O Perigo das Religiões Primitivas
As práticas do Sincretismo Religioso Afro-Brasileiro
correspondem à mentalidade primitiva dos povos selvagens, mentalidade que
Durkheim considerou como pré-lógica, anterior ao desenvolvimento da razão
propriamente lógica, ou seja, não só discriminadora, mas também organizadora e
classificadora da experiência natural do mundo. Essa mentalidade mítica,
idólatra, nascida da experiência empírica não controlada pelos processos racionais,
é determinada por impressões de uma realidade fantástica. É dela que surgem as
visões deformadoras das coisas e dos seres. É dessa mentalidade que surgem as
mitologias grotescas dos deuses indianos de muitos braços e pernas, a magia dos
ritos e cerimónias até hoje residuais nas práticas religiosas da nossa cultura
lógica. A mentalidade teológica e politeísta, que sucede à pré-lógica, é
essencialmente sensorial e impressionista, gerando a concepção fantasiosa de um
mundo de mistérios e superstições que caracterizam as civilizações agrárias e
pastoris. Entre esse mundo e o nosso temos a distância entre a selva e a
civilização, entre a imaginação e a realidade. O Sincretismo superpõe esses
mundos contraditórios, misturando à força mundividências discrepantes e gerando
desequilíbrios perigosos no comportamento do homem civilizado.
A convivência bastarda dessas duas mundividências ou
concepções do mundo no plano sócio-cultural perturba o desenvolvimento da
civilização e deforma o comportamento do homem racional. A razão é esmagada
debaixo das patas do instinto, dando motivo aos surtos de bestialidade que
rompem brutalmente o equilíbrio racional do homem e das colectividades, no
pandemónio do arbítrio, da violência e das eclosões do sexualismo desvairado e
criminoso das multidões místicas e delinquentes de Ortega y Gasset. A recente
tragédia da seita Templo do Povo, de São Francisco da Califórnia, nas selvas da
Guiana Inglesa, com o suicídio colectivo de mais de novecentas pessoas e a
morte de mais de cem crianças, serve de exemplo recente das consequências
desses desajustes. Nas vésperas do natal tivemos a repetição da matança dos
inocentes em Belém de Judá, como advertência à nossa incúria. As tragédias
deste século, incluindo as duas Conflagrações Mundiais, o desencadeamento do
terror nazi-fascista, o domínio dos instintos selvagens nas nações africanas, a
figura tragicómica de Idi Amim no Uganda, os bombardeios atómicos no Japão, a
ameaça da bomba de neutrões, o impacto da pornografia europeia, a devassidão
homossexual nas cúpulas governamentais de países altamente civilizados, como a
Inglaterra, a explosão ridícula das teologias da Morte de Deus (imitando a
Morte de Pan no mundo mitológico), a eclosão arrasadora da toxicomania e assim
por diante, têm a sua origem nos desajustes de uma civilização em conflito com
as suas raízes selvagens.
