Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 21 de fevereiro de 2015

O peregrino sobre o mar de névoa ~


O Perigo das Religiões Primitivas

As práticas do Sincretismo Religioso Afro-Brasileiro correspondem à mentalidade primitiva dos povos selvagens, mentalidade que Durkheim considerou como pré-lógica, anterior ao desenvolvimento da razão propriamente lógica, ou seja, não só discriminadora, mas também organizadora e classificadora da experiência natural do mundo. Essa mentalidade mítica, idólatra, nascida da experiência empírica não controlada pelos processos racionais, é determinada por impressões de uma realidade fantástica. É dela que surgem as visões deformadoras das coisas e dos seres. É dessa mentalidade que surgem as mitologias grotescas dos deuses indianos de muitos braços e pernas, a magia dos ritos e cerimónias até hoje residuais nas práticas religiosas da nossa cultura lógica. A mentalidade teológica e politeísta, que sucede à pré-lógica, é essencialmente sensorial e impressionista, gerando a concepção fantasiosa de um mundo de mistérios e superstições que caracterizam as civilizações agrárias e pastoris. Entre esse mundo e o nosso temos a distância entre a selva e a civilização, entre a imaginação e a realidade. O Sincretismo superpõe esses mundos contraditórios, misturando à força mundividências discrepantes e gerando desequilíbrios perigosos no comportamento do homem civilizado.

A convivência bastarda dessas duas mundividências ou concepções do mundo no plano sócio-cultural perturba o desenvolvimento da civilização e deforma o comportamento do homem racional. A razão é esmagada debaixo das patas do instinto, dando motivo aos surtos de bestialidade que rompem brutalmente o equilíbrio racional do homem e das colectividades, no pandemónio do arbítrio, da violência e das eclosões do sexualismo desvairado e criminoso das multidões místicas e delinquentes de Ortega y Gasset. A recente tragédia da seita Templo do Povo, de São Francisco da Califórnia, nas selvas da Guiana Inglesa, com o suicídio colectivo de mais de novecentas pessoas e a morte de mais de cem crianças, serve de exemplo recente das consequências desses desajustes. Nas vésperas do natal tivemos a repetição da matança dos inocentes em Belém de Judá, como advertência à nossa incúria. As tragédias deste século, incluindo as duas Conflagrações Mundiais, o desencadeamento do terror nazi-fascista, o domínio dos instintos selvagens nas nações africanas, a figura tragicómica de Idi Amim no Uganda, os bombardeios atómicos no Japão, a ameaça da bomba de neutrões, o impacto da pornografia europeia, a devassidão homossexual nas cúpulas governamentais de países altamente civilizados, como a Inglaterra, a explosão ridícula das teologias da Morte de Deus (imitando a Morte de Pan no mundo mitológico), a eclosão arrasadora da toxicomania e assim por diante, têm a sua origem nos desajustes de uma civilização em conflito com as suas raízes selvagens.

