encontrar noutra parte do
mundo um corpo novo e sempre jovem". Tácito confirmou também
esse carácter palingenésico que se havia desenvolvido.
A ideia palingenésica do Ser e
da História há de reaparecer com a mesma intensidade que possuía nas idades
passadas. O génio poético será um meio para atingir esse fim; os poetas
contemporâneos inspirar-se-ão nesta nova visão do Ser, tal como o génio de Victor Hugo o fez na
sua época.
/…
Humberto
Mariotti, Victor Hugo Espírita, A consciência palingenésica nos
homens e nos povos, 18º fragmento, o último desta obra.
(imagem de contextualização: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)
(imagem de contextualização: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)