O Espiritismo surgiu, em meados do século passado, como um
socorro espiritual a essa civilização, firmando o princípio da Razão sobre os
resíduos mágicos do irracionalismo religioso dogmático, para reorientar a
Civilização Cristã, mas o mundo preferiu a volta ao paganismo, na sua mais
deslavada expressão. Nos países em que a mensagem espírita penetrou mais
amplamente, como os latino-americanos, as raízes amargas da barbárie tentaram e
tentam deformá-lo com os tóxicos do misticismo selvagem. A nossa luta tem de se
desenvolver no sentido de mostrar ao povo os perigos dessa infiltração de
bárbaros no Império da Cultura. Todo o espírita que se entrega às fascinações
bastardas das religiões selvagens é um traidor da Civilização Cristã, desde o
seu início atacada sem cessar pelos vândalos inconscientes. Não podemos
combater as práticas sincréticas em si mesmas, pois elas correspondem à
incultura da maioria, apegada ainda à placenta selvagem, mas podemos e temos de
lutar pelo esclarecimento doutrinário, afastando dos terreiros de macumba os
que julgam encontrar ali formas mais eficazes, porque mais fortes, de manifestações mediúnicas, como se o poder do
espírito dependesse dos precários poderes da matéria. As criaturas arrastadas
pela fascinação das práticas selvagens revelam a sua sintonia com o passado
bárbaro e a sua incapacidade para ajustar-se à Civilização. Mas essa
incapacidade é motivada pela incultura geral, pois todas as criaturas
encarnadas nesta fase de transição evolutiva do planeta têm condições para
superar a barbárie e integrar-se no meio civilizado. Todo o esforço deve ser
feito pelos espíritas para manterem a integridade da Doutrina Espírita nesta
fase crucial da nossa evolução. Estamos na hora da escolha: ou ficaremos no
passado, apegados ao materialismo dos rituais, dos mitos e da voracidade
carnal, ou buscaremos o espírito e o seu poder na espiritualidade pura que o
Espiritismo nos oferece. Procuremos compreender claramente esse problema. Temos
um exemplo histórico, na nossa própria história, da impossibilidade de mistura
de graus evolutivos diferentes. Todo o esforço de catequese cristã dos jesuítas
no nosso país fracassou por completo, ante o desnível cultural existente entre
os padres, de um lado, e os indígenas e negros do outro lado. O livro do Padre Nóbrega, A Catequese do Gentio,
constitui uma confissão dolorosa do fracasso dessa catequese. Nem mesmo os
esforços de Anchieta, com as suas peças teatrais e a sua dedicação aos índios
conseguiu superar as dificuldades do desnível cultural. Ele mesmo admitiu, com
Nóbrega, que só a força e a violência poderiam sujeitar o gentio ao Cristo, o
que negava a própria essência do Cristianismo.
Nos grupos sociais, que englobam clãs e famílias, as
heranças individuais, as tradições, aspirações e instintos, bem como as
características raciais em mistura formam o ser colectivo da visão spenceriana,
com o seu psiquismo e mentalidade colectivos. Essas pequenas estruturas
fundem-se no ser maior e mais complexo das sociedades, que a lei de inércia
consolida. A dinâmica interna dessas estruturas gera o clima mental e emocional
de um novo processo cultural, de uma nova cultura. As tendências gregárias
reforçam o instinto de conservação e toda a interferência discrepante gera reacções
de defesa do status quo. Numa
civilização que já atingiu a sua maturidade possível e luta para superar-se, o
repúdio ao retrocesso histórico-cultural torna-se uma constante irredutível, na
busca da transcendência. Indivíduos e grupos que se oponham a essa tendência
formam quistos negativos que resistem às forças evolutivas e desencadeiam
atritos e conflitos. O isolamento desses quistos em si mesmos não os torna
marginais mas transforma-os em focos de oposição interna. Esses focos tendem a
negar as conquistas evolutivas da estrutura geral e levam a situações conflitivas
e a explosões de desespero. Palmares, Canudos, entre nós, a minoria basca na
Espanha, o IRA na Irlanda são exemplos desse processo. No desenvolvimento da
Civilização Cristã temos o massacre impiedoso pela piedade cristã das seitas
divergentes da estrutura geral. No processo actual do desenvolvimento da cultura
espírita, que retoma os valores cristãos na sua originalidade, as forças
discrepantes recorrem ao lastro do passado e reactivam o fermento velho de que
trata o Evangelho, na reactivação dos processos mágicos das religiões
primitivas, do paganismo mítico formalista, idólatra e supersticioso. Para
superarmos essa fase perigosa temos de superar primeiro a nossa própria
ignorância dessa realidade ameaçadora, firmando-nos nos princípios espíritas de
rejeição ao mito, ao falso fazer da magia com os seus rituais e cerimoniais
emotivos. Só a razão kardeciana, em que a verdade se comprova na investigação
fenoménica, pode nos dar os elementos eficazes da libertação espiritual. Não se
trata de apelo à Providência Divina, mas de tomada de consciência do momento em
que vivemos. Todos os recursos igrejeiros a que se apegam os mestres
improvisados de nada valem nesta fase em que só a consciência lúcida pode
libertar o espírito do visco da matéria,
segundo a imagem de Kardec, e do acúmulo milenar de superstições místicas e mágicas.