O Espiritismo surgiu, em meados do século passado, como um socorro espiritual a essa civilização, firmando o princípio da Razão sobre os resíduos mágicos do irracionalismo religioso dogmático, para reorientar a Civilização Cristã, mas o mundo preferiu a volta ao paganismo, na sua mais deslavada expressão. Nos países em que a mensagem espírita penetrou mais amplamente, como os latino-americanos, as raízes amargas da barbárie tentaram e tentam deformá-lo com os tóxicos do misticismo selvagem. A nossa luta tem de se desenvolver no sentido de mostrar ao povo os perigos dessa infiltração de bárbaros no Império da Cultura. Todo o espírita que se entrega às fascinações bastardas das religiões selvagens é um traidor da Civilização Cristã, desde o seu início atacada sem cessar pelos vândalos inconscientes. Não podemos combater as práticas sincréticas em si mesmas, pois elas correspondem à incultura da maioria, apegada ainda à placenta selvagem, mas podemos e temos de lutar pelo esclarecimento doutrinário, afastando dos terreiros de macumba os que julgam encontrar ali formas mais eficazes, porque mais fortes, de manifestações mediúnicas, como se o poder do espírito dependesse dos precários poderes da matéria. As criaturas arrastadas pela fascinação das práticas selvagens revelam a sua sintonia com o passado bárbaro e a sua incapacidade para ajustar-se à Civilização. Mas essa incapacidade é motivada pela incultura geral, pois todas as criaturas encarnadas nesta fase de transição evolutiva do planeta têm condições para superar a barbárie e integrar-se no meio civilizado. Todo o esforço deve ser feito pelos espíritas para manterem a integridade da Doutrina Espírita nesta fase crucial da nossa evolução. Estamos na hora da escolha: ou ficaremos no passado, apegados ao materialismo dos rituais, dos mitos e da voracidade carnal, ou buscaremos o espírito e o seu poder na espiritualidade pura que o Espiritismo nos oferece. Procuremos compreender claramente esse problema. Temos um exemplo histórico, na nossa própria história, da impossibilidade de mistura de graus evolutivos diferentes. Todo o esforço de catequese cristã dos jesuítas no nosso país fracassou por completo, ante o desnível cultural existente entre os padres, de um lado, e os indígenas e negros do outro lado. O livro do Padre Nóbrega, A Catequese do Gentio, constitui uma confissão dolorosa do fracasso dessa catequese. Nem mesmo os esforços de Anchieta, com as suas peças teatrais e a sua dedicação aos índios conseguiu superar as dificuldades do desnível cultural. Ele mesmo admitiu, com Nóbrega, que só a força e a violência poderiam sujeitar o gentio ao Cristo, o que negava a própria essência do Cristianismo.

Nos grupos sociais, que englobam clãs e famílias, as heranças individuais, as tradições, aspirações e instintos, bem como as características raciais em mistura formam o ser colectivo da visão spenceriana, com o seu psiquismo e mentalidade colectivos. Essas pequenas estruturas fundem-se no ser maior e mais complexo das sociedades, que a lei de inércia consolida. A dinâmica interna dessas estruturas gera o clima mental e emocional de um novo processo cultural, de uma nova cultura. As tendências gregárias reforçam o instinto de conservação e toda a interferência discrepante gera reacções de defesa do status quo. Numa civilização que já atingiu a sua maturidade possível e luta para superar-se, o repúdio ao retrocesso histórico-cultural torna-se uma constante irredutível, na busca da transcendência. Indivíduos e grupos que se oponham a essa tendência formam quistos negativos que resistem às forças evolutivas e desencadeiam atritos e conflitos. O isolamento desses quistos em si mesmos não os torna marginais mas transforma-os em focos de oposição interna. Esses focos tendem a negar as conquistas evolutivas da estrutura geral e levam a situações conflitivas e a explosões de desespero. Palmares, Canudos, entre nós, a minoria basca na Espanha, o IRA na Irlanda são exemplos desse processo. No desenvolvimento da Civilização Cristã temos o massacre impiedoso pela piedade cristã das seitas divergentes da estrutura geral. No processo actual do desenvolvimento da cultura espírita, que retoma os valores cristãos na sua originalidade, as forças discrepantes recorrem ao lastro do passado e reactivam o fermento velho de que trata o Evangelho, na reactivação dos processos mágicos das religiões primitivas, do paganismo mítico formalista, idólatra e supersticioso. Para superarmos essa fase perigosa temos de superar primeiro a nossa própria ignorância dessa realidade ameaçadora, firmando-nos nos princípios espíritas de rejeição ao mito, ao falso fazer da magia com os seus rituais e cerimoniais emotivos. Só a razão kardeciana, em que a verdade se comprova na investigação fenoménica, pode nos dar os elementos eficazes da libertação espiritual. Não se trata de apelo à Providência Divina, mas de tomada de consciência do momento em que vivemos. Todos os recursos igrejeiros a que se apegam os mestres improvisados de nada valem nesta fase em que só a consciência lúcida pode libertar o espírito do visco da matéria, segundo a imagem de Kardec, e do acúmulo milenar de superstições místicas e mágicas.

