~ Plano da Natureza ~ Construção dos Seres Vivos ~
Certa altura, ao deixar uma aldeia à tardinha, vi uma
dezena de meninas que corriam e brincavam debaixo da copa frondosa de velhas
tílias. Qual bando tagarela de aves inquietas, corriam e gargalhavam debaixo
daquelas frondes seculares,
que, indubitavelmente, viram por ali passar sucessivas gerações infantis. Que
pensariam a respeito, aquelas árvores imóveis? Quantos sóis teriam visto
passar-lhes por sobre as copas verdes? Sonhariam, por acaso, com os
esplendores da prístina vegetação que tão gloriosamente vestiu a
Terra nos seus dias primaveris? Teriam elas uma vaga consciência da importância
do reino vegetal e da grandeza do seu papel no sistema geral da vida terrena?
Talvez... Mas, seguramente, o que não suspeitariam era da opinião que a seu
respeito me manifestara uma daquelas lindas crianças, quando, metendo-me no seu
brinquedo, lhe perguntei para que serviam aquelas grandes tílias...
– Para brincar à cabra-cega quando a tarde está bonita – respondeu
naquele timbre de franqueza que revela as convicções profundas.
E logo depois, como a completar o seu pensamento de filha amorosa: –
elas servem, também, para a mamã fazer chá. – E disse-o, oferecendo-me um
raminho branco e cheiroso, que caíra de um galho...
Uma noite, em Paris, um tal M. C., a quem falávamos da imensidão do céu
e da infinidade dos Mundos, entre os quais a Terra vale por átomo
insignificante, respondeu-nos ele com uma ingenuidade menos perdoável que a
anterior, visto provir de um adulto:
– Pregais ideias desastrosas, quando dizeis que a Terra não é
privilegiada, nem pode ser superior aos astros; pois a verdade é que ela
forneceu o corpo divino de Jesus-Cristo e o da Santa Virgem, e só isso bastaria
para graduá-la acima de todos os astros, autorizando-nos a afirmar que todos os
astros foram feitos para ela (ii).
Simultaneamente, outra boa criatura, que é o Sr. Le Prieur,
possuído das melhores intenções, presumia que as marés eram dadas ao oceano a
fim de facilitar a entrada dos navios nos portos (iii).
A isto, aditava Voltaire, que também não havia razão para duvidar fossem as
pernas criadas para enfiar as botas e o nariz para sustentar os óculos; pois –
discorria ainda (iv) –, para nos podermos certificar das
verdadeiras causas, não há como desatender à continuidade dos seus efeitos, em
todos os tempos e lugares. Igualmente inútil fora agradecer a Deus o ter feito
passar os grandes rios pelas grandes cidades e encalhar os navios nas regiões
polares, para assim fornecer aos Groelandeses a lenha com que se
aquecessem. Sente-se quão ridículo fora presumir que a Natureza
houvesse, de todos os tempos, trabalhado para ajustar-se às nossas invenções
artísticas e arbitrárias, mas se evidentemente os narizes não foram
feitos para os óculos, foram-no para o olfacto e isso desde que há homens.
Assim, também, não tendo sido as mãos engendradas para gáudio dos
luveiros, destinam-se, evidentemente a todos os usos que o metacarpo, as
falanges digitais e os movimentos musculares do punho nos facultam.
Teólogos há que aplicam a causalidade finalista para justificar a
existência de animais nocivos, qual o fazem com as enfermidades e misérias
humanas, tudo carregando em conta do pecado original.
No parecer de Meyer e Stilling, os répteis e os insectos daninhos e
venenosos são fruto da maldição que inquina a Terra com os terrícolas.
As formas não raro monstruosas de tais seres devem representar a figura do
pecado e da perfeição.
O autor das Cartas a Sofia, O Sr. Aimé
Martin, nos sugere a crença de que prevendo o Eterno que o homem não
poderia habitar a zona tórrida, nela formou as mais altas montanhas, para aí
lhe proporcionar um clima agradável. Mais adiante acrescentava que “se a chuva
escasseava nas regiões arenosas, era porque aí se tornaria inútil”.
Na baixa Normandia é usual despejar-se o cálice do conhaque no café, e
eu muitas vezes tive oportunidade de conjecturar que, se ao bom Deus
agradou fosse a aguardente mais leve que o café, não seria senão para que
ele pudesse arder à tona e desse, assim, mais um aroma à excelente fusão
colonial. Há ainda um número infinito de factos não menos importantes,
que nos fazem amar as causas finais. Talvez devamos advertir que nem
todos se podem atribuir a Deus, e alguns antes parecem artes do diabo, como,
por exemplo, o de que nos falava um epicurista amigo,
isto é – a condensação nas vidraças, da evaporação nocturna, a formar uma
discreta cortina de certas carruagens fechadas.