Dizia o Apóstolo Paulo aos seus discípulos que, em pequenos,
eles se alimentavam de líquidos, mas, ao crescer, necessitavam de alimentos
sólidos. A recomendação aplica-se aos espíritas actuais, que não querem largar
o "mingau" da infância pelo "tutu" de feijão. O Espiritismo tem por
finalidade libertar o espírito humano do visco da matéria, para que ele possa alçar o voo da transcendência. A Religião
Espírita não comporta lamúrias e ladainhas, nem exige dos adeptos atitudes
formais, voz modulada, gestos artificiais e estudados, olhares lânguidos e
lágrimas ou carpideiras em velórios e funerais. As dores e angústias do mundo
não são castigos do céu, mas provas necessárias ao desenvolvimento das
potencialidades do espírito. Viver é lutar, como no verso de Gonçalves Dias. A
luta da vida não se destina a angelizar as criaturas, mas a virilizar o
espírito, predispondo-o para voos de águia e não para o esvoaçar das borboletas.
A Angelitude, que é o quarto reino da natureza, nada tem a ver com anjinhos de
procissão com asas de papel de seda. Da Humanidade temos de evoluir para a
Angelitude, que é o plano imediatamente superior ao plano terreno, povoado de
espíritos elevados em saber e moral, responsáveis por si mesmos e pelo
desenvolvimento espiritual dos homens. O anjo espírita não tem asas. Não voa
como um pássaro, pois levita no seu corpo espiritual. Os Anjos não constituem
uma criação à parte na Natureza, onde tudo se encadeia. Os Anjos são homens que
se tornaram mais fortes e viris, capazes de enfrentar as mais pesadas e
difíceis tarefas da vida superior. Ninguém pense que chegará com rezas e
humildade fingida ao plano dos Anjos. A virilidade angélica é de dignidade,
coragem, moralidade e permanente disposição para o trabalho. A graça, como
explicou Kardec, não é um privilégio concedido gratuitamente a alguém, em detrimento
de outros. A graça, segundo Kardec, é a força que Deus concede ao homem de
boa-vontade para vencer as suas imperfeições. Lutar e vencer são as duas
espadas simbólicas das vitórias do espírito. O Espiritismo é o Consolador
prometido por Jesus, mas o consolo espírita não é cantiga de embalar e sim
conhecimento da razão e das finalidades da vida. Só o conhecimento real, o
encontro com a verdade pode dar ao espírito a consolação necessária.
Na concepção espírita da vida a morte não é morte, é apenas
passagem de um plano da vida para outro. A morte é a páscoa do espírito, que
nela e através dela conquista a ressurreição. A palavra páscoa vem do hebraico. A Páscoa dos judeus foi a travessia do mar
Vermelho, que os livrara da morte no Egipto. Jesus ressuscitou, como todos
ressuscitamos, e a sua ressurreição transformou a páscoa judaica em páscoa
cristã, mudando o sentido material da palavra em sentido espiritual. Não há
morte para os espíritas, pois Deus não é deus de mortos, mas de vivos. Os que
temem a morte não sabem que ela, como afirmou Richet, é a porta da vida.
A palavra eternidade
foi substituída nos nossos dias pela palavra duração. Quem diz eternidade
exprime um conceito estático, lembrando a pasmaceira de um céu de asilo para
inválidos. Quem diz duração exprime
um conceito dinâmico e vital. O tempo, como Galileu o definiu, pela mediunidade
de Flammarion, é a sucessão das coisas no Infinito. Tudo é vida e movimento em
todo o Universo. Tudo é luta e trabalho, construção incessante. Kardec lembrou
que, se somos seres humanos, de natureza espiritual, temos também o ser do
corpo, que mesmo na metamorfose da morte é vida e movimento. A concepção
estática das coisas é uma ilusão sensorial. A Física actual abandonou a
concepção material do Universo. Vivemos em espírito e pelo espírito, desde a
pedra até ao anjo.
