Capítulo V
A Auvergne. Vercingétorix, Gergovie e Alésia (III)
A Auvergne. Vercingétorix, Gergovie e Alésia (III)
É no ano de 53 a.C. que, dolorosamente influenciado pela
situação da Gália, Vercingétorix toma a resolução de se consagrar à salvação de
sua nação. César tinha derrotado separadamente os éburons, os trévires, os
sénones, depois retornou para a Itália, deixando suas dez legiões dispersas no
norte e no leste. Aproveitando as circunstâncias, Vercingétorix, em pleno
inverno, percorreu as tribos preparando uma sublevação geral e, por sua eloquência
máscula, reanimou os ardores patrióticos e levantou as coragens abatidas.
Uma assembleia solene, de todos os chefes gauleses, teve
lugar na floresta sagrada dos carnutos. Ali, sob as bandeiras das tribos, reunidas
em aglomerados, os chefes fizeram o juramento de se unirem contra os romanos e
proclamaram Vercingétorix como chefe supremo. Eles sonhavam com uma pátria colectiva,
com uma grande Gália livre e federada, realização dessa fraternidade céltica,
concebida pelos druidas. Vercingétorix tentou introduzir mais ordem e método na
organização militar e nos movimentos da armada gaulesa. Ele mostrou tanta
habilidade e precisão que provocou este elogio pouco comum de seu inimigo: “Ele
foi tanto activo quanto severo no seu comando.” *
Pode-se perguntar onde o grande chefe arverno, ainda jovem,
tinha obtido suas aptidões e seu conhecimento. Parece que a função que se deve
atribuir ao mundo invisível na história começa a sair do domínio exclusivo das
religiões para penetrar pouco a pouco na ciência. Esta função o Sr. Camille Jullian a reconhece, ou melhor, a discerne na vida de seu herói, e a relaciona
a outros exemplos célebres; os de Sartório e de Mário, que tiveram suas
profetisas, como Civilis teve Velléda. “Vercingétorix disse que teve ao seu
redor agentes que o colocavam em relação com o céu.” **
Mas o terrível procônsul, ao ser informado da sublevação da
Gália, deixou rapidamente Ravenna e, após uma viagem rápida, realizou um acto
tido como irrealizável em pleno inverno. Ele atravessou as Cévennes por veredas
abruptas, com 30
centímetros de neve, e investiu com sua pequena armada
sobre o país arverno, obrigando, assim, Vercingétorix a dirigir suas forças
para o sul e a libertar as legiões cercadas. Após esse desvio estratégico,
César desceu pelo vale do Loire e juntou, às pressas, a parte principal das
legiões a fim de ser capaz de enfrentar os acontecimentos.
Não é surpreendente achar, a dezoito séculos de distância,
factos análogos nessa outra existência do mesmo homem de génio que foi
sucessivamente Júlio César e Napoleão Bonaparte? A passagem de Cévennes não
teria por complemento aquela do Grand Saint Bernard, e o 18 brumário *** não
lembra a passagem do Rubicão?
Alguns meses depois, o cerco de Bourges pelos romanos,
heroicamente sustentado pelos seus habitantes, mostrou toda a utilidade das
reformas de Vercingétorix.
Para devastar a área da armada romana, os bitúriges põem
fogo, por sua ordem, em vinte de suas vilas. César sobe de novo até a Auvergne
com suas legiões e ataca a Gergovie, foco da independência gaulesa; ele é
repelido, forçado a deixar seu campo e a bater em retirada durante a noite.
O general romano, que não tinha cavalaria, não hesitou em
mandar vir de além do Reno, para alistar, bandos de cavaleiros germânicos
semi-selvagens. E é assim que, após ter proclamado muitas vezes, altissonante,
que ele não vinha à Gália a não ser para defendê-la contra os germanos, foi ele
mesmo que abriu o caminho às invasões. Na batalha de Dijon, os pesados
esquadrões germânicos romperam a cavalaria gaulesa e Vercingétorix, reduzido à
sua única infantaria, teve que se refugiar na Alésia.
Finalmente, vem o cerco memorável dessa vila pelos romanos,
os trabalhos gigantescos das legiões para sitiar o lugar e a chegada da armada
de socorro, isto é, quase toda a Gália em armas. Esta armada foi lenta para se
reunir, os chefes se ajuntaram, de início, em Bibracte, formando um conselho
geral, para discutir os planos de Vercingétorix. Se havia entre eles homens
devotados, sem excepção, à liberdade da Gália, havia, também os ambiciosos de
duas caras, como os dois jovens eduenos Viridomar e Eporédorix, ambos decididos
a favorecer, em segredo, os desígnios de César.
Numa luta horrorosa de três dias, o impulso furioso dos
arvernos desbarata as linhas romanas, mas a traição dos eduenos aniquila seus
esforços e a armada gaulesa se dispersa, abandonando os defensores de Alésia à
sua própria sorte.