Segundo Bernardin de Saint-Pierre, os vulcões, localizados sempre
perto dos mares, destinam-se a consumir as matérias corrompidas que carreiam e
que poderiam infeccionar a atmosfera. As tempestades têm a virtude de refrescar
a mesma atmosfera, etc. Pensava ele, também, que as pulgas nasciam pretas para
que as pudéssemos distinguir na brancura de nossa pele e então puni-las. A
plumagem retinta dos corvos, na opinião do Sr. Martin, é para que as perdizes e
as lebres, de que se alimentam no Inverno, possam percebê-los, de longe, sobre
a neve. O eloquente autor do Génio do Cristianismo diz que se vendo, qual
pequena flama azulada, fugir a serpente ondulante, facilmente nos convencemos
de que foi ela quem seduziu a primeira mulher. O autor das Cartas pré-citadas
também afirma que os insectos venenosos são feitos para que o homem desconfie
deles.
É claro que o ideal religioso e a doutrina da Providência nem sempre
foram bem servidos pelos seus prosélitos. Quando se apoiam tais
sentimentos em motivos assim pueris, e frívolos, corre-se o risco de
comprometer a causa perante os semi-sábios, o que vale dizer, a maioria dos
espíritos. Tentativas que tais, não logram senão caricaturar o Ser supremo. A
propósito de uns tantos filósofos do seu tempo, dizia Duclos:
“Essa gente acabará levando-me à missa.” Hoje, diante da opinião de uns tantos
devotos, também chegamos a imaginar que esta gente acabará fazendo-nos duvidar
da Providência.
São ideias que pecam, não apenas por falsidade, mas pelo
imperdoável estigma do ridículo. Assemelham-se àqueles camponeses
de que nos fala Riehl (v), incapazes de ver no mundo outras
belezas além das roupas domingueiras das alentadas conterrâneas, que também
vestem as imagens em certos dias festivos.
O próprio Fénelon não
se furta à censura. Assim é que nos representa o Sol como regulando
expressamente o trabalho e o repouso, as necessidades e os prazeres. Graças ao
seu movimento diurno e anual, um único sol basta para toda a Terra. Se fosse
maior, à mesma distância, abrasaria, pulverizaria o mundo; se menor, a Terra
congelaria, tornar-se-ia inabitável. Se, do mesmo tamanho, estivesse mais
afastado, deixaríamos de viver, à mingua de calor. Que compasso, pois,
abrangendo no seu círculo o céu e a Terra, teria assinalado medidas tão
exactas? De facto, ele não beneficia menos as regiões das quais se
afasta, do que o faz àquelas de que se aproxima por favorecê-las com os seus
raios... Destarte, a Natureza adornada de diversas maneiras oferece
simultaneamente tão variados espectáculos que não dá tempo ao homem para
desgostar-se do que possui. Mas, entre os astros diviso a Lua, que parece
compartilhar com o Sol o cuidado de nos aclarar. Ei-la que surge, então, com o
seu cortejo estelar, no momento exacto em que o Sol vai irradiar noutro
hemisfério.”
Lícito é, certamente, pôr em dúvida o valor absoluto deste raciocínio,
pois a partilha uniforme dos dias e das noites só se verifica no equador, para
diminuir progressivamente e desaparecer nos pólos, com todas as suas virtudes e
benefícios. Se lá, nos pólos, algum dia escreverem para glorificar a
Providência, hão de ver que lhe renderão graças pelos dias e noites semestrais.
Em Mercúrio, ou em Neptuno, hão de concluir que o Sol também está à
distância conveniente à eclosão da vida ambiente. Em Júpiter, louvarão o
Criador por lhes ter concedido quatro luas, tanto quanto em Saturno agradecerão
a dádiva de um anel, que reúne o útil ao agradável, etc.
Diante de tais argumentos não há que admirar tenha a causalidade
final caído no mais absoluto descrédito. Eis aí, contudo – dizia J. B.
Biot (vi) – a que extremos levaram a mania, hoje tão
comum, de explicar o como e o porquê de todas as coisas naturais, conforme o
imperfeito e vago sentimento utilitário que delas possamos ter. Cada qual,
assim, regula a previdência da Natureza ao nível das suas luzes, tornando-a
mais ou menos louca, na pauta da própria ignorância. Isso nada representaria,
uma vez que tais sonhos fossem inculcados pelo seu justo valor e não
pretendessem insinuá-los como verdades, como artigos de fé, ao ponto de
considerarem os seus autores uma impiedade, quando os tachamos de absurdos.