Dizia o Apóstolo Paulo aos seus discípulos que, em pequenos, eles se alimentavam de líquidos, mas, ao crescer, necessitavam de alimentos sólidos. A recomendação aplica-se aos espíritas actuais, que não querem largar o "mingau" da infância pelo "tutu" de feijão. O Espiritismo tem por finalidade libertar o espírito humano do visco da matéria, para que ele possa alçar o voo da transcendência. A Religião Espírita não comporta lamúrias e ladainhas, nem exige dos adeptos atitudes formais, voz modulada, gestos artificiais e estudados, olhares lânguidos e lágrimas ou carpideiras em velórios e funerais. As dores e angústias do mundo não são castigos do céu, mas provas necessárias ao desenvolvimento das potencialidades do espírito. Viver é lutar, como no verso de Gonçalves Dias. A luta da vida não se destina a angelizar as criaturas, mas a virilizar o espírito, predispondo-o para voos de águia e não para o esvoaçar das borboletas. A Angelitude, que é o quarto reino da natureza, nada tem a ver com anjinhos de procissão com asas de papel de seda. Da Humanidade temos de evoluir para a Angelitude, que é o plano imediatamente superior ao plano terreno, povoado de espíritos elevados em saber e moral, responsáveis por si mesmos e pelo desenvolvimento espiritual dos homens. O anjo espírita não tem asas. Não voa como um pássaro, pois levita no seu corpo espiritual. Os Anjos não constituem uma criação à parte na Natureza, onde tudo se encadeia. Os Anjos são homens que se tornaram mais fortes e viris, capazes de enfrentar as mais pesadas e difíceis tarefas da vida superior. Ninguém pense que chegará com rezas e humildade fingida ao plano dos Anjos. A virilidade angélica é de dignidade, coragem, moralidade e permanente disposição para o trabalho. A graça, como explicou Kardec, não é um privilégio concedido gratuitamente a alguém, em detrimento de outros. A graça, segundo Kardec, é a força que Deus concede ao homem de boa-vontade para vencer as suas imperfeições. Lutar e vencer são as duas espadas simbólicas das vitórias do espírito. O Espiritismo é o Consolador prometido por Jesus, mas o consolo espírita não é cantiga de embalar e sim conhecimento da razão e das finalidades da vida. Só o conhecimento real, o encontro com a verdade pode dar ao espírito a consolação necessária.

Na concepção espírita da vida a morte não é morte, é apenas passagem de um plano da vida para outro. A morte é a páscoa do espírito, que nela e através dela conquista a ressurreição. A palavra páscoa vem do hebraico. A Páscoa dos judeus foi a travessia do mar Vermelho, que os livrara da morte no Egipto. Jesus ressuscitou, como todos ressuscitamos, e a sua ressurreição transformou a páscoa judaica em páscoa cristã, mudando o sentido material da palavra em sentido espiritual. Não há morte para os espíritas, pois Deus não é deus de mortos, mas de vivos. Os que temem a morte não sabem que ela, como afirmou Richet, é a porta da vida.

A palavra eternidade foi substituída nos nossos dias pela palavra duração. Quem diz eternidade exprime um conceito estático, lembrando a pasmaceira de um céu de asilo para inválidos. Quem diz duração exprime um conceito dinâmico e vital. O tempo, como Galileu o definiu, pela mediunidade de Flammarion, é a sucessão das coisas no Infinito. Tudo é vida e movimento em todo o Universo. Tudo é luta e trabalho, construção incessante. Kardec lembrou que, se somos seres humanos, de natureza espiritual, temos também o ser do corpo, que mesmo na metamorfose da morte é vida e movimento. A concepção estática das coisas é uma ilusão sensorial. A Física actual abandonou a concepção material do Universo. Vivemos em espírito e pelo espírito, desde a pedra até ao anjo.