Ante essa abertura do mundo, que o Espiritismo nos
apresentou muito antes da evolução da Física, o espírita é obrigado a sair da
sacristia e fugir dos velórios para proclamar a continuidade da vida em todas
as dimensões da realidade cósmica. Seria estranho e inexplicável se os
espíritas, possuindo essa visão nova do mundo e da vida, resolvessem voltar aos
terreiros de macumba. As religiões primitivas são formas superadas de interpretação
do mundo. Serviram no seu tempo, conviviam com os bichos e não com as ideias. A
religião verdadeira, segundo Pestalozzi, mestre de Kardec, é a Moralidade; não
a moral social de regras e normas, mas a Moralidade, como processo de elevação
espiritual do homem. Para evitar o religiosismo comum e banal, Kardec explicou
que a Ciência e a Filosofia espíritas tinham consequências morais. Só no final de sua missão declarou que o
Espiritismo é a Religião em Espírito e Verdade, anunciada pelo Cristo. Essa
Religião Verdadeira não está nos templos, nas Igrejas, mas no coração do homem,
na forma de uma lei fundamental da natureza humana – a Lei de Adoração –, que
leva o homem a adorar a Deus no recesso de si mesmo, sem alardes nem fantasias.
Se não pudermos compreender essa rotação de noventa graus no pensamento humano,
o recurso é mergulharmos na leitura e estudo sistemático das obras de Kardec,
meditando a sério sobre os seus ensinos. A razão kardeciana não tem a frieza do
racionalismo científico, porque o Espiritismo é a síntese de todas as
potencialidades ônticas do homem; Razão e Fé, intuição e pesquisa globalizante
da doutrina.
A razão é considerada como um processo linear de captação da
realidade sensível. Ela fragmenta e esmiúça a estrutura das coisas e dos seres,
trocando em miúdos a sua inteireza global. As Ciências apegaram-se a esse
processo de percepção quantitativa, considerando-o meio seguro para a obtenção
da certeza. Com essa ambição de medidas exactas perderam a visão de conjunto.
Era natural que assim acontecesse, em virtude da nossa confiança ingénua na
percepção sensorial. Mas o reconhecimento da intuição como forma de percepção e
captação imediatas da realidade, gerando o flash
do insight, o processo racional da
razão mostrou-se deficiente. No campo da percepção da forma na sua inteireza,
descoberto pela Psicologia da Gestalt, verificou-se que a captação das
estruturas globais nos oferece a totalidade do objecto, com os seus elementos
de pregnância interna e de integração externa na realidade total. A nossa
mundividência científica deu um salto da fragmentação para a globalização. A
realidade misteriosa da forma (Gestalt em alemão) produziu a revolução
copérnica da Psicologia da Percepção. Mas essa revolução já tinha os seus precedentes
na pesquisa espírita da natureza humana, por Kardec, no plano da fenomenologia
paranormal. Dessa maneira, as divergências entre as chamadas ciências da
matéria e a ciência espírita derivavam do avanço da desprezada e malsinada
ciência espírita sobre a arrogante e intransigente ciência oficial e académica.
Hoje a Física atómica e nuclear está fazendo justiça a Kardec nas suas
descobertas mais recentes. A visão gestáltica de toda a realidade como interacção
constante de espírito e matéria, cabendo ao espírito a função essencial de
aglutinação e estruturação da matéria em elementos formais, revela a
necessidade de conjugação dos dois campos científicos.
Foi o que Rhine ressaltou na sua observação sobre as duas
antropologias em que se dividiu a nossa concepção do homem, o que vale dizer da
nossa self-conception. De um lado o
conceito material do homem como animal e de outro o conceito
psíquico-espiritual. A Parapsicologia e a Medicina Psicossomática eliminam actualmente
essa dualidade, graças ao desenvolvimento nas ciências de uma mentalidade
gestáltica. O Espiritismo resgata os seus direitos na cultura do século.
/…
José Herculano Pires, Ciência Espírita e as suas implicações terapêuticas, O Perigo das Religiões Primitivas, 19º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O peregrino sobre o mar
de névoa, pintura de Caspar David
Friedrich)