“É preciso – opina Montaigne –
julgar com muita moderação as coisas divinas. O em que mais se acredita é
justamente o que menos se conhece; nem haverá pessoas mais autorizadas do que
aquelas que nos contam fábulas, como sejam os alquimistas, os adivinhos,
quiromantes, médicos, id gezus omne, aos quais de bom grado
eu juntaria, se mo permitissem, uma certa classe de indivíduos que se metem a
interpretar e controlar os desígnios de Deus, gabando-se de encontrar as causas
de cada acidente e de ver, nos segredos da vontade divina, a razão incompreensível
da sua obra. Esbarrados a cada canto, atirados de um lado para o
outro, mercê da variedade e discordância contínua dos episódios, nem assim
deixam eles de seguir o seu painel, a pintarem com o mesmo lápis o preto e o
branco.”
Por terem sido escritas há quatrocentos anos, estas judiciosas palavras
do venerando ancião não deixam de exprimir uma verdade que tem aplicação a cada
momento. Elas merecem ser juntas à comparação que o mesmo autor faz do homem
com o ganso, que se gloria de ser o “favorito da Natureza” – comparação já por
nós desenvolvida (vii) a propósito da vaidade humana, que, sem
delonga, construiu o Universo nos moldes da sua fantasia.
Desde que o homem se deixa arrastar pelo natural pendor de tudo
referir a si, torna-se capaz de reduzir o mundo inteiro, para fazê-lo entrar
nos seus planos estreitos e mesquinhos.
O Sol já não é, então, mais que um seu mísero servo; as estrelas não
passam de ornamento para decoração do seu cenário e servindo-lhe de roteiro na
exploração dos mares. Se a atracção luno-solar, duas vezes por dia, levanta as
águas oceânicas, é apenas para facilitar a entrada no Havre dos navios que
chegam de Nova-Iorque ou do Rio Amarelo. Se a casca do carvalho excreta o
tanino, é para que possamos ter bons couros. Se o bicho-da-seda fia a seda no
seu casulo, é para ofertar belos estojos para as mulheres elegantes. O rouxinol
saúda a aurora? Então é para o encanto auditivo de quem o ouve. A Natureza
inteira, enfim, foi criada visando o homem, e toda ela concorre para ajudá-lo e
o fazer feliz.
É evidente que quando se chega a tais excentricidades,
a causalidade
final fica singularmente prejudicada. Pretender que tudo tenha sido
expressamente criado para o homem é abusar muito ingenuamente da nossa posição.
Antes de tudo, é preciso distinguir a Natureza em
duas partes bem diferentes: o Céu e a Terra.
O Céu é o espaço infinito, a multidão incalculável de
mundos, o conjunto; a Terra, uma gota d'água no oceano, um grão de areia, um
átomo. Que o Céu se tenha criado para o habitante da Terra, é ideia absurda,
inconcebível. O Céu não conhece a Terra e o homem, por sua vez, não conhece a
mínima partícula do Céu. As estrelas são sóis, centros de sistema de outras
terras habitadas. Contamo-las por milhões e certificámo-nos de que o nosso
planeta lhes é absolutamente desconhecido e insignificante, em relação a elas
que ocupam no espaço domínios tão vastos que a própria luz leva milhares de
anos para atravessá-los. De maneira que, se o nosso globo deixasse hoje de
existir, o seu desaparecimento não seria matematicamente percebido pelos mundos
siderais.
O átomo terrestre turbilhona, célere, em torno do
Sol, como a docilidade da funda nas mãos de um gigante. Mil revoluções siderais
se completam simultaneamente, no infinito, em todas as latitudes imagináveis e
distantes deste átomo... Quando, pois, o homem pretende a imensidade
opulenta dos céus desdobrada no vácuo em sua exclusiva intenção; quando fala de
princípio e fim do mundo, como se se referisse à sua pessoa, equipara-se a uma
formiga que julgasse o campo em que assenta o seu formigueiro, traçado para
oferecer-lhe belas perspectivas. As árvores floridas foram destinadas
ao prazer da vista e aquela casinha branca, lá mais longe, não foi construída
senão para lhe servir de ponto de referência; e finalmente: o proprietário
deste campo não cogitou senão dela – formiga inteligente – quando organizou o
seu habitat com aqueles jardins, pomares, campos e florestas. Desígnio
manifesto. Se, secundariamente, nos restringirmos à Terra, a ideia de uma
finalidade criadora é aqui mais particularista e não haverá absurdidade em
pretender o homem tenha sido ela construída e organizada para sede da vida e da
inteligência. Pode mesmo acrescentar-se que, no plano terreno, o homem é o ser
mais elevado. Só ele recebeu o dom da inteligência. Se desaparecesse da Terra,
é de crer que esta perderia a sua razão de ser no concerto universal, a menos
que não viesse outra raça intelectual suceder-lhe, o que leva a crer tenha sido
mesmo destinada para ser habitada.
