A Força e a Matéria II – A Terra (II)
Assim como os sons derivam do número de vibrações sonoras,
assim as cores derivam das vibrações luminosas. O colorido de uma
paisagem vale por uma espécie de música. A verdura dos prados é formada pelo
número, qual o tema de uma melodia; a rosa que se desbotou é o centro de uma
esfera de vibrações luminosas, constituindo o matiz aparente, e o rouxinol que
trina em carícias, projecta no ar as vibrações sonoras características do seu tónus. Todo o
movimento é número, e todo o número é harmonia.
Não há dúvida de que existe, nesse estado de coisas, uma
parte reservada às leis fisiológicas da nossa organização. Os sons audíveis
começam nas vibrações lentas e acabam nas agudas, que o ouvido pode captar,
quais sejam de 16 a
36.850 por segundo (i).
As cores visíveis começam nas vibrações lentas e
extinguem-se com as mais rápidas que a nossa retina possa apreender, ou seja,
de 458 triliões por segundo, a 727 triliões por segundo (ii).
Mas, não haveria como daí concluir que haja nisso apenas uma
relação fortuita entre a nossa organização e os movimentos exteriores.
Sons e cores estendem-se abaixo e acima dos limites da nossa
organização, igualmente subordinados a regras numéricas. Há sons que o ouvido
humano não pode captar, assim como há cores que nos escapam à retina. E
no próprio limite das nossas percepções a relação entre estas e os nossos
sentidos procede, ao menos na nossa opinião, do facto de não ter sido a
construção do nosso organismo alheio ao número – o elo universal.
Também a forma, nas suas dissimulações mais ondeantes,
pertence ao número, pois toda a figura é determinada pelo algarismo.
O sentido inato da estética que nos
inspira busca as formas mais puras. O círculo nos encanta com a sua curva
graciosa.
A Geometria, nas nossas construções, não desgarra por
veredas arbitrárias. A Arquitectura apoia-se, conforme as suas
aplicações, sobre a forma estética do nosso
pensamento, ainda que por vezes suceda (como na nossa época por
exemplo) não ter estilo algum.
Até nas figuras simbólicas das tradições religiosas desejamos
simetria, simulando-a às vezes em aparente desordem. Ao contemplar um
emaranhado de coisas, a vista logo se nos fatiga, ao passo que se embevece e repousa ao
fixar as danças de movimentos melodiosos. Característica peculiar do
reino mineral, a simetria torna-se menos severa ao graduar-se nos reinos
orgânicos.
Os vegetais modelam-se pelo seu tipo ideal, mas deixam uma
certa latitude às forças que os modificam, e assim é que crescem em duas
direcções opostas; as folhas sucedem-se no seu ciclo, em torno da haste, em
número característico; as suas flores não escapam à ordem numérica. Número e
forma são a base da classificação vegetal. Os animais, com o manifestarem o
tipo de cada espécie, dão à simetria o seu papel e o próprio homem é uma
unidade composta por duas metades simetricamente ligadas.
Acima de todas essas formas particulares, soberana
manifesta-se-nos a unidade de plano.
Nas espécies mais diferentes encontram-se analogias
significativas. Nada menos parecido com a mão humana do que a pata do cavalo e,
no entanto, se dissecardes a pata, lá encontrareis um rudimento de mão com os
dedos inscritos.
Assim a ordem, a mesma ordem numérica, impera na
Terra como nos céus. Não vamos pensar que as harmonias naturais,
despercebidas ao homem, hajam de ser ruídos informes e constituam excepção. O
vento que suspira entre os cedros e os pinheiros; o lamento das vagas na praia
arenosa; o zumbido do insecto no âmbito dos bosques; todos os indefiníveis sons
que animam a Natureza são vibrações sonoras, pertinentes ao reinado do número.
O facto na aparência mais insignificante, tanto quanto o de
maior vulto, resulta de leis determinadas. Com que direito, pois, ousam
declarar os negadores do espírito a materialidade absoluta do Universo? Que
pode a matéria só por si? Que será um átomo de oxigénio ou de carbono
considerado à revelia de toda e qualquer lei? Em que caos mergulhará a Natureza
se aniquilardes a força que a mantém? Imaginemos por um momento que o
número deixa de existir, e esta conjectura, só por si, aniquila, todas as
harmonias que acabamos de explanar. Ora, perguntamos: pode a faculdade
matemática pertencer à matéria? Se assim, julgá-lo, resta dizer-nos que matéria
será essa: oxigénio, azoto, carbono, ferro, alumínio. Evidentemente
não, pois a lei supera todos esses corpos e é precisamente ela – a lei –
que os combina, casa, dissocia, separa, visto que os governa. Que vos
resta, então? Pertencerão à matéria o som, a luz, o magnetismo? Mas a
experiência vos demonstra o contrário. Nisso, tendes outras tantas modalidades
de movimento. Quem determina um dado movimento ao som e outro à luz? Quem
regula essas forças? Aparentemente, serão elas mesmas, ou uma força superior
que as abranja a todas. A matéria não é, em todos os seus movimentos,
senão o objecto passivo.