Ante essa abertura do mundo, que o Espiritismo nos apresentou muito antes da evolução da Física, o espírita é obrigado a sair da sacristia e fugir dos velórios para proclamar a continuidade da vida em todas as dimensões da realidade cósmica. Seria estranho e inexplicável se os espíritas, possuindo essa visão nova do mundo e da vida, resolvessem voltar aos terreiros de macumba. As religiões primitivas são formas superadas de interpretação do mundo. Serviram no seu tempo, conviviam com os bichos e não com as ideias. A religião verdadeira, segundo Pestalozzi, mestre de Kardec, é a Moralidade; não a moral social de regras e normas, mas a Moralidade, como processo de elevação espiritual do homem. Para evitar o religiosismo comum e banal, Kardec explicou que a Ciência e a Filosofia espíritas tinham consequências morais. Só no final de sua missão declarou que o Espiritismo é a Religião em Espírito e Verdade, anunciada pelo Cristo. Essa Religião Verdadeira não está nos templos, nas Igrejas, mas no coração do homem, na forma de uma lei fundamental da natureza humana – a Lei de Adoração –, que leva o homem a adorar a Deus no recesso de si mesmo, sem alardes nem fantasias. Se não pudermos compreender essa rotação de noventa graus no pensamento humano, o recurso é mergulharmos na leitura e estudo sistemático das obras de Kardec, meditando a sério sobre os seus ensinos. A razão kardeciana não tem a frieza do racionalismo científico, porque o Espiritismo é a síntese de todas as potencialidades ônticas do homem; Razão e Fé, intuição e pesquisa globalizante da doutrina.

A razão é considerada como um processo linear de captação da realidade sensível. Ela fragmenta e esmiúça a estrutura das coisas e dos seres, trocando em miúdos a sua inteireza global. As Ciências apegaram-se a esse processo de percepção quantitativa, considerando-o meio seguro para a obtenção da certeza. Com essa ambição de medidas exactas perderam a visão de conjunto. Era natural que assim acontecesse, em virtude da nossa confiança ingénua na percepção sensorial. Mas o reconhecimento da intuição como forma de percepção e captação imediatas da realidade, gerando o flash do insight, o processo racional da razão mostrou-se deficiente. No campo da percepção da forma na sua inteireza, descoberto pela Psicologia da Gestalt, verificou-se que a captação das estruturas globais nos oferece a totalidade do objecto, com os seus elementos de pregnância interna e de integração externa na realidade total. A nossa mundividência científica deu um salto da fragmentação para a globalização. A realidade misteriosa da forma (Gestalt em alemão) produziu a revolução copérnica da Psicologia da Percepção. Mas essa revolução já tinha os seus precedentes na pesquisa espírita da natureza humana, por Kardec, no plano da fenomenologia paranormal. Dessa maneira, as divergências entre as chamadas ciências da matéria e a ciência espírita derivavam do avanço da desprezada e malsinada ciência espírita sobre a arrogante e intransigente ciência oficial e académica. Hoje a Física atómica e nuclear está fazendo justiça a Kardec nas suas descobertas mais recentes. A visão gestáltica de toda a realidade como interacção constante de espírito e matéria, cabendo ao espírito a função essencial de aglutinação e estruturação da matéria em elementos formais, revela a necessidade de conjugação dos dois campos científicos.

Foi o que Rhine ressaltou na sua observação sobre as duas antropologias em que se dividiu a nossa concepção do homem, o que vale dizer da nossa self-conception. De um lado o conceito material do homem como animal e de outro o conceito psíquico-espiritual. A Parapsicologia e a Medicina Psicossomática eliminam actualmente essa dualidade, graças ao desenvolvimento nas ciências de uma mentalidade gestáltica. O Espiritismo resgata os seus direitos na cultura do século.

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José Herculano Pires, Ciência Espírita e as suas implicações terapêuticas, O Perigo das Religiões Primitivas, 19º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O peregrino sobre o mar de névoa, pintura de Caspar David Friedrich)

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