Temos precisamente demonstrado, numa obra anterior,
que os mundos foram construídos para morada do espírito.
Considerando, porém, o homem como o último ser
nascido entre os seres terrícolas,
cujo surgimento sucessivo obedeceu à lei geral do progresso e
considerando-o como o mais perfeito da escala, a pressupor-se o centro final –
ou pelo menos actual – da evolução terrestre, negamos-lhe, contudo, o direito
de atribuir a Deus as suas mesquinhas concepções e supor que as suas mínimas
combinações domésticas participaram do plano divino e eterno. Nem é
fora de si que ele deverá procurar a razão de sua grandeza: é mesmo naquilo que
o distingue, isto é, no seu valor intelectual. Se, por sua
inteligência, se apropriou de uns tantos serviços que lhe pode prestar a
Natureza, não há confundir essa apropriação com o plano geral.
A estrela polar não foi criada para nortear navios,
mas o navegador soube utilizar-se da sua posição peculiar. O carvalho não foi
feito para aproveitar aos cortumes, mas o fabricante descobriu, com a sua
inteligência, as propriedades do tanino no tratamento das peles. A púrpura,
molusco gastrópodo do Mediterrâneo, não nasceu para tingir o manto real dos
potentados, mas a indústria teve como extrair um colorido brilhante das suas
conchas. O carneiro, o bicho-da-seda, as aves de pluma, as plantas têxteis, o
algodoeiro, o linho, o cânhamo, as minas de ouro, prata, chumbo e níquel, as
safiras, rubis, esmeraldas, etc.; tudo enfim – seres e coisas – que a Natureza
oferece ao homem, não foi criado nem posto no mundo com fins particularistas, e
se o homem se tem progressivamente apropriado dos elementos, é claro que o deve
às suas faculdades electivas, à sua inteligência e não a um plano primordial
necessário, que se tinha de executar fatalmente e, por assim dizer, à revelia
da escolha da indústria humana.
Expõe-se o homem a cair em erro grosseiro, quando
tudo refere a si, mediante um processo incompleto. Mas, negar um plano
à Criação só pelo facto de esse plano não se reportar exclusivamente ao homem,
é cair noutro erro. Voltaire deplora em belos versos o terremoto de Lisboa
e pergunta, com azedume, onde está essa Potência amiga do homem e de que tanto
se fala.
Rousseau responde-lhe,
então, que a culpa é só dos homens, pois ninguém lhes mandou edificar num solo
assim. Nem um nem outro têm razão. O homem enganou-se no seu egoísmo, nisso
estamos de acordo, e até nos propomos evidenciar a fantasia desse método.
Mas, a falsidade de método não é razão
bastante para concluir que o objecto desse método não exista e que o fundo da
doutrina seja um erro.
Ora, isso é justamente o que fazem os materialistas,
sem perceberem que se deixam seduzir por uma estranha confusão. Certo,
a causalidade final, o conhecimento do plano da Criação, não é tão simples como
imaginam os espíritos superficiais. É, assim, de extrema complexidade e
apresenta dificuldades quase insuperáveis, mesmo para espíritos mais
clarividentes. Nós não assistimos aos desígnios de Deus e não passamos de
pobres ignorantes em face de tanta grandeza. Mas, com franqueza, em
que pode a nossa incapacidade afectar o princípio das causas? Em que os nossos
erros diminuem a ideia da omnipotência criadora? Considerais o homem um
ser tão importante para armar este dilema: – ou a Natureza gravita para o
homem, ou se conserva em repouso.
Esqueceis, assim, os vossos próprios princípios e o
habitual desdém pelas aspirações humanas, para nos colocar na alternativa de
crer que a destinação de tudo converge os seus raios para nós, ou que não
haja nenhum desígnio na unidade universal! Mas, não... A verdade é que
deixais o ser humano bastante envolto nas gangas da matéria, para o
evidenciardes de um jacto no seu aspecto superior. Tendo-o eclipsado muito na
sua intelectualidade para poderdes, de improviso, formular essa alternativa.