Inegável, portanto, que na Natureza inorgânica a
matéria é escrava e a força é soberana.
Contudo, é precisamente o que põem em dúvida os nossos
campeões do materialismo.
Já tivemos o ensejo de apreciar o valor dos seus argumentos no que diz à
Natureza inorgânica. Edifiquemo-nos agora, sem demora, com a maneira por que
explicam a Natureza orgânica.
Quando queimamos cautelosamente uma planta, não raro obtemos
o resíduo de um esqueleto silicoso correspondente à forma primitiva da haste. É
a substância que a constituía, proveniente da substância do solo. A planta
integral, encerra a mais, certos corpos determinados pela sua natureza: assim,
por exemplo, o trigo contém o glúten azotado; a videira, cal; a batata,
potássio; o chá, magnésio; o tabaco, salitre, etc. A cada planta convém
uns tantos elementos minerais e a própria planta é que os sabe escolher. O
agricultor inteligente adapta a sua lavoura à natureza do terreno e escolhe os
adubos de acordo com as safras que colima. No conhecimento das necessidades de
cada espécie está o segredo das searas e dos alqueires. Diante disto, os
teóricos de que nos ocupamos só se explicam pela metade. A raiz absorve – dizem
– de acordo com as leis fixas de afinidade, os elementos que lhe jazem em
volta. E, como se temessem não ser bem compreendido o papel tão judiciosamente
atribuído à tal afinidade electiva, acrescentam (ver Moleschott) que a
planta fabrica por si mesma a massa principal do seu volume. Haverá,
quem, depois de uma tal declaração, ainda se negue a outorgar à força o
ascendente directivo que lhe cabe? Pois há, visto que tudo isso é dito
atributivamente à matéria. A evaporação que faculta às raízes a absorção dos
elementos da terra vegetal, dizem, e a afinidade dos líquidos através das
paredes celulares que os separam, tais as faculdades mestras da matéria, que
engendram o crescimento. Eis uma pobre raiz que vegeta no cimo do
rochedo: necessita de sombra, de silêncio, de uma certa alimentação de que a
separam seixos e calhaus... Examinem-se-lhe os vagos, mas, enérgicos
desejos: ela procura, coleia, recua, contorna pedras, desce, sobe, lança-se
ávida a qualquer ponto que um quê de instintivo a faz adivinhar, recai por
vezes desfalecida, mas logo se reanima de novos ímpetos, derruba todos os
obstáculos e chega, enfim, à Canaã prometida. Desde
então aí se fixa, implanta-se e afirma os seus direitos de conquista. A árvore
mofina que delirava outrora em calafrios de consumpção, retoma
prestes o vigor natural, bracejando pelo solo os seus ramos luxuriantes. Ousar-se-á
admitir aqui, mais formalmente ainda do que na cristalização mineral, a
inexistência de um princípio inteligente, de uma força orgânica peculiar?
Por nós, confessamo-lo sem reservas: na manifestação
dessas tendências instintivas saudamos o ser virtual, a força
intrínseca do vegetal, que constrange a matéria a obedecer-lhe.
Parece-nos que sois consequentes atribuindo à matéria essa
afinidade electiva (como se a matéria discernisse!), quando nós a inferimos no
ser vegetal, que, aflorado nas condições mais díspares, sabe adivinhar por toda
a parte os elementos necessários à existência da sua espécie.
Ó pretensos sábios, que acreditais fabricar ciência
arrastando a inteligência em campo raso de despautérios, deixai
que vos acuse e lastime não terdes sabido ver, nem sentir, os cenários da
Natureza! O aspecto admirável de uns tantos sítios, nos quais
a graça e a beleza se conjugam sob todos os prismas; a movimentação da vida, na
viridência constante de prados e florestas; a irisação da luz-clara, marchetada
de flocos de ouro; o perfil silencioso das árvores; o espelho translúcido dos
lagos que reflectem o Sol; o calor primaveril que aquece a atmosfera; a senda
das selvas e o perfume das flores: todas as maravilhas, ternuras,
carícias da Natureza ficaram estranhas à vossa inércia. As
contemplações desta natureza terrestre oferecem, contudo, grande encanto e
acarretam, por vezes, revelações inesperadas.