Vercingétorix, vencido, poderia fugir, mas preferiu se
oferecer como vítima expiatória a fim de poupar a vida de seus companheiros de
armas. César, estando assentado num tribunal, no meio de seus oficiais, vê as
portas da Alésia se abrirem. Um cavaleiro de alta estatura, coberto de uma
magnífica armadura, aparece a galope, descreve três círculos com seu cavalo ao
redor do tribunal e, com ar altivo e grave, joga sua espada aos pés do
procônsul. Era o chefe arverno que se entregava ao seu inimigo. Os romanos,
impressionados, se afastaram com respeito, mas César, mostrando a baixeza de
seu carácter, prostra-o com injúrias, acorrenta-o, manda-o para Roma e o joga
na prisão mamertina, calabouço escuro, com uma única entrada, pela abóbada.
Após seis anos de prisão horrenda, ele foi retirado para figurar como triunfo
de César, e daí foi entregue ao carrasco (46 a.C.).
Um dia, no correr dos tempos, esses dois homens se
reencontraram servindo à mesma causa, sob o mesmo estandarte. César se chamou,
então, Napoleão Bonaparte e Vercingétorix tornou-se o general Desaix. Em
Marengo, quando a batalha parecia perdida para os franceses, Desaix chegou na
hora exacta, com a sua divisão, para salvar seu antigo inimigo, e esta foi toda
a sua vingança!
Edouard Schuré escreveu a respeito de Desaix, **** após ter
lembrado seus grandes feitos:
“Ele foi a modéstia na força, a energia na abnegação.
Procurava sempre o segundo lugar, e aí se conduzia como se fosse o primeiro.
Batido mortalmente em Marengo, nesta grande batalha que ganhou para o primeiro
cônsul, e temendo que sua morte desencorajasse os seus, disse simplesmente
àqueles que o dominavam: “Não lhes digam nada.”
Nesses detalhes históricos, não se encontra uma confirmação
daquilo que nos têm dito nossos instrutores do espaço sobre a identidade desses
dois personagens, Vercingétorix e Desaix, animados pelo mesmo espírito no
correr dos séculos? Foi assim com César e Napoleão e com muitos outros casos
semelhantes.
Se o olhar do homem pudesse sondar o passado e reconstituir
o elo que une suas vidas sucessivas, muitas surpresas lhe seriam reservadas,
porém más lembranças e angústias também viriam se misturar às dificuldades da
vida presente e agravá-las! Eis por que o esquecimento lhe é dado durante a
passagem do vau, isto é, durante a estada terrestre. Mas no desprendimento
corporal, nas horas de sono e, sobretudo, após a morte, o espírito evoluído
retoma o encadeamento de suas existências passadas, e na lei das causas e
efeitos, em vez de vidas isoladas, incoerentes, sem precedentes e sem sequência,
ele contempla o conjunto lógico e harmonioso de seu destino.
Do mesmo modo que visitei a pé, com um sentimento de
respeito, o santuário céltico da Bretagne, creio dever fazer a peregrinação da
Gergovie e da Alésia. Eu escalei as escarpas da Acrópole arverna e mais tarde
subi a inclinação suave que, da estação de Laumes, leva à Alise. Uma neblina
fria e penetrante envolvia a planície, enquanto no horizonte o disco
avermelhado do Sol parecia se esforçar para furar a cerração.
Percorrendo as ruas da vila, percebi, com surpresa, uma
estátua equestre com esta inscrição: “À Jeanne d’Arc, la Bourgogne”. Este é,
então, um monumento expiatório? Prosseguindo minha ascensão, atingi o planalto
onde se ergue a estátua gigantesca do grande antepassado. Ali, solitário,
pensei por muito tempo, meditei tristemente em tudo que é preciso – lutas,
sangue e lágrimas – para assegurar a evolução humana.
A figura grandiosa e nobre de Vercingétorix se liberta da
sombra dos tempos como um exemplo sublime de sacrifício e de abnegação. Ele
acreditava na pátria gaulesa, no seu futuro, na sua grandeza, e por essa pátria
lutou, sofreu e morreu. Ele foi lembrado, na hora suprema, do juramento
pronunciado em frente ao céu, no promontório bretão, no seio das vagas
furiosas.
Ao se oferecer em holocausto para salvar seus companheiros
de armas, ele se inspirou também naquilo que lhe tinham ensinado os druidas: é
pelo esquecimento de si mesmo, por imolação do “eu” em proveito dos outros, que
se alcança o “Gwynfyd”.
Para lembrança desses heróis, Gergovie e Alésia tornaram-se,
para sempre, os lugares sagrados onde a alma céltica adora se recolher para
meditar e orar.
/…
* Comentários da
Guerra Gálica, César.
** Obra citada, p. 133.
*** Brumário –
Segundo mês do calendário republicano francês. (N.T.)
**** Ver Les Grandes
Légendes de France, p. 65
LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível,
Primeira Parte OS PAÍSES CÉLTICOS, CAPÍTULO V – A
Auvergne. Vercingétorix, Gergovie e Alésia 3 de 3, 18º fragmento da obra.
(imagem: A Apoteose dos heróis franceses que
morreram por seu país durante a guerra da Liberdade, pintura de Anne-Louis
Girodet-Trioson)