Mas, como explicar a vossa absoluta negação de qualquer plano da Natureza?
Ei-la aqui, esta grande, pretensa explicação,
mediante a qual imaginam suprimir toda a ideia de finalidade geral e
particular! Vamos ver que essa explicação é tão frágil quanto as alegações
opostas às eternas verdades, e que esses mesmos homens que nos acusam de
forjadores de hipóteses, mais não fazem, na verdade, que substituir hipóteses
por hipóteses mais complicadas. A diferença principal, entre nós, está em
que eles se atolam no seu labirinto escuro, enquanto nós caminhamos em linha
recta para o alvo luminoso.
[...]
Não queremos retomar neste capítulo a questão
primária da origem da vida no nosso globo, bem como do seu entretenimento e
progresso sob o guante de leis providenciais. Examinámos esta questão
sob todos os seus aspectos num capítulo sobre a origem dos seres e chegamos à
conclusão inatacável (ver Segunda Parte) de que a vida terrestre é constituída
por uma força, única e central para cada ser, condicionando a
matéria segundo um tipo do qual o indivíduo deve ser a expressão física. Vimos
que a lei do progresso nos seres organizados, da planta ao
homem, atesta a inteligência divina e evidencia a presença constante de Deus na
Natureza, jamais induzindo à negação de uma potência criadora.
No nosso caso particular (Plano da Natureza –
construção de seres vivos), temos uma afirmação ainda mais directa da acção
inteligente na maravilhosa organização dos corpos animados, atento a que esta
acção é igualmente necessária nos casos em que as espécies se houvessem
sucessivamente transformado em ascensão zoológica (hipótese que está longe de
ser admitida) e, naqueles em que o primeiro casal de cada espécie fosse o
produto de uma força particular, que não nos é dado apreciar. Temos, assim, o
direito de fechar esta controvérsia da adaptação de cada espécie ao seu género
de vida com a declaração de que, mesmo supondo uma progressão natural,
instintiva, lenta e insensível; uma plasticidade normal do organismo e
obediência cega de cada espécie às forças dominantes, a hipótese materialista
nada adianta com isso. A apropriação da matéria organizada às causas exteriores
demonstraria, simplesmente, uma grande sabedoria nos desígnios e nos feitos do
Criador. Se, como acima lhes perguntávamos, os seres fossem de ferro ou de
mármore, haveria críticos que com isso se contentariam. E contudo, que
sucederia? Qualquer mudança de clima, de temperatura, de ambiente, de
alimentação, resultaria numa paragem mortal para essas espécies inflexíveis. O
junco verga, enquanto que o carvalho é fustigado pelo aquilão.
Longe, pois, de ver ausência de pensamento e desígnio
nesta flexibilidade maravilhosa do organismo vivo, nesta faculdade imperecível
de tirar o melhor partido das circunstâncias mais incómodas, vencer obstáculos
e plantar, a despeito de tudo, o estandarte da vida no solo mais agreste e mais
ingrato, o que reconhecemos é o depoimento irrecusável da causa omnipotente,
que, a partir dos primeiros tempos, houve por bem que os mundos se embalassem
harmonicamente na amplidão do infinito e fossem envolvidos nas carícias da
vida.
A inteligência criadora e ordenadora, que denominamos
Deus, permanece, portanto, como lei primordial e eterna, força intrínseca,
universal, constituindo a unidade viva do mundo. Toda a dificuldade desaparece,
substituindo-se a ideia de plano geral à de causalidade humana. Órgãos e
funções, espécies e indivíduos, é tudo conduzido na mesma direcção.
O Universo é o desdobrar de um só pensamento e a
unidade de tipo é sensível sob todas as formas particulares da vida terrestre.
Em que direcção nos conduz o pensamento eterno?
É o que tentaremos entrever, ao terminar este estudo
sobre a finalidade dos seres e das coisas.
/…
(ii) Ver Bibliographie Catholique,
Mars 1866, página 225.
(iii) Spectacle de la Nature.
(iv) Dictionnaire Fhilosophique.
(v) Die Burgeliche Geseltschaft.
(vi) Mélanges Scientifiques et Litteraires.
(vii) Mundos Reais e Mundos Imaginários parte
2ª, capítulo 5º.
Camille Flammarion, Deus na Natureza, Quarta Parte (4); O
Destino dos Seres e das Coisas, (1) Plano da
Natureza, [...] Construção dos Seres Vivos, 33º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva) 1895,
pintura de James Jebusa Shannon)