Lembro-me e confesso, ainda que possas rir da minha
sensibilidade – lembro-me, repito, de haver passado horas deliciosas, admirando
solitariamente umas quantas paisagens. Não há que categorizar aqui as
impressões de que falo, pois quem tenha olhos de ver encontrá-las-á por toda a
parte. O Sol, não posto ainda, mas nublado, iluminava as alturas, colorindo
de matizes delicadíssimos e esquisitos as nuvens mais altas, cúmulus louros a
vogarem lentos, acima dos círrus argenteos. Um vento suave
e insensível à superfície do solo balouçava aqueles grupos polícromos, nos
quais os tons de feérica paleta, do áureo ao róseo, se harmonizavam no
contraste, quais acordes de um coro celestial. A meus pés fremia a onda
translúcida do lago imenso, a sumir-se no horizonte longínquo. Profundo
silêncio amortalhava a cena. À beira d'água, não longe, alguns capões de
árvores e de arbustos reflectiam-se no espelho móvel, com proporções
gigantescas. A massa equórea reflectia
simultaneamente a terra e o céu, opondo às luzes de cima as sombras de baixo. Quadro
digno dos grandes paisagistas, que costumamos admirar nas telas de um Claude Lorrain e
de um Poussin,
mas cuja simplicidade inimitável transcende a todo o poder imaginativo! Às
vezes, o silêncio ambiente era quebrado pelo cincerro dos
rebanhos distantes, tangidos ao pastoreio, quando não pelas copias de alados
cantores. Diante desse conjunto de tanta beleza, embora velada, de tanta
vivacidade, apesar de aparentemente morto, de tal eloquência no meio do
silêncio, havia um esplendor tamanho e tão imperioso, que eu me
senti penetrado da vida universal, difusa no mesmo ar que respirava por todos
os poros. Ela dizia-me que as árvores vivem, que as plantas
respiram e sonham! Dizia-me que no ar e na luz, em que a supomos inanimada, ela
se eleva e se engrandece para a fase indecisa das primeiras manifestações do
ser. Eu bem via, com os olhos do químico, a sucessibilidade rápida e
incessante dos átomos constituintes do corpo, desde a erva tenra até à nuvem.
Sabia que um dinamismo grandioso e incoercível lhe põe em circulação o
turbilhonar das moléculas simples, alternativamente combinadas na sucessão dos
corpos.
Contudo, no âmago desse movimento, pressentia a
força que o acarreta; no fundo dessas aparências admirava a lei directriz das
coisas criadas. Dominado pelo mesmo poder dessas leis, que irradiam a
beleza no espaço com a mesma facilidade com que o lavrador semeia em campo
fértil, profundamente emocionado nessa comunhão passageira do meu eu com
a vida inconsciente da Natureza, senti-me como que transportado a uma
espécie de êxtase, enquanto as imagens aéreas daquele céu magnífico se me
reflectiam na alma, qual se o fizessem na face espelhada de um lago tranquilo.
É nesses instantes de contemplação, fugazes e
indescritíveis, que a ideia estética de Deus me
surge mais luminosa e mormente me avassala. São estas revelações,
que não posso exprimir e nem a mim próprio definir, quando me ocorrem. Sinto-me
subjugado pela necessidade de reconhecer uma causa para essa beleza, uma causa
que não posso nomear e que, não obstante, me surge com as características da
própria beleza, da bondade, da ternura, do amor e assim também com as do poder,
da magnitude e da dominação. Já não é, então, pela inteligência, mas
pelo coração que me compenetro da existência de Deus. Deverei confessar que me
sinto às vezes surpreso e acabrunhado por uma emoção profunda? Não, por
isso que, na opinião dos contraditores, todo o sinal de emoção só tem origem na
centralidade variável do coração anatómico, ou na secreção da glândula lacrimal,
mais ou menos sensível por temperamento e que, portanto, todas as maravilhas
aqui expendidas não passam de cego resultado, baldo de senso, das combinações
materiais engendradas pela química e pela física orgânicas!
/…
(i) Segundo Deprez. As experiências
de Savart limitam
os sons graves a 8 vibrações duplas por segundo, e a 24000 os agudos.
(ii) Tomamos aqui por limites o número de ondulações do
infravermelho ao ultravioleta. Além deste, o nosso globo visual não pode
perceber a luz, que sem embargo, ainda existe.
Camille Flammarion, Deus na Natureza –
Primeira Parte, A Força e a Matéria II – A Terra 2 de 3, 15º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895,
pintura de James
Jebusa